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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Muito antes disso (Nilto Maciel)

























(Meninos brincando, Cândido Portinari)



Joana plantava e colhia verduras no quintal. Comprava estrume e sementes e organizava canteiros, cercados de pedras. Erigiu também canteiros suspensos em estacas, para preservar as plantas da fome de gatos, ratos e galinhas. Convocava os filhos a ajudá-la no revolver a terra e aguar as verduras. As minhocas, retorcendo-se, davam nojo nos meninos. Sobretudo em Juvêncio. Para aumentar o sacrifício, foram obrigados a fazer entregas em domicílios e levar o produto da safra à feira da cidade. Uma vergonha!
Muito antes disso, Joana se escondia na cozinha ou no quintal, a lavar roupas. Juvêncio se arreliava quando ela o impedia de brincar na calçada. Escondia-se de si mesmo durante horas. Parecia dormir em pé ou sentado. Despertava assustado. Não sabia mais por onde andava a mãe. Talvez dormisse também, sofrida. E onde se achavam os irmãos? Talvez matassem lagartixas no quintal. O pai certamente conversava lorotas na mercearia.
De noite, no quarto, havia sempre uma lamparina acesa. Joana dormia numa rede, junto às dos filhos. O pai noutro quarto. Sem sono, ela saía da rede e se punha a matar muriçocas. Não demorou muito, apareceram em seu corpo eczemas. Ela se maldizia continuamente. Coçava-se sem parar. E mandava Juvêncio comprar pomada Minâncora. Fosse à mercearia pedir dinheiro ao pai. O caminho mais curto, uma ruazinha estreita, parecia ao menino o pior dos caminhos, porque de repente saíam dos quintais manadas de bois. Antes de dormir, o menino rezava e pedia a Deus e a todos os santos pela saúde da mãe. Não por medo dos bois, mas para não ver Joana sofrer.
Mais do que dos animais, Ju tinha pavor de tomar banho. Não da água fria, mas da grande caixa-d’água suspensa abaixo do telhado. Às vezes a água saía pelo ladrão. Ju olhava para cima e imaginava a caixa a desabar. Banhava-se às pressas. Joana se irritava: fosse tomar banho direito, tirar a rabugem. Ou queria virar porco?
Chegada a noite, outro medo maior se apossava dele: do escuro, da escuridão. Ir à cozinha, nem pensar. Ao lado dela a despensa cheia de baratas e assombrações. Ir à sala de jantar somente enquanto a mãe por lá estivesse, na cozinha, lavando panelas e pratos, ajeitando uma coisa ou outra, fechando portas e janelas. Se queria beber água, aguentava a sede. Se queria urinar, deixava para mais tarde, na rede, embora o castigo por isso fosse horrível. Almas e outras entidades habitavam as trevas.
Joana também precisava cozinhar. E novamente mandava Juvêncio à mercearia. Tarefa penosa essa de conduzir, nos braços, achas para o fogão. Não somente pelo peso delas, mas, sobretudo, pelo incômodo que causavam. Ora, da mercearia até a casa ia uma distância de mais de quinhentos metros, no mínimo. Os braços se feriam, se enchiam de calombos. E a vergonha de andar pelas ruas feito um burro de carga? Vergonha de que, se você não está roubando?
O pior se dava, porém, quando as baratas, aninhadas entre as madeiras, resolviam passear por seus braços. Não havia outra alternativa senão arremessar tudo ao chão. O pior momento ainda não seria esse, mas o anterior – quando descia ao porão da mercearia, pelos fundos, onde a lenha se amontoava. Uma descida aos infernos! Primeiro um portão de madeira, depois a treva. No meio dela, os paus arrumados horizontalmente junto à parede e, entre eles, toda a sorte de insetos e bichos: sapos, ratos, lagartas, aranhas, lacraias, formigas e as terríveis baratas. Todas enormes, pretas e fedorentas.
Antes de dormir, o menino pedia a bênção à mãe, fechava os olhos e suplicava a Deus e a todos os santos o prêmio maior da loteria para o pai e, para a mãe, a cura das eczemas. Acordava sobressaltado, quando a mãe batia em suas pernas na vã tentativa de livrá-lo dos insetos. O pai roncava no quarto ao lado. Durma, meu filho. Estou matando muriçocas. E ele dormia de novo.
Muito antes disso, porém, Juvêncio apenas brincava e via nos olhos de Joana um sorriso de quem era feliz.
Fortaleza, setembro de 2005.
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terça-feira, 20 de novembro de 2007

Noite com a Poesia de Anderson Braga Horta (Romeu Jobim)


(Anderson Braga Horta)


Meu conhecimento com Anderson Braga Horta data do final da década de 1950, e ele era apenas um jovem de pouco mais de vinte anos. Porfiávamos os dois, na época, po um cargo de redator da Câmara dos Deputados e, como estivéssemos cumprindo a maratona, um dia o notei. Parecia um menino, mas é nos meninos que se encontram os homens. E Anderson já era o grande homem que continuou sendo.
Uma vez em Brasília e trabalhando juntos, nos cargos conquistados, descobri que se tratava também de excelente poeta e que, como poeta, já ganhava prêmios e da melhor categoria. E foi então que, com Altiplano, sobre a nascente Capital, mereceu diversos galardões, sendo esse um poema que, além de marcá-lo e acompanhá-lo em tudo que produziu depois, também se inscreveu entre os mais belos que já se fizeram sobre a nova Capital e a epopéia de sua construção.
Deste modo, pedindo a todos que imaginem Altiplano como um grande pano de fundo colocado neste auditório, rogo licença para deixar de dizê-lo, nas amostras que trouxe. Assim, do livro quase homônimo, já que intitulado Altiplano e Outros Poemas, leio apenas três, a saber: [“Criança Chorando”, “Minha Filha” e “O Legado”].
Por que escolhi esses poemas, entre tantos de igual ou maior beleza, segundo a óstica de quem conhece o livro em tela? Por duas razões muito simples: porque neles faísca o mais refulgente valor estético e porque revelam ainda, em plenitude, o pai e o chefe de família enlevado e envolvido nos cuidados da prole.
Nos dois primeiros poemas, aparecem seus gêmeos, o fruto da união com a companheira que lhe deram os céus – e por isso é que se chama Célia –, gêmeos que outros não são hoje senão a simpátioca Advogada Marília Santos Horta e o conceituado Médico Anderson Santos Horta, a primeira aqui presente, mas o segundo em algum hospital, salvando vidas.
No terceiro poema, além do pai zeloso dos próprios filhos, shá o intelectual do seu e de todos os tempos a excogitar sobre o sono e o despertar de todos os filhos do homem, a continuidade da espécie.
O poema que ora passo a ler é "Celacanto", do livro Marvário: ....
A escolha desse poema, escrito em sextilhas com seis sílabas poéticas em cada verso, eu a fiz não só pela magia do intrigante peixe – fóssil vivo de 300 milhões de anos, cujo mistério o poeta afirma que decifra e cala –, mas porque o poema como que indica uma das faces de sua personalidade, sempre um tanto enigmática, quem sabe em decorrência de sua condição de bom mineiro e bom poeta.
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Na apresentação do livro Incomunicação, informa o escritor Alan Viggiano que contém poemas entre 1957 e 1963, portanto de uma fase coincidente com o fim da estada do poeta no Rio de Janeiro e o começo de sua presença em Brasília, acrescentado que “é um tanto sombria, algo tristonha e angustiosa, porém jamais pessimista e quase sempre lírica”.
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Mas o poeta, que assim transubstancia a angústia e tantos sentimentos e visões em arte, também sabe irromper em protesto e revolta contra as injustiças, consoante se lê em muitos de seus poemas, como neste "O Menino", de Cronoscópio:
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Exímio artista da palavra, capaz de usá-la na medida de sua plasticidade e magia, Anderson Braga Horta conhece, em profundidade, os segredos do ofício que exercita. Sua poética, por isso, no afã de chegar às rutilâncias e culminâncias a que chega, às vezes lança mão de recursos infreqüentes no mister, entre eles disposições visuais e termos com inserções que lhes multiplicam o significado.
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Filho de mãe poetisa e pai poeta, ambos do melhor quilate, creio que nada como este "Retrato Indimensional", de 50 Poemas Escolhidos Pelo Autor, para fechar esta amostragem:
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Por certo que, com os textos lidos, não consegui mostrar o poeta em sua inteireza, tamanha é a quantidade, a diversidade e a qualidade de seus poemas, ao longo de uma vida dedicada à Literatura, sobretudo no gênero da poesia, mas também no da prosa, em que, com igual mestria, se dedica à crônica, ao conto, ao ensaio, à crítica literária e à tradução.
A verdade entretanto é que, se melhor houvesse sabido escolher, para esta amostragem, os poemas acaso mais representativos da arte poética de Anderson, ainda assim dele não teria dado uma visão plena. Troncos de grandes árvores não se estreitam num só abraço. Assim acontece com "O Jequitibá de Carangola", título de um de seus belos poemas (Pulso, 2000). Assim acontece, afinal, com Anderson Braga Horta. Só seus sonetos, por exemplo – e nenhum deles cheguei a dizer – exigiriam mais de uma noitada, como esta.
De qualquer modo, creio haver alcançado meu intento: o de homenagear o grande poeta, ao ensejo de seus setenta anos, a esta altura acrescidos de quase mais um, tantos foram os meses que tive de aguardar, na fila.
Mas um ponto me absolve e reconforta. De tanta constância e equilíbrio é o valor dos textos de Anderson Braga Horta, que todos os seus poemas, como se um apenas, à semelhança da flor tentada explicar por Marcel Proust, são, a rigor e simplesmernte, uma esplendorosa realidade artística. Apenas isso. Apenas isso? Não, tudo isso.
Por fim, como o nosso grande e iluminado poeta – e não me arreceio de afirmar ser este juízo unânime, entre os que o conhecem –, como o nosso grande e iluminado poeta, repito, se acha presente, gostaria de pedir-lhe que, para encerrar essa amostragem, nos honrasse a todos, dizendo, de viva voz, um ou alguns de seus poemas.
(Brasília, 2006.)
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