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domingo, 18 de novembro de 2007

A bicicleta (Nilto Maciel)




Sorveu Nivaldo a cerveja do copo e olhou para a pracinha. Meninos corriam, brincavam. Homens e mulheres, sentados às mesas do bar, falavam alto. Nas paredes, jovens seminus e esbeltos sorriam e mostravam garrafas coloridas. Mocinhas seminuas posavam em praia. Estirou as pernas debaixo da mesinha e virou a cabeça para a rua. Vendedor de picolés empurrava carrinho e gritava. Garotos atenderam o chamado. No tempo de milho verde o melhor talvez não fosse comer pamonha ou canjica. Às vezes a mãe cozinhava e assava espigas. Das palhas fazia petecas. Nivaldo e outros meninos jogavam nas calçadas e dentro de casa. Nas tardes quentes, irmãs e primas se balançavam em redes, cantavam e comiam batata doce. “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” “Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”. Dia de festa quando a mãe decidia assar castanhas de caju. Ora no próprio fogão, ora em braseiros no quintal. Das cascas das castanhas manava um líquido quente. Tostadas, eram retiradas do fogo e descascadas. Nivaldo sorria para os meninos na praça. Eles também riam, mas para eles mesmos. O vendedor de picolés gritava de vez em quando e se abanava com chapéu de palha. Nivaldo lambuzava os beiços de cerveja. Carros passavam entre a calçada e a praça. Na Palma do tempo das irmãs e primas a balançarem-se em redes apenas dois carros assustavam meninos, cachorros, jumentos: um jipe e um caminhão. O trem apitava longe e sumia detrás das matas. Nivaldo corria à janela e só avistava a fumaça. No dia da morte de Vargas (ou terá sido de outro personagem?) a cidade parecia silenciosa. Não, não havia silêncio. Rádios tocavam desde cedo música fúnebre. Nenhum menino na rua, nas calçadas. O sol se escondia atrás das nuvens. Mandaram-no à casa de um vizinho. Um velho, sentado numa cadeira de balanço, escarrava e cuspia numa bacia, a todo instante. A música inundava o ar de melancolia, morte. O chão frio, o silêncio, tudo cinzento. O mundo parecia próximo do fim. As portas da igreja-matriz fechadas. Pombos e passarinhos voavam para lá e para cá. À música fúnebre sucedia-se outra.
Nivaldo bebeu mais e mais. Na praça a vida fervilhava. A vida fervilhou ou fervilhava? E o cheiro de batata doce? Ia à janela, espiava a rua, queria sair, brincar. O sol, entretanto, de tão quente, o impelia a zanzar dentro de casa, descalço, nu da cintura para cima. E ouvir irmãs e primas no balanço das redes: “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” Por onde andava a mãe naquelas tardes? Talvez dormisse, sofrida. E os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.
Homem de cabelos brancos arrastou cadeira e se sentou. Garçom dele se aproximou com lepidez. Uma cerveja bem gelada. Sorriram, como se se conhecessem há muito. Uma agora, outra depois. Nivaldo sorriu também. E levou aos lábios o copo. Nas paredes, mulheres e homens jovens, bonitos, seminus abriam sorrisos de dentes alvos e perfeitos e mostravam bebidas de variados nomes e marcas. Pela rua passavam carros em disparada. No horizonte, luzes e luzes brilhavam em postes, prédios, casas, em infindável tabuleiro de cores. Nivaldo mirou o perfil do homem de cabelos grisalhos. Talvez o conhecesse. De onde? Desde quando? Colega de faculdade, trinta anos atrás? E o nome? Arnaldo. Não. Cesário. Não. Fagundes. Também não. Mas o conhecia, sim, senhor. O outro o viu a observá-lo e franziu o cenho. Ora, ora! Sair para beber cerveja e ter de aturar um estranho a analisá-lo! Era pedir a conta e se retirar. Nivaldo chamou o garçom, em voz alta, e dirigiu-se ao vizinho: Você é de Palma? O homem quis se fazer de desentendido e virou a cabeça para um lado, a olhar para o interior do bar. Nivaldo insistiu na pergunta e só então o outro fitou os olhos nele. No entanto, Nivaldo queria contemplar a praça e ver os meninos. E quase se assustou ao avistar ao longe, como uma aparição, um corpo estranho em movimento. Vinha de longe para perto, no meio da praça. E era somente uma bicicleta e um garoto a se locomoverem lentamente.
***
Nivaldo deu três passos, parou ao lado de Venâncio e encheu de cerveja o copo do conterrâneo. Puxasse cadeira. Agradeceu o convite. Não ia perguntar a idade do outro, mas, pelas aparências, seria uns dez anos mais velho que ele. Venâncio se pôs a falar de Palma e do passado. Quando o pai lhe comprou uma bicicleta, sentiu-se muito importante. Nivaldo sondava os olhos do outro. Semelhantes aos de um rapazinho que um dia apareceu montado numa bicicleta. E nela se deu o seu primeiro passeio na garupa.
Nivaldo pediu licença para se sentar em outra cadeira. Gostava de olhar para a pracinha. Venâncio riu. Também gostava de praças. Sua família o queria padre. A idéia lhe parecia excelente, porque nascido e criado católico, ao lado de uma igreja. Lembrava-se dela? Nivaldo examinava ora a rua, ora os olhos daquele homem que não podia ser outro senão o rapaz de quase meio século atrás. Daquela bicicleta enorme, quase do tamanho de um burro. Coisa nunca vista na cidade. Cheia de adereços, fitinhas, buzina, farol. Quando crescesse, queria ter uma bicicleta como aquela.
Uma noite avistou de longe o rapaz na calçada, agarrado à bicicleta. Depois o viu montar nela e pedalar até a calçada de sua casa. Queria passear de bicicleta? Talvez estivesse caçoando dele. Queria ou não queria? Num minuto subiu à garupa e saíram pela praça. O jovem pedalava com suavidade, como se flutuasse. E conversava. Não falava da bicicleta. Fez a volta na praça, passou diante da igreja e se dirigiu a uma rua pobre. Acendeu o farol. Meninos corriam. Mulheres sentadas às calçadas. A bicicleta entrava em becos e vielas escuras ou semi-escuras. Com lentidão, como se nunca mais fosse parar. Tomasse cuidado para não aproximar os pés das rodas.
***
Venâncio pediu mais cerveja, beberam, conversaram. Nivaldo também chamou o garçom outras vezes. Na pracinha já não se viam os meninos a correr. Casais se agarravam nos bancos. Carros passavam diante do bar em disparada. Venâncio falava sem parar. Após alguns anos no seminário, decidiu seguir outro caminho. Viajou para São Paulo, onde viveu alguns anos. A bicicleta passou aos irmãos mais novos e nunca mais a viu. Os pais morreram velhos. Chamava o garçom, queria beber. Em dado momento, Nivaldo voltou ao sanitário e, ao regressar, não mais viu o outro. Chamou o garçom: Onde andava Venâncio? O rapaz sorriu: Seu Venâncio era assim mesmo; quando se embriagava, saía sem pagar e noutro dia saldava a dívida. Nivaldo permaneceu no bar. Talvez o outro voltasse para completar a história. Se não voltasse, beberia sozinho. Talvez surgisse outro cidadão de Palma. Trouxesse outra cerveja.
Nivaldo olhava para a pracinha. Aonde andavam os meninos? E a bicicleta com o garoto? Talvez dormissem. Sorveu mais uns goles da bebida. Por que Venâncio se tinha retirado, sem uma despedida? Teria se lembrado do passeio de bicicleta? Sentiu no estômago um peso. Não agüentava mais cerveja. Precisava ir para casa. Quis levantar-se, não conseguiu. Uma bicicleta parecia girar ao redor de sua cabeça, ora com sofreguidão, ora muito lentamente.
Fortaleza, maio de 2005.
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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Carnavalha, algumas impressões (Astrid Cabral)



Por sua complexidade estética, o último livro publicado de Nilto Maciel requereria um alentado estudo. Restrinjo-me, entretanto, às impressões de uma rápida primeira leitura. Quem conhece outros livros do autor não se surpreende pelo alto grau de consciência literária que orienta esta nova produção ficcional.
Em Carnavalha, o projeto literário logo se impõe. Ninguém se iluda com as frases curtas e desataviadas, o ritmo apressado. Assim como os arquitetos trabalham seus edifícios de tijolo e argamassa obedecendo à planta baixa inicial, os criadores de mundos verbais estruturam suas narrativas buscando equilíbrio e harmonia a partir de planos definidos de antemão. Afinal, ficcionistas da categoria de NM não se comportam com o descompromisso ingênuo dos contadores de história embalados pelo simples desenrolar anedótico. Escritores operam se pautando sempre pela construção de um sistema integrado e coeso, a palavra a serviço de um conjunto racionalmente previsto.
O tema do carnaval, tão caro e freqüente em nossa literatura, é desenvolvido neste romance a partir de uma seqüência de painéis, que guardam entre si obsessivo parentesco. A festa do carnaval na pequena cidade Palma vai avançando das tradicionais manifestações lúdicas do Brasil popular para uma carnavalização delirante, culminando com o desenlace de falso assassinato numa delegacia de polícia, a tragicômica morte e ressurreição do bêbado Zuza.
Os múltiplos e breves segmentos componentes do romance mantêm relativa autonomia e representam etapas mais reiterativas que progressivas. Isso imbrica na abolição do tempo narrativo direcionado para um fim, porque o que aí se enfatiza é a duração de um momento especial, o enredo feito à base de modificações bastante sutis. Embora a narrativa seja intensamente dinâmica, seu processo se repete de modo uniforme, sem encadeamento evidente de causa/efeito. Para isso também contribui o quase absoluto espaço público da ação. Note-se que tudo decorre praticamente na rua ou em praças, natural exigência do tema. Os personagens, que permanecem em casa debruçam-se às janelas ou trazem cadeiras para as calçadas, atraídos pelo eletro magnetismo do evento a céu aberto. (Disso se excluem as duas partes centrais do livro, as batalhas que se passam em outros locais e a série elaborada na perspectiva da visão da coruja/estrige, em que ocorre a substituição do espaço exterior pelo interior doméstico, ambos se sobressaindo de modo mais nítido a partir do contraste.)
Observa-se que no desenvolvimento do romance, o autor, arrebatado pela contemporânea hegemonia do visual, faz parcimonioso e conciso uso das palavras. Assim é que nos apresenta uma perspectiva cinematográfica, relatando ocorrências de caráter inteiramente exterior: aquelas que olhos captam, ou que ouvidos testemunham através de diálogos e monólogos. Os personagens surgem, portanto, privados da dimensão introspectiva fornecida pelos pensamentos, e são totalmente arrastados pela euforia carnavalesca, que não deixa disponibilidade à contemplação ou reflexão, tamanha a orgia dos sentidos convocados.
O não aprofundamento dos personagens os torna, em conseqüência, esquemáticos. E uma vez que estamos diante de uma infinidade deles, o enfoque do autor concentra-se no coletivo. Pode-se dizer que não existe hierarquia entre eles, e a habitual distinção entre protagonistas, antagonistas e secundários resulta praticamente imperceptível. Com mão de mestre, NM apresenta-nos um painel social bem desenhado, em que se pode inclusive detectar o conflito estabelecido pelos habitantes locais e o grupo de turistas vindo de Brasília, comunidades timbradas por seus diferentes centros urbanos.
A manipulação dos personagens em Carnavalha traz-me à lembrança outro importante romance brasileiro focalizando o carnaval. Refiro-me à Cidade calabouço, do mineiro Rui Mourão. Há nesse item alguns pontos de semelhança entre eles, pois a grande festa popular contribui para o sufoco das individualidades, dissolvidas que são na presença compacta da massa.
A meu ver, a grande jogada de Nilto Maciel é a introdução dos animais na categoria personagens. Palma, local geográfico da ação, por se constituir num mundo urbano ainda rústico, propicia, em viés realista, a presença e o convívio desses seres da natureza. Estes, porém, comparecem embrulhados pela magia das lendas populares e emblematizam com vigor o lado instintivo e primário do carnaval. A presença dos animais frisa o limiar entre o natural e o urbano e tal ambigüidade impulsiona o fluxo das fantasias pessoais do autor. Vejam-se as sete admiráveis batalhas travadas (com Boi da Cara Preta, Megalinha Choca, Cães Danados, Gato Borralheiro, Cabrão Pretinho, Pangaré Branco e Barrão das Lajes)
É deveras apreciável o intenso intercâmbio promovido pelo escritor entre o plausível e o implausível, o racional e o irracional. Nas partes centrais do livro (quarta e quinta), que poderiam até ser interpretadas como um parêntese de carnavalização na trama fundamental do carnaval propriamente dito, é onde mais se adensam as incríveis ousadias da imaginação emancipada do realismo. Beirando o non-sense, dá-se uma espécie de dança delirante nos fatos aí narrados. (Ressalta-se no meio destes a impressionante questão dos dentes). É como se o leitor tivesse nas mãos um caleidoscópio de cenas originais, eróticas e hilariantes. Cada uma delas introduzida pelo olhar da coruja, a sábia ave noturna, cuja função é revelar o que jaz obscuro e escondido em nossa absurda humanidade.
Antes de finalizar, comento de relance a intencional mestiçagem lingüística à que NM procede na fatura de Carnavalha, em total consangüinidade com o tema escolhido. Se o autor adota de preferência o registro coloquial com vocábulos e expressões populares, lugares-comuns, gírias etc., valorizando a presença do povão personagem, nem por isso abre mão da cultura de elite que lhe pertence como criador urbano. O livro é rico de rastros literários, não só os explícitos nas numerosas epígrafes, mas os que surgem camuflados testemunhando a forte presença bíblica, bem como as heranças cervantina e kafkiana.
Carnavalha é obra que condensa tanto realidade social quanto fantasia pessoal, assim expressando Carnapalma e carnavalma, significativos neologismos do autor.
10/11/07