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segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A noite da noite (Nilto Maciel)

























Maria sentada num banco da praça. Arranja a blusa, passa dedos entre cabelos. Alisa pêlos dos braços, passa perna sobre outra. Bate pé no chão. Lixo amontoado junto ao tronco de árvore. As praças poderiam ser imensos pomares. Frutas para famintos e felizes. Do húmus da terra nasceria a paz social. Ora, para que se preocupar com a felicidade coletiva? Precisava pensar em si mesma, viver mais, varar o tempo com serenidade. Pôs-se de pé e a andar pela calçada. Crianças brincavam, mulheres conversavam, homem lia jornal, dois cachorros catavam aventuras. Por onde andava o diabo? Talvez enroscado num galho da árvore. Em forma de formiga ou de lagarta? Maria ajeitou a blusa e deu meia-volta. Melhor não passar perto das crianças. Talvez se assustassem, chorassem, corressem, caíssem. Melhor ainda não se aproximar do homem do jornal. O grande crime do dia na manchete poderia estar fazendo o leitor pitar cigarro. Maria aligeirou o passo e se dirigiu ao outro lado da praça. Aproximou-se de um banco e sentou-se. O tempo passava com lentidão ou pressa? Quantos pensamentos já tivera desde a chegada ao logradouro? Quantas formigas mortas? Quantos crimes aconteceram na cidade? Por onde andavam Airam, Aimar, Ramia e Riama? Em casa, nas ruas, na vida? Pouco importava. Ora, ora, carecia de varar o tempo, puxar o futuro para o presente, torar os galhos do passado. E se nevasse naquele instante? Não, só havia neve no outro lado do mundo. Irritou-se e cruzou as pernas. Deu um grito – tempo! – de assustar cachorros, crianças, mulheres, homens solitários, todos os diabos escondidos atrás das árvores. Tempo, tempo, tempo...
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Entrou o carro de Airam numa ruela. Como ler a carta logo, senão ali? Estacionou o veículo junto à calçada e desligou o motor. Deu beijo no envelope e rasgou-lhe a borda. Papel branco, letra miúda. Leu a data. “Airam, meu amor”. Levou o papel ao rosto. Cheiro de mofo ou de pecado? Seria real a existência de outra ou estaria com ciúme? Como não pecar todos os dias, se viver exigia olhar o mundo? Palavras, verbos, todos os verbos, substantivos, os mais comuns, adjetivos inúteis... Amor, ciúme, saudade, lábio, bocas, olhos, nariz, corpo, gozar, rezar, parir, viver. Tudo cabia numa carta, numa promessa, numa mentira. Jogou o papel no banco do carro. Meninos rumavam para a escola, risonhos, livros e cadernos debaixo dos braços. Nem olharam para o carro verde. Por que não conversar com Maria, tão ajuizada? Não, melhor com Aimar. Ou com Ramia? Não, Ramia falava demais. E Riama falava de menos. Meteu a chave na fenda da ignição e o motor zuniu. Precisava rodar pela cidade, esquecer o amor, o passado, viver nova aventura. Sarar feridas, sanar-se de vez. Passou pelos meninos, em disparada. Ouviu risos e gritos. Ainda sofreriam por amor ou desamor. Se não morressem cedo num grito de pavor.
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Sentou-se Aimar numa cadeira, junto a uma mesa, e circunvagou o olhar pelas dependências do clube. Crianças e jovens nadavam nas piscinas, corriam, gritavam. Assentou óculos escuros à frente dos olhos. Agarrou um livro e se pôs a folheá-lo. Um garoto passou à sua retaguarda a borrifar água em torno de si mesmo. Alguns respingos molharam o livro. Aimar fez menção de lançar o objeto na direção do menino, que correu sem perceber o gesto inimigo. Ao longe, jogavam basquete. Moças com biquinis minúsculos passeavam para lá e para cá. Rapazes musculosos riam e cochichavam. Aimar abriu o livro. Rimar biquíni com mini ou com zine? Ou não rimar jamais? Buscou um lápis na bolsa ou no bolso. Fez um rabisco num verso. Rabasco, rabesco, rabisco, rabosco, rabusco. Conhecia um basco feioso, um Bosco bonito e buscava um besco ou um bisco. Pediu ao garçom creme com chocolate e leite. Nada de prato, colher e garfo. Queria luxar à sua maneira. Tomar o líquido sem temer o sólido. Uma ponta de sol inundou-lhe as pernas. Estirou-se mais na cadeira e jogou o livro sobre a mesa. Se Maria gostasse de clube, ela, Aimar, não estaria tão só. Mas Maria gostava mais de andar e andar. Perder-se nas ruas, no meio da multidão. E Ramia? Preferia olhar o mundo. Um clube para ela parecia muito pequeno. Como comparar uma piscina com o mar? Ora, para que comparações? Desde menina a falar de mares e marés. Nada parecida com Airam, tão ocupada com o amor. Como andava transtornada! Não olharia para a piscina, os rapazes, o livro, mesmo o mais repleto de amor. Talvez Riama gostasse de se sentar ao seu lado, fechar os olhos, falar de ontem, da manhã. Por onde andava Riama? Olhou para o livro aberto pelo vento. A leitura do livro pelo vento. Livro lido pelo vento.
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Ramia sentou-se junto a uma barraquinha. Banhistas nadavam, pulavam, rolavam, brincavam, gritavam, riam. As verdes águas bravias. Longe pescadores remavam barcos. O vento levantava areia. A moça se ergueu e correu para o mar. Rapazes se voltaram para ela. Disseram graças, riram. Ela não lhes deu ouvido e se jogou nas ondas. Nadou, nadou, nadou. O sol esquentava tudo: olhos, águas, ventos. Ramia voltou à praia, sacudiu-se, ajeitou os cabelos e caminhou para o ponto de partida. Os rapazes repetiram as graças e ela mudou de pouso. Em pé se pôs a secar o corpo. Sentou-se, ajustou os óculos escuros no rosto e se deixou a olhar para o mar. Talvez tivesse chegado o tempo de arranjar namorado. Quem? Pedro Marinho ou Paulo Ribeiro? Riama não gostava deles. Uns vagabundos. Maria não os conhecia, ou, se os conhecia, deles não falava. Aliás, quase não falava, o tempo todo na rua, a bater pernas. Coitada! Examinou os dizeres do vento. Fechou os olhos para ouvir mais a voz do mar. Se sereia fosse, nadaria até o fim das águas, o fundo do oceano. Não, nada de ouvir ventos. Ao seu espírito pertencia olhar o mundo. Olhar tudo, do grão de areia ao Sol, da formiga ao Mar, dos pêlos de seu corpo ao chão. Arregalou os olhos o quanto pôde, até que o verde do mar lhe pareceu mais verde ainda.
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Riama entregou o bilhete ao rapaz do circo e se dirigiu à arquibancada. Acomodou-se ao lado de uma mocinha. Lembrava Ramia quando mais nova. Não, o nariz da menina parecia mais achatado. Além do mais, Ramia não gostava de circo. Airam, sim, adorava animais. Cachorros, sobretudo. Ultimamente, porém, andava esquisita. Não conversava mais, trancava-se no quarto, acordava tarde. No picadeiro um homem forte se anunciou. Tigres enormes em jaulas. A menina se assustou, deu um gritinho. Não queria Riama ver a morte. Não queria a morte da hiena. Não queria o dardo no lombo do leão. Não queria domar a fera. Não queria sedar o tigre. Não queria ouvir uivar o lobo. Não queria laçar o touro. Queria no circo ver a vida. Queria ver o pavão e seu leque de cores. Todas as cores da natureza. Olhou as pessoas estarrecidas. Quis se olhar, mas não se lembrava do espelho. O palhaço falava e cantava sem parar. O outro palhaço imitava o primeiro. As crianças gargalhavam. O picadeiro era um altar agitado. Riama sentiu tremerem as pernas. E se a fera pulasse para fora da jaula? Quem poderia deter a sua fúria? Ó homem, temei o temível! Tambores tocaram. Bateram palmas, aplaudiram com estardalhaço. Não queria Riama ver a morte. Não queria mais o circo, o temor, o riso, a corda bamba. E se retirou, em prantos.
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Cansada, sentou-se Maria no sofá. Abotoou a blusa e olhou para Ramia. Por que não voltavam ao pomar, todos os dias? Colheriam as melhores frutas, correriam, como antigamente, subiriam aos galhos mais altos. Riama se apresentou, a enxugar os cabelos com a toalha. Não se lembravam mais do vento? O verde do mar nunca mudava de cor. Maria abaixou a cabeça. Tudo mudava, pois se não mudasse seria inerte. Queriam ver como ela mudava de lugar? Ergueu-se e se pôs a passear pela sala. Sentada numa poltrona, Aimar despertou, como se estivesse muito longe dali. Pensava no livro que lia há dias. Não tinha nenhuma história. Apenas uma infinidade de ações, acontecimentos, numa confusão de personagens indo e vindo, em permanente vai-e-vem. Maria se irritou. Deixasse Aimar de se iludir. Por onde andava Airam? Estou aqui. E se apresentou, sonolenta. Maria cruzou as pernas. Por onde andava o diabo? Airam sentou-se numa cadeira. Por que não compravam mais um sofá? Naquele só cabiam duas pessoas. Três, se magras. Maior do que o amor só o ciúme. Deixasse de tolices. Somos todas tolas leitoras de cartas e livros. Pareciam uma só pessoa. Ramia fechou os olhos. Como sentia piedade das outras! A luz se apagou de repente. Seria a noite? Sim, a noite do tempo, a noite da morte, a noite dos olhos, a noite dos livros, a noite do ciúme. A noite da noite.
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sábado, 1 de dezembro de 2007

O diuturnalismo literário de AscendinoLeite (Franklin Jorge)

























[franklinjorge@yahoo.com.br]

Com a morte de Josué Montello e de Antonio Carlos Villaça, reina solitariamente, no promontório do humanismo literário, seu último grande representante brasileiro, Ascendino Leite [Conceição do Piancó, 1915-], há mais de setenta anos surpreendendo-nos com o seu diuturnalismo literário, através do qual consigna e reflete com inteligência, perspicácia e sabedoria a vida das idéias na cidadela dos homens.
Obra que resulta de uma longa e obstinada paciência, só comparável em grandiosidade e minúcia aos cadernos de Leautaud – que preferia os animais aos homens e viveu grande parte de sua vida na companhia de uma macaca –, erigiu Ascendino, sem cansar nem desesperar das fraquezas humanas, um prodigioso túmulo de palavras – o seu “jornal literário” que não paramos de admirar, como culminância de uma arte literária que, entre nós, sobreviveu à cultura do êxito que faz a diferença numa época atéia.
Não há, em toda a literatura em língua portuguesa, nenhuma obra, no gênero, que se lhe compare. Somente Miguel Torga poderia ombrear-se com Ascendino, pois o seu Diário – igualmente volumoso – também constitui um monumento de inteligência e sensibilidade no trato das letras, que, nas mãos desses dois mestres, são a obra cabal da imortalidade mesma.Escrevendo em qualquer gênero, faz bem tudo o que faz, como o prova o diuturnalismo desse infinito jornal literário que se erige em monumento, compondo o panteão da nossa nacionalidade, que se faz, aqui, pelo esforço do talento de um autêntico homem de letras. Na ficção, também; para ser mais exato, no romance, gênero no qual se revelou um grande artífice, digno de figurar ao lado de outros que tanto louva, como Lúcio Cardoso e Walmir Ayala, como o próprio Ascendino, eméritos diaristas.
Revela-se em tudo o que escreve um notável estilista. Expressando-se num estilo ático, duma nitidez e concisão adequadas à substantividade de seus conteúdos inteiramente amalgamados de essência, dir-se-á dele que se trata de um clássico, capaz, no entanto, de se beneficiar do conhecimento posterior referido por Borges. Um clássico, pois, moderno. Contemporâneo. Por mais de setenta anos, tem registrado a crônica das artes, sem concessões ao compadrismo que sempre, de alguma forma, impera também sobre a cultura, como expressão do famoso jeitinho brasileiro. Avulta, no que escreve, a inteireza do seu compromisso com o idioma e, também, um certo mau humor – refinadíssimo – para com o embuste e a contrafação.
São quase duas dezenas de títulos [sem contar as obras de ficção, como A viúva branca etc] a fatura desse diuturnalismo literário praticado por Ascendino Leite, em estilo de homem, como uma espécie de apocalipse escrito com esse incrível bom senso de experiência feito. Confessando-se modestamente uma testemunha do seu tempo, Ascendino, a rigor, vai mais além do mero registro dos fatos – acrescenta-lhes o estilo, o seu estilo, seguramente forjado por suas leituras. Um estilo que reúne em si a ética do escritor e do cidadão que acreditam no belo e no bom.
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