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quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Nilto Maciel: Próximo da Carne (Carmélia Aragão) [1]

























Ítalo Calvino, profundo conhecedor de “cidades invisíveis”, diz que as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. Dessa forma, Nilto Maciel também edificou Palma no interior do Brasil. Já retratada em diversos contos e romances do autor, como Os varões de Palma (romance, 1994), A Rosa Gótica (romance, 1997), A última noite de Helena (romance, 2003), A leste da morte (contos, 2006) e Os luzeiros do mundo (romance, 2005), a cidade reaparece, nesse ano de 2007, no romance louco e lúcido, Carnavalha.
Agora é carnaval em Palma. A festa pagã, cujo sentido primeiro, após ser resgatada pelos cristãos na Antiguidade, significava carne levare, “afastar da carne”, porque então começava a quaresma, está impregnada na vida e na alma dos habitantes de Palma, unindo a carne e seus prazeres, sendo, ao mesmo tempo, protagonista e antagonista da narrativa, o ponto de convergência entre as histórias que se cruzarão ao longo das oito partes que compõem o romance.
Na primeira parte, intitulada "Palma Gira", o autor nos apresenta Zuza, o bêbado da cidade, que, no entanto, parece ser aquele que tem a visão mais lúcida do efeito da festa sobre as pessoas. “Tudo girava ao redor de Zuza: vira-latas, pessoas, casas, carros, carroças, árvores, passarinhos, nuvens, o Sol, as estrelas”. Os outros personagens se apresentarão na segunda parte, "O Desfile", título que não reporta apenas ao desfile carnavalesco, mas também à vitrine de uma gama de tipos e personalidades que se mostrarão na trama como as irmãs Maroca e Alzira, o médico Juarez e sua esposa Jacinta, Noé, Tavinho, Néo Bento, Rocilda e o marido traído, Viriato. Alguns querem fugir, como a condenar a festa, o comportamento apoteótico das pessoas, porém, ao colocarem suas cadeiras na calçada, ao abrirem as portas ou janelas de suas casas, já não estão mais a salvo do efeito “destrutivo” do carnaval.
A realidade de Palma é descrita em uma linguagem realista, crua, sem pudores: “Enquanto Dalva arrumava a cama, Néo Bento se dirigiu ao banheiro. Entrou, fechou a porta, deixou os chinelos ao pé dela [....] uma barata passeava ao redor dos chinelos... [depois] puxou a cordilha da bomba. A descarga de água provocou um redemoinho de fezes.” Mais adiante, a narrativa atinge um tom apocalíptico, no entanto, as palavras proféticas saem da boca dos animais como nas fábulas. Vale ressaltar que a fabulação faz parte de uma das principais características do absurdo utilizado por Nilto: “Súbito o barrão ergueu as patas dianteiras e se pôs a falar: ‘nada mais sujo do que o mais limpo, nada mais limpo do que o mais sujo’ E, voltando-se para Silveira, sorriu”.
Os paradoxos, como o sagrado e o profano, parecem unir-se em Carnavalha. São claras as intertextualidades bíblicas: a destruição de Sodoma e Gomorra, a tentação de Cristo, as trombetas do Apocalipse. Mas, afinal, as visões de Zuza seriam os prenúncios da desgraça, de sua própria desgraça? Seria um profeta ou um simples bêbado? “Zuza arregalou os olhos. Na torre, a coruja piava [....] corriam e zanzavam cachorros, gatos, galinhas, porcos, bodes... Uma profusão de animais nunca vista [....] e de todos os lados surgiram homens, mulheres e crianças,... furiosos, aos gritos, partiram contra os animais”.
Na contramão desse discurso alucinante, temos um escritor fiel às nossas raízes, fiel às descrições peculiares e psicológicas de uma cidadezinha do interior e seus tipos, assim afirmou Manoel Hygino sobre o universo de Nilto Maciel em seu artigo “Rebelião em Palma”, de dezembro de 2005, em Belo Horizonte: “O mundo imaginário de Nilto Maciel é rico em figuras raras, mas no fundo, localizadas e identificadas aí pelos sertões. É gente como qualquer outra, com as idéias mais comuns ou raras, claras ou birutas”.
Vale destacar que, da quarta à sexta parte, na forma dos antigos romances de fragmentos do século XVIII, o autor passou a colocar sob os títulos epígrafes de outros autores, porém, privilegiando os cearenses como: Francisco Carvalho, Moreira Campos, Carlos Augusto Viana, Dimas Macedo, Sânzio de Azevedo, Juarez Leitão, Natalício Barroso, Adriano Espínola, Batista de Lima, Márcio Catunda, Alcides Pinto, Virgílio Maia, Floriano Martins, Linhares Filho, Pedro Henrique Saraiva Leão e outros.
É importante ressaltar que Nilto Maciel detém uma vasta obra literária e que, há anos, é um dos principais divulgadores de nossa produção por todo o país com a revista Literatura, a revista do escritor brasileiro. Carnavalha, seu novo romance, demonstra também sua visão ácida sobre a nossa realidade, diríamos até, uma visão pessimista, mas que, ao mesmo tempo, retrata nossa essência festeira, como diria Zuza: “Podia ser carnavalma”.


[1] Carmélia Aragão faz mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará (UFC) e é autora do livro de contos Eu vou esquecer você em Paris, ganhador do III Edital de Incentivo às Artes (Secult).
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terça-feira, 30 de outubro de 2007

Para que esses olhos arregalados? (Nilto Maciel)






















Arnóbio de Barros andava armado da cabeça aos pés: revólver amarrado à perna, outro na cintura, pistola junto ao peito. Maria de Fátima, sua mulher, devota de Nossa Senhora, rezava toda noite. Nenhum mal acontecesse ao delegado. No entanto, aconteceu. Ou quase se deu a desgraça. Homem assaltou loja. O comerciante tremeu e entregou dinheiro, relógio e outros bens. Os dois empregados não tugiram nem mugiram. O bandido fugiu. Para uns, usava máscara.
Quando se sentava atrás da mesa, Arnóbio pedia café, enquanto punha na gaveta as armas. Lambia as bordas da xícara e tirava os sapatos. Ligava para Fátima. Tudo em paz? E folheava autos. O crime da Rua Morgue. Não gostava de literatura, mas conhecia de nome alguns escritores. Predispunha-se a ler um ou outro, estimulado por colegas. Lesse O Processo, de Kafka. Não conseguia ir além da primeira página. Preferia alisar as armas, contar os projéteis, falar de crimes e castigos. Quando chegasse o retrato falado do bandido da luz vermelha queria ser o primeiro a vê-lo. Sim, senhor. Precisava ficar só e brunir as armas assinaladas com as letras AB. O ajudante, no entanto, deu meia-volta: o retrato do assaltante da loja... Arnóbio se irritava com frases compridas: trouxesse o retrato. Abrigou o revólver na gaveta e esperou a novidade. Passados dez segundos, o auxiliar abriu a porta e olhou para o governador aposto na parede, dois palmos acima da cabeça do delegado. Na xícara mosca lambia os lábios de Arnóbio. O governante parecia sorrir de tudo e de todos, das identificações, das informações, dos traços fisionômicos, dos bandidos, dos insetos, da polícia.
O delegado mandou o rapaz se retirar e abriu o envelope. Aquele rosto não lhe pareceu estranho. Voltou-se para o retrato do governador. Calçou os sapatos e se dirigiu à porta. Não o importunassem durante os próximos vinte minutos. Deu duas voltas na chave e retornou à cadeira. Pôs sobre a mesa o retrato falado: testa ampla, olhos arregalados, bigodinho preto, queixo redondo. Dirigiu-se ao banheiro e se postou diante do espelho. Se estivesse com uma das armas, daria um tiro naquela testa ampla.
Durante dias e meses Arnóbio dormiu mal, olhos fixos no retrato do assaltante da loja. E se arquivasse o inquérito? Fátima se retorcia na cama. Para que aqueles olhos arregalados? Para te ver melhor. Ela suspirava, como se rezasse a Nossa Senhora. Ele alisava o bigodinho, como se afagasse a pistola. Melhor incinerar os autos.
O tempo escorria pelos pés do delegado, abria e fechava a porta, trazia e retirava o ajudante. O tempo espantava as moscas da xícara, folheava autos, afagava armas. O tempo mantinha o sorriso do governador, apresentava retratos falados, comentava crimes desvendados e misteriosos. Até chegar o dia em que Arnóbio de Barros levou para casa os autos e o retrato falado do assaltante da loja e os queimou. Cortava o mal pela raiz. À noite, arregalou os olhos e viu a piedosa Maria de Fátima coberta de lençóis. Apalpou o queixo redondo, mirou as armas e abraçou com força a mulher.
28/2/2005
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