A tradição cearense de publicação de jornais e revistas literárias se enobreceu em 2005 com a criação de Caos Portátil, Um Almanaque de Contos, por iniciativa dos escritores Jorge Pieiro e Pedro Salgueiro. Longe da tradição, porém, o periódico é dedicado exclusivamente ao conto. Sem deixar de lado os clássicos, os mortos e os contistas mais experimentados (alguns com vários livros publicados), os editores dão destaque aos mais jovens, aos principiantes. A edição nº 5, de 2007, exibe minicontos de Dalton Trevisan, “um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos”. Presentes outros nomes menos conhecidos, como Ângela Gutiérrez, Carmélia Aragão (apesar de muito jovem, já tem livro publicado e muito bem recebido pelos críticos), Floriano Martins, Genuíno Sales, Inez Figueiredo, Jorge Pieiro, Nilto Maciel, Patrícia Tenório, Paulo Veras (falecido precocemente), Pedro Salgueiro, Raimundo Netto e Ronaldo Correia de Brito. Os demais são muito jovens (à exceção de Alcides Matos, Aldir Brasil Jr., Gilberto Machado, Raimundo Rocha e Ruth de Paula), quase todos inéditos em livro.
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segunda-feira, 26 de novembro de 2007
sábado, 24 de novembro de 2007
A imortalidade pelas obras (Enéas Athanázio)
Calmon: o homem e a cidade
Miguel Calmon du Pin e Almeida (1879/1935), o sobrinho, nasceu na Bahia e pertenceu a uma família aristocrática de latifundiários e políticos ligados ao Império e à Primeira República. Herdou o nome do tio, o Marquês de Abrantes, figura de expressão na vida nacional da época. Outros membros da família ostentaram, mais tarde, idêntico nome, dizendo-se que existiram vários deles. Sempre me intrigou a razão pela qual a Vila de Calmon, então pertencente ao município de Porto União e hoje comuna independente recebeu esse nome e onde estaria a ligação daquele homem público com nosso Estado, justificando o batismo de uma estação, hoje cidade, à margem da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, no Vale do Rio do Peixe, com seu nome. Minhas leituras a respeito pouco ou nada esclareceram e, agora, lendo um robusto livro a respeito, anoto aqui as conclusões a que cheguei.
Em 1936, cerca de um ano após o falecimento de Miguel Calmon, sua viúva, Alice da Porciúncula, doava ao Museu Histórico Nacional (MHN), do Rio de Janeiro, considerável quantidade de objetos que pertenceram à família e ornavam o palacete onde vivia o casal, no bairro de Botafogo. As intermediações para a entrega foram feitas pelo historiador Pedro Calmon, sobrinho do falecido e seu biógrafo, mais tarde o magnífico reitor da Universidade do Brasil. O historiador Gustavo Barroso, primeiro diretor do MHN, recebeu com entusiasmo a doação e aceitou de pronto as condições estabelecidas pela viúva. A Coleção consistia em móveis, objetos de casa, jóias, prataria, souvenirs de viagens, fotografias, tapetes e quadros, livros, documentos, obras do próprio marido etc. Pela qualidade e quantidade, recebeu o nome de Coleção Miguel Calmon e foi acomodada em sala própria, onde permaneceu durante trinta anos até que a direção do MHN mudou de orientação e desmontou a Coleção, espalhando-a no acervo e recolhendo em parte à reserva técnica da Casa. Partindo dessa doação, fato pouco comum entre nós e que completou 60 anos em 1996, a antropóloga social Regina Abreu publicou o livro “A Fabricação do Imortal” (Lapa/Rocco – Rio – 1996), onde estuda a memória, a história e as estratégias da consagração no Brasil. Analisando as condições da doação e o conteúdo da Coleção, escolhido com rigor e critério pela doadora, a autora mostra a preocupação em mostrar o lado público da vida de Miguel Calmon, aquela faceta a ser exibida e preservada, sem permitir intromissões e olhares indiscretos na vida privada do casal. Seria, em síntese, uma forma de “fabricar a imortalidade”, construindo a imagem do homem público circunspeto e dedicado ao País, perpetuando assim a sua memória. Sem herdeiros diretos, Alice da Porciúncula pôde realizar a doação sem problemas, merecendo por essa atitude elogios e reconhecimento, inclusive da autora do livro.
Ainda que não seja uma biografia e nem essa foi a intenção de Regina Abreu, o livro fornece inúmeras e importantes informações a respeito desse personagem ligado para sempre ao nosso Estado. Nascido em berço rico, Calmon mereceu esmerada educação. Freqüentou o tradicional Colégio 7 de Setembro, ninho da elite baiana, e depois se diplomou em engenharia civil pela celebrada Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Embora afirme a autora que ele sempre “manteve viva a solidariedade com os colegas”, pouco informa sobre essa fase universitária de sua vida. Nesse ponto, aliás, a obra comete curiosa omissão, uma vez que não faz qualquer referência ao escritor carioca Lima Barreto ou a suas obras. Como se sabe, ele foi colega de Calmon na Escola Politécnica e tinha por ele profunda aversão. Dizia ter sido menosprezado pelo baiano rico, a quem considerava um protegido da sorte e apadrinhado dos poderosos, enquanto ele amargava a mais vil pobreza, à margem da miséria. Seu panfleto “O Ideal de Bel Ami”, comprando Calmon ao personagem de Maupassant, é uma terrível crítica ao colega. Quando embriagado, Lima Barreto afirmava que “compraria uma espada para matar o Bel Ami.” Em sua biografia do escritor, Francisco de Assis Barbosa detalha as manifestações de Lima Barreto contra Calmon, inclusive com base em depoimentos de contemporâneos. Seja como for, parece que Calmon nunca levou em conta as investidas do colega ou fez por ignorá-las. Nada existe indicando que tenha se incomodado com isso.
Tudo indica que Calmon deixou os bancos da Politécnica bem preparado, tendo feito um curso esmerado. Formando-se muito jovem, retornou à Bahia para exibir aos conterrâneos seus talentos de engenheiro e tecnocrata competente. Nessa fase histórica os engenheiros, inclusive militares, desfrutavam de grande prestígio e acreditavam que a eles cabia a criação do Brasil moderno, alinhado com as recentes conquistas da ciência e da técnica. Calmon aliava essa busca da modernidade com a tradição de sua família de homens públicos destacados. Não tardou a conquistar uma cadeira na Politécnica local e iniciar importantes obras de engenharia. Nomeado Secretário de Estado da Agricultura, Viação e Obras Públicas, “seu programa de trabalho consiste em fazer progredir a terra natal.” Correligionário e admirador de Rui Barbosa, contando com a simpatia dele e o apoio poderoso do próprio pai, é eleito Deputado Federal pela Bahia. Mais tarde seria eleito Senador, mas perde o mandato com a Revolução de 30, afastando-se em definitivo da vida pública. Como Gilberto Amado, também Senador, encontrava-se na Europa por ocasião da vitória de Vargas e já retornou à pátria sem mandato, tornado-se um “carcomido” ou um “decaído”, como diziam os revolucionários vitoriosos dos políticos da República Velha.
Miguel Calmon foi duas vezes Ministro de Estado. Na primeira foi titular da pasta da Viação e Obras Públicas no governo de Afonso Pena, considerado “o presidente das ferrovias”, entre 1906 e 1909. Na segunda ocupou a pasta da Agricultura entre 1922 e 1926. O exercício de tantas e tão variadas funções, aliado à observação e ao estudo, lhe conferiu vasta visão do país e de seus problemas, como deixaria registrado em seus escritos. Com efeito, entendia dos temas mais díspares e sobre eles opinava com seguro conhecimento. Sua bibliografia contém ensaios sobre aplicações do álcool, problemas do açúcar, valorização do café, produção e comércio da borracha, o algodão no mundo, a instrução pública, fastos econômicos, pedagogia moderna, problemas do cacau, o homem público e a história, cooperativas de crédito, tendências nacionais e influências estrangeiras, além de conferências sobre temas históricos e discursos. Celebrizou-se como o mais jovem ministro brasileiro, tendo assumido o cargo com apenas 27 anos de idade. Afonso Pena também deu nome a uma das estações ferroviárias no mesmo trecho – Presidente Pena.
Entre suas realizações como ministro alinham-se importantes obras, muitas delas referidas pela autora e outras omitidas. Avultam a Exposição Nacional, realizada na Urca, em 1908, em local amplo e com repercussão internacional; o apoio e a realização da Missão Rondon, com os objetivos de mapear o país, instalar linhas telegráficas e conhecer os indígenas, cuja homogeneização com o povo nacional era perseguida; a implantação de colônias agrícolas e missionárias no hinterland, buscando amansar e educar os indígenas bravios; a implantação do abastecimento de água de Paquetá; a melhoria do abastecimento de água do Rio de Janeiro; o povoamento do solo e o incentivo à entrada de colonos estrangeiros; a construção da estrada de ferro de Alcobaça (BA); a construção da estrada de ferro de Goiás; a construção da estrada de ferro de Mato Grosso; a instalação do telégrafo nas estações ferroviárias, ligando as populações ao sistema nacional de comunicações; realização de obras nos portos; saneamento de regiões insalubres; abertura e melhoramentos de rodovias etc. Como se vê, a ferrovia foi uma constante em suas preocupações, a idéia do trem cortando as matas parecia-lhe “a utilização da ciência em prol da domesticação da natureza” (p. 80). “Os trens – pensava ele, segundo a autora – significavam o poder do maquinismo, o domínio do homem sobre as forças da natureza. Sinalizavam, também, a integração das populações dispersas no território nacional.” Como dizia Machado de Assis, “o Brasil é uma criança que engatinha e só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro” (p. 103). As ferrovias integravam a permanente busca da modernidade que presidia sempre sua ação como homem público. Esse pensamento, infelizmente, foi esquecido por alguns iluminados do Século XX que optaram pelo estradismo, entregando as ferrovias ao abandono e à sucata em que se transformaram. Investimentos caríssimos e demorados estão hoje entregues à intempérie e ao vandalismo.
É curioso observar que a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, no trecho entre Porto União (SC) e Marcelino Ramos (RS), cortando todo o Vale do Rio do Peixe (depois RVPSC e RFF S/A), nem sequer é mencionada. É verdade que Calmon deixou o ministério em 1909 e essa ferrovia só foi concluída em 1910, mas foi justamente nela que mereceu a grande homenagem de nominar uma cidade. Terá ele considerado aquele trecho uma obra menor? Terá ele visitado, em suas andanças ministeriais, aquela região? Terá conhecido o local da cidade que hoje tem seu nome? São perguntas de difícil ou impossível resposta.
Além dessas realizações materiais, assinale-se que foi escritor bastante ativo, tendo deixado ensaios, conferências, discursos, teses e relatórios que bem revelam um erudito muito informado e ligado às coisas de seu tempo. A biblioteca pessoal, integrante da Coleção, indica que muito lia e lia bem.
Concluindo, pode-se dizer que se Miguel Calmon não alcançou a “imortalidade fabricada” através da Coleção doada ao MHN e à postura do homem público e se muitas de suas realizações, em especial as ferrovias, desapareceram ou estão desaparecendo, ele alcançou a imortalidade por outro caminho: o batismo da cidade de Calmon com o seu nome. É uma homenagem imperecível que os calmonenses preservam com ardor e que perpassará os tempos, salvo que algum outro iluminado, algum dia, decida mudar o nome da cidade. Embora seja improvável, isso é possível, pois, como dizia Monteiro Lobato, os brasileiros se impressionam muito com as sonoridades e imaginam que trocando os nomes as coisas se modificam.
Vamos esperar, porém, que nunca aconteça.
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