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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Carnavalha, algumas impressões (Astrid Cabral)



Por sua complexidade estética, o último livro publicado de Nilto Maciel requereria um alentado estudo. Restrinjo-me, entretanto, às impressões de uma rápida primeira leitura. Quem conhece outros livros do autor não se surpreende pelo alto grau de consciência literária que orienta esta nova produção ficcional.
Em Carnavalha, o projeto literário logo se impõe. Ninguém se iluda com as frases curtas e desataviadas, o ritmo apressado. Assim como os arquitetos trabalham seus edifícios de tijolo e argamassa obedecendo à planta baixa inicial, os criadores de mundos verbais estruturam suas narrativas buscando equilíbrio e harmonia a partir de planos definidos de antemão. Afinal, ficcionistas da categoria de NM não se comportam com o descompromisso ingênuo dos contadores de história embalados pelo simples desenrolar anedótico. Escritores operam se pautando sempre pela construção de um sistema integrado e coeso, a palavra a serviço de um conjunto racionalmente previsto.
O tema do carnaval, tão caro e freqüente em nossa literatura, é desenvolvido neste romance a partir de uma seqüência de painéis, que guardam entre si obsessivo parentesco. A festa do carnaval na pequena cidade Palma vai avançando das tradicionais manifestações lúdicas do Brasil popular para uma carnavalização delirante, culminando com o desenlace de falso assassinato numa delegacia de polícia, a tragicômica morte e ressurreição do bêbado Zuza.
Os múltiplos e breves segmentos componentes do romance mantêm relativa autonomia e representam etapas mais reiterativas que progressivas. Isso imbrica na abolição do tempo narrativo direcionado para um fim, porque o que aí se enfatiza é a duração de um momento especial, o enredo feito à base de modificações bastante sutis. Embora a narrativa seja intensamente dinâmica, seu processo se repete de modo uniforme, sem encadeamento evidente de causa/efeito. Para isso também contribui o quase absoluto espaço público da ação. Note-se que tudo decorre praticamente na rua ou em praças, natural exigência do tema. Os personagens, que permanecem em casa debruçam-se às janelas ou trazem cadeiras para as calçadas, atraídos pelo eletro magnetismo do evento a céu aberto. (Disso se excluem as duas partes centrais do livro, as batalhas que se passam em outros locais e a série elaborada na perspectiva da visão da coruja/estrige, em que ocorre a substituição do espaço exterior pelo interior doméstico, ambos se sobressaindo de modo mais nítido a partir do contraste.)
Observa-se que no desenvolvimento do romance, o autor, arrebatado pela contemporânea hegemonia do visual, faz parcimonioso e conciso uso das palavras. Assim é que nos apresenta uma perspectiva cinematográfica, relatando ocorrências de caráter inteiramente exterior: aquelas que olhos captam, ou que ouvidos testemunham através de diálogos e monólogos. Os personagens surgem, portanto, privados da dimensão introspectiva fornecida pelos pensamentos, e são totalmente arrastados pela euforia carnavalesca, que não deixa disponibilidade à contemplação ou reflexão, tamanha a orgia dos sentidos convocados.
O não aprofundamento dos personagens os torna, em conseqüência, esquemáticos. E uma vez que estamos diante de uma infinidade deles, o enfoque do autor concentra-se no coletivo. Pode-se dizer que não existe hierarquia entre eles, e a habitual distinção entre protagonistas, antagonistas e secundários resulta praticamente imperceptível. Com mão de mestre, NM apresenta-nos um painel social bem desenhado, em que se pode inclusive detectar o conflito estabelecido pelos habitantes locais e o grupo de turistas vindo de Brasília, comunidades timbradas por seus diferentes centros urbanos.
A manipulação dos personagens em Carnavalha traz-me à lembrança outro importante romance brasileiro focalizando o carnaval. Refiro-me à Cidade calabouço, do mineiro Rui Mourão. Há nesse item alguns pontos de semelhança entre eles, pois a grande festa popular contribui para o sufoco das individualidades, dissolvidas que são na presença compacta da massa.
A meu ver, a grande jogada de Nilto Maciel é a introdução dos animais na categoria personagens. Palma, local geográfico da ação, por se constituir num mundo urbano ainda rústico, propicia, em viés realista, a presença e o convívio desses seres da natureza. Estes, porém, comparecem embrulhados pela magia das lendas populares e emblematizam com vigor o lado instintivo e primário do carnaval. A presença dos animais frisa o limiar entre o natural e o urbano e tal ambigüidade impulsiona o fluxo das fantasias pessoais do autor. Vejam-se as sete admiráveis batalhas travadas (com Boi da Cara Preta, Megalinha Choca, Cães Danados, Gato Borralheiro, Cabrão Pretinho, Pangaré Branco e Barrão das Lajes)
É deveras apreciável o intenso intercâmbio promovido pelo escritor entre o plausível e o implausível, o racional e o irracional. Nas partes centrais do livro (quarta e quinta), que poderiam até ser interpretadas como um parêntese de carnavalização na trama fundamental do carnaval propriamente dito, é onde mais se adensam as incríveis ousadias da imaginação emancipada do realismo. Beirando o non-sense, dá-se uma espécie de dança delirante nos fatos aí narrados. (Ressalta-se no meio destes a impressionante questão dos dentes). É como se o leitor tivesse nas mãos um caleidoscópio de cenas originais, eróticas e hilariantes. Cada uma delas introduzida pelo olhar da coruja, a sábia ave noturna, cuja função é revelar o que jaz obscuro e escondido em nossa absurda humanidade.
Antes de finalizar, comento de relance a intencional mestiçagem lingüística à que NM procede na fatura de Carnavalha, em total consangüinidade com o tema escolhido. Se o autor adota de preferência o registro coloquial com vocábulos e expressões populares, lugares-comuns, gírias etc., valorizando a presença do povão personagem, nem por isso abre mão da cultura de elite que lhe pertence como criador urbano. O livro é rico de rastros literários, não só os explícitos nas numerosas epígrafes, mas os que surgem camuflados testemunhando a forte presença bíblica, bem como as heranças cervantina e kafkiana.
Carnavalha é obra que condensa tanto realidade social quanto fantasia pessoal, assim expressando Carnapalma e carnavalma, significativos neologismos do autor.
10/11/07

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Sombra não identificada (Nilto Maciel)








Humberto ligou a televisão e se sentou no sofá. Locutor falava sem pestanejar. Presidente da República viajava mais uma vez. O homem olhou para o ventilador. Pela janela, nenhuma brisa invadia a sala. Levantou-se. Avião caiu nos confins do mundo, com 120 passageiros. Acionou botão para acelerar a rotação das hastes. Vento, vento, vento. Objeto ou inseto não identificado voou nas proximidades da lâmpada presa ao teto. Voltou ao assento. Agricultores invadiam fazenda no Pontal do Paranapanema. Bandeiras vermelhas, gritos, foices. Cruzou perna, coçou nariz. Televisão precisava de limpeza. Poeira até na cara do papa. Sujeira nos quatro cantos da casa, nos quatro pontos cardeais. Cisco intrometeu-se nos seus olhos. Assalto a loja no centro da cidade. Locutor franziu cenho. Cenas de barbárie gravadas pelo circuito interno de televisão. Bandidos entram armados no estabelecimento comercial. Alguns fregueses conseguem fugir. Homem encapuzado aponta arma para consumidor idoso. Por más artes, a arma se dispara na cabeça do freguês, que tomba inerte. Bandidos recolhem em saco dinheiro da loja e fogem. Sombra de objeto ou inseto não identificado passeia aos pés de Humberto. Locutor reaparece para rematar a reportagem: o morto é Humberto Dias Tavares, aposentado, morador do bairro de Fátima, que havia ido ao centro comprar ventilador. Rosto do morto em close. Humberto se pasma. Morto? Como?, se via tudo: a televisão, a poeira acumulada nela, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador, os próprios pés, o sofá, as paredes da sala. Põe-se a rir. Como a vida podia ser tão cheia de coincidências? Corre ao banheiro, mira-se no espelho. O telefone toca. Ajeita-se, alisa o nariz, penteia-se, volta à sala. O locutor falava sem pestanejar. Alô. Pai, você está bem? Muito bem, filha. A Sinfônica apresentará peças de Berlioz, Mendelssohn e Mussorgsky. O homem passa mãos na testa e nos cabelos. Deve ter enlouquecido. De novo a sirena do telefone, feito alarme de incêndio, tragédia. Da casa de Humberto? É ele mesmo. Você foi morto? O vento açoita as pernas do homem. A luz da televisão pisca. Soldados se matam no deserto. Presidente dos Estados Unidos fala de paz. Humberto desliga a televisão, se senta no sofá, alisa o queixo. Como pode ter morrido no assalto?, se via tudo com nitidez: o sofá, os próprios pés, a sombra do objeto ou inseto não identificado, o ventilador com as hastes em rotação acelerada. O que havia entre o teto e o piso? Entre o céu e a terra? Luz, insetos ou objetos não identificados? Sombras em movimento? Batem à porta. Humberto deixa o sofá, espanta a sombra do mosquito invisível e pergunta: quem é?
Fortaleza, abril de 2005