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terça-feira, 20 de novembro de 2007

Noite com a Poesia de Anderson Braga Horta (Romeu Jobim)


(Anderson Braga Horta)


Meu conhecimento com Anderson Braga Horta data do final da década de 1950, e ele era apenas um jovem de pouco mais de vinte anos. Porfiávamos os dois, na época, po um cargo de redator da Câmara dos Deputados e, como estivéssemos cumprindo a maratona, um dia o notei. Parecia um menino, mas é nos meninos que se encontram os homens. E Anderson já era o grande homem que continuou sendo.
Uma vez em Brasília e trabalhando juntos, nos cargos conquistados, descobri que se tratava também de excelente poeta e que, como poeta, já ganhava prêmios e da melhor categoria. E foi então que, com Altiplano, sobre a nascente Capital, mereceu diversos galardões, sendo esse um poema que, além de marcá-lo e acompanhá-lo em tudo que produziu depois, também se inscreveu entre os mais belos que já se fizeram sobre a nova Capital e a epopéia de sua construção.
Deste modo, pedindo a todos que imaginem Altiplano como um grande pano de fundo colocado neste auditório, rogo licença para deixar de dizê-lo, nas amostras que trouxe. Assim, do livro quase homônimo, já que intitulado Altiplano e Outros Poemas, leio apenas três, a saber: [“Criança Chorando”, “Minha Filha” e “O Legado”].
Por que escolhi esses poemas, entre tantos de igual ou maior beleza, segundo a óstica de quem conhece o livro em tela? Por duas razões muito simples: porque neles faísca o mais refulgente valor estético e porque revelam ainda, em plenitude, o pai e o chefe de família enlevado e envolvido nos cuidados da prole.
Nos dois primeiros poemas, aparecem seus gêmeos, o fruto da união com a companheira que lhe deram os céus – e por isso é que se chama Célia –, gêmeos que outros não são hoje senão a simpátioca Advogada Marília Santos Horta e o conceituado Médico Anderson Santos Horta, a primeira aqui presente, mas o segundo em algum hospital, salvando vidas.
No terceiro poema, além do pai zeloso dos próprios filhos, shá o intelectual do seu e de todos os tempos a excogitar sobre o sono e o despertar de todos os filhos do homem, a continuidade da espécie.
O poema que ora passo a ler é "Celacanto", do livro Marvário: ....
A escolha desse poema, escrito em sextilhas com seis sílabas poéticas em cada verso, eu a fiz não só pela magia do intrigante peixe – fóssil vivo de 300 milhões de anos, cujo mistério o poeta afirma que decifra e cala –, mas porque o poema como que indica uma das faces de sua personalidade, sempre um tanto enigmática, quem sabe em decorrência de sua condição de bom mineiro e bom poeta.
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Na apresentação do livro Incomunicação, informa o escritor Alan Viggiano que contém poemas entre 1957 e 1963, portanto de uma fase coincidente com o fim da estada do poeta no Rio de Janeiro e o começo de sua presença em Brasília, acrescentado que “é um tanto sombria, algo tristonha e angustiosa, porém jamais pessimista e quase sempre lírica”.
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Mas o poeta, que assim transubstancia a angústia e tantos sentimentos e visões em arte, também sabe irromper em protesto e revolta contra as injustiças, consoante se lê em muitos de seus poemas, como neste "O Menino", de Cronoscópio:
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Exímio artista da palavra, capaz de usá-la na medida de sua plasticidade e magia, Anderson Braga Horta conhece, em profundidade, os segredos do ofício que exercita. Sua poética, por isso, no afã de chegar às rutilâncias e culminâncias a que chega, às vezes lança mão de recursos infreqüentes no mister, entre eles disposições visuais e termos com inserções que lhes multiplicam o significado.
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Filho de mãe poetisa e pai poeta, ambos do melhor quilate, creio que nada como este "Retrato Indimensional", de 50 Poemas Escolhidos Pelo Autor, para fechar esta amostragem:
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Por certo que, com os textos lidos, não consegui mostrar o poeta em sua inteireza, tamanha é a quantidade, a diversidade e a qualidade de seus poemas, ao longo de uma vida dedicada à Literatura, sobretudo no gênero da poesia, mas também no da prosa, em que, com igual mestria, se dedica à crônica, ao conto, ao ensaio, à crítica literária e à tradução.
A verdade entretanto é que, se melhor houvesse sabido escolher, para esta amostragem, os poemas acaso mais representativos da arte poética de Anderson, ainda assim dele não teria dado uma visão plena. Troncos de grandes árvores não se estreitam num só abraço. Assim acontece com "O Jequitibá de Carangola", título de um de seus belos poemas (Pulso, 2000). Assim acontece, afinal, com Anderson Braga Horta. Só seus sonetos, por exemplo – e nenhum deles cheguei a dizer – exigiriam mais de uma noitada, como esta.
De qualquer modo, creio haver alcançado meu intento: o de homenagear o grande poeta, ao ensejo de seus setenta anos, a esta altura acrescidos de quase mais um, tantos foram os meses que tive de aguardar, na fila.
Mas um ponto me absolve e reconforta. De tanta constância e equilíbrio é o valor dos textos de Anderson Braga Horta, que todos os seus poemas, como se um apenas, à semelhança da flor tentada explicar por Marcel Proust, são, a rigor e simplesmernte, uma esplendorosa realidade artística. Apenas isso. Apenas isso? Não, tudo isso.
Por fim, como o nosso grande e iluminado poeta – e não me arreceio de afirmar ser este juízo unânime, entre os que o conhecem –, como o nosso grande e iluminado poeta, repito, se acha presente, gostaria de pedir-lhe que, para encerrar essa amostragem, nos honrasse a todos, dizendo, de viva voz, um ou alguns de seus poemas.
(Brasília, 2006.)
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domingo, 18 de novembro de 2007

A bicicleta (Nilto Maciel)




Sorveu Nivaldo a cerveja do copo e olhou para a pracinha. Meninos corriam, brincavam. Homens e mulheres, sentados às mesas do bar, falavam alto. Nas paredes, jovens seminus e esbeltos sorriam e mostravam garrafas coloridas. Mocinhas seminuas posavam em praia. Estirou as pernas debaixo da mesinha e virou a cabeça para a rua. Vendedor de picolés empurrava carrinho e gritava. Garotos atenderam o chamado. No tempo de milho verde o melhor talvez não fosse comer pamonha ou canjica. Às vezes a mãe cozinhava e assava espigas. Das palhas fazia petecas. Nivaldo e outros meninos jogavam nas calçadas e dentro de casa. Nas tardes quentes, irmãs e primas se balançavam em redes, cantavam e comiam batata doce. “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” “Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”. Dia de festa quando a mãe decidia assar castanhas de caju. Ora no próprio fogão, ora em braseiros no quintal. Das cascas das castanhas manava um líquido quente. Tostadas, eram retiradas do fogo e descascadas. Nivaldo sorria para os meninos na praça. Eles também riam, mas para eles mesmos. O vendedor de picolés gritava de vez em quando e se abanava com chapéu de palha. Nivaldo lambuzava os beiços de cerveja. Carros passavam entre a calçada e a praça. Na Palma do tempo das irmãs e primas a balançarem-se em redes apenas dois carros assustavam meninos, cachorros, jumentos: um jipe e um caminhão. O trem apitava longe e sumia detrás das matas. Nivaldo corria à janela e só avistava a fumaça. No dia da morte de Vargas (ou terá sido de outro personagem?) a cidade parecia silenciosa. Não, não havia silêncio. Rádios tocavam desde cedo música fúnebre. Nenhum menino na rua, nas calçadas. O sol se escondia atrás das nuvens. Mandaram-no à casa de um vizinho. Um velho, sentado numa cadeira de balanço, escarrava e cuspia numa bacia, a todo instante. A música inundava o ar de melancolia, morte. O chão frio, o silêncio, tudo cinzento. O mundo parecia próximo do fim. As portas da igreja-matriz fechadas. Pombos e passarinhos voavam para lá e para cá. À música fúnebre sucedia-se outra.
Nivaldo bebeu mais e mais. Na praça a vida fervilhava. A vida fervilhou ou fervilhava? E o cheiro de batata doce? Ia à janela, espiava a rua, queria sair, brincar. O sol, entretanto, de tão quente, o impelia a zanzar dentro de casa, descalço, nu da cintura para cima. E ouvir irmãs e primas no balanço das redes: “Índia, teus cabelos nos ombros caídos...” Por onde andava a mãe naquelas tardes? Talvez dormisse, sofrida. E os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.
Homem de cabelos brancos arrastou cadeira e se sentou. Garçom dele se aproximou com lepidez. Uma cerveja bem gelada. Sorriram, como se se conhecessem há muito. Uma agora, outra depois. Nivaldo sorriu também. E levou aos lábios o copo. Nas paredes, mulheres e homens jovens, bonitos, seminus abriam sorrisos de dentes alvos e perfeitos e mostravam bebidas de variados nomes e marcas. Pela rua passavam carros em disparada. No horizonte, luzes e luzes brilhavam em postes, prédios, casas, em infindável tabuleiro de cores. Nivaldo mirou o perfil do homem de cabelos grisalhos. Talvez o conhecesse. De onde? Desde quando? Colega de faculdade, trinta anos atrás? E o nome? Arnaldo. Não. Cesário. Não. Fagundes. Também não. Mas o conhecia, sim, senhor. O outro o viu a observá-lo e franziu o cenho. Ora, ora! Sair para beber cerveja e ter de aturar um estranho a analisá-lo! Era pedir a conta e se retirar. Nivaldo chamou o garçom, em voz alta, e dirigiu-se ao vizinho: Você é de Palma? O homem quis se fazer de desentendido e virou a cabeça para um lado, a olhar para o interior do bar. Nivaldo insistiu na pergunta e só então o outro fitou os olhos nele. No entanto, Nivaldo queria contemplar a praça e ver os meninos. E quase se assustou ao avistar ao longe, como uma aparição, um corpo estranho em movimento. Vinha de longe para perto, no meio da praça. E era somente uma bicicleta e um garoto a se locomoverem lentamente.
***
Nivaldo deu três passos, parou ao lado de Venâncio e encheu de cerveja o copo do conterrâneo. Puxasse cadeira. Agradeceu o convite. Não ia perguntar a idade do outro, mas, pelas aparências, seria uns dez anos mais velho que ele. Venâncio se pôs a falar de Palma e do passado. Quando o pai lhe comprou uma bicicleta, sentiu-se muito importante. Nivaldo sondava os olhos do outro. Semelhantes aos de um rapazinho que um dia apareceu montado numa bicicleta. E nela se deu o seu primeiro passeio na garupa.
Nivaldo pediu licença para se sentar em outra cadeira. Gostava de olhar para a pracinha. Venâncio riu. Também gostava de praças. Sua família o queria padre. A idéia lhe parecia excelente, porque nascido e criado católico, ao lado de uma igreja. Lembrava-se dela? Nivaldo examinava ora a rua, ora os olhos daquele homem que não podia ser outro senão o rapaz de quase meio século atrás. Daquela bicicleta enorme, quase do tamanho de um burro. Coisa nunca vista na cidade. Cheia de adereços, fitinhas, buzina, farol. Quando crescesse, queria ter uma bicicleta como aquela.
Uma noite avistou de longe o rapaz na calçada, agarrado à bicicleta. Depois o viu montar nela e pedalar até a calçada de sua casa. Queria passear de bicicleta? Talvez estivesse caçoando dele. Queria ou não queria? Num minuto subiu à garupa e saíram pela praça. O jovem pedalava com suavidade, como se flutuasse. E conversava. Não falava da bicicleta. Fez a volta na praça, passou diante da igreja e se dirigiu a uma rua pobre. Acendeu o farol. Meninos corriam. Mulheres sentadas às calçadas. A bicicleta entrava em becos e vielas escuras ou semi-escuras. Com lentidão, como se nunca mais fosse parar. Tomasse cuidado para não aproximar os pés das rodas.
***
Venâncio pediu mais cerveja, beberam, conversaram. Nivaldo também chamou o garçom outras vezes. Na pracinha já não se viam os meninos a correr. Casais se agarravam nos bancos. Carros passavam diante do bar em disparada. Venâncio falava sem parar. Após alguns anos no seminário, decidiu seguir outro caminho. Viajou para São Paulo, onde viveu alguns anos. A bicicleta passou aos irmãos mais novos e nunca mais a viu. Os pais morreram velhos. Chamava o garçom, queria beber. Em dado momento, Nivaldo voltou ao sanitário e, ao regressar, não mais viu o outro. Chamou o garçom: Onde andava Venâncio? O rapaz sorriu: Seu Venâncio era assim mesmo; quando se embriagava, saía sem pagar e noutro dia saldava a dívida. Nivaldo permaneceu no bar. Talvez o outro voltasse para completar a história. Se não voltasse, beberia sozinho. Talvez surgisse outro cidadão de Palma. Trouxesse outra cerveja.
Nivaldo olhava para a pracinha. Aonde andavam os meninos? E a bicicleta com o garoto? Talvez dormissem. Sorveu mais uns goles da bebida. Por que Venâncio se tinha retirado, sem uma despedida? Teria se lembrado do passeio de bicicleta? Sentiu no estômago um peso. Não agüentava mais cerveja. Precisava ir para casa. Quis levantar-se, não conseguiu. Uma bicicleta parecia girar ao redor de sua cabeça, ora com sofreguidão, ora muito lentamente.
Fortaleza, maio de 2005.
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