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segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Vasto abismo - segunda parte (Nilto Maciel)



 






(Gravura de Rembrandt)

SEGUNDA PARTE

Humberto perguntou como ia o escritor. Vânia se fez de desentendida. A que escritor ele se referia? Na televisão passava um filme publicitário. A seguir passou outro. Ela se aborreceu. Havia propaganda em demasia. Queria ver logo a outra parte do drama.
Finalmente acabou o tempo dos comerciais e Las Vegas reapareceu na tela. Cassinos iluminados, homens e mulheres elegantes a jogar. Humberto e Vânia calaram-se.
Mesmo longe da biblioteca, vez por outra ela sentia cheiro de livro velho. E jurava mudar de função. Voltaria à máquina de escrever. Preferível passar o dia datilografando ofícios a andar fedendo a traça e mofo. Além do mais, aparecia cada tipo esquisito à procura de cada livro estranho!
Isaque talvez não fosse um tipo esquisito. Nem lembrava mais a primeira vez em que o vira. Quando se deu conta de sua presença, já ele havia passado talvez horas a mirá-la. “Hoje vim aqui só para te ver”. Sorriu, e lhe perguntou o nome. Procurava livros de autores antigos. De preferência gregos e romanos. Se houvesse uma seção assim... Havia, sim; ficava mais para o fundo.
Tantas vezes ele voltou, que ela não mais o esqueceu. Fazia perguntas sobre livros e sobre ela. Ia e vinha, namorava aquele ambiente de cheiro forte, perdia-se entre as estantes. Disse-lhe, com certo prazer íntimo, ser casada e mãe de dois meninos. Só não falou da idade. Se ele não perguntava, não tocaria no assunto. Se tivesse 30 ou mais, subtrairia 4 ou 5.
Isaque não disse logo ser escritor. Até brincou: “Sou um leitor inveterado, sem cura.” Ela também gostava de ler. Não autores antigos. Preferia os modernos. Lia desde menina. E até escrevera poesia. Agora lia menos. Dispunha de pouco tempo. Os filhos, a casa, o trabalho. De qualquer forma, ele queria dar a ela um de seus livros. “Você é escritor?”
Não teve coragem de levar para casa o livro ofertado por ele. Aquela dedicatória, se lida por Humberto, seria causa de briga. Chamava-a de flor e falava em amizade e admiração.
Falou de Isaque a algumas amigas. Estaria ele querendo envolvimento amoroso com ela? Ou apenas amizade? Uma delas, Joana, arregalou os olhos, quase entrou em pânico. Melhor dar um basta naquilo. Falar sério com ele. “Você não disse ser casada?” Dissera, sim. E mesmo assim ele continuou a atacar? Só podia ser um grande sem-vergonha. Cuidado, muito cuidado! Aquilo acabaria em tragédia! Bastava a história chegar aos ouvidos de Humberto.
Seguiu à risca os conselhos das amigas. Ao primeiro convite para saírem juntos disse “não”. Ele não insistiu, mas voltou nos dias seguintes à biblioteca. Vânia escondia-se, fugia dele. Passava horas em aflição, feito criança medrosa. Por que não enfrentá-lo?
Ocorreu, então, outro curto e áspero diálogo entre eles. Não desejava nenhuma amizade com Isaque. Nada de intimidades. Se não fosse possível conversarem como simples conhecidos um do outro, melhor ele sequer lhe dirigir a palavra. Como se nunca tivessem se conhecido.
Sabia ter sido ríspida, mal-educada. Talvez Isaque não merecesse aquele tratamento. Pois apresentava-se sempre muito amável. E poderia mesmo querer somente amizade.
Não, Joana tinha razão. Um homem não importuna uma mulher senão com intuitos amorosos. Claro que alguns contestam isso. E até essa contestação faz parte do jogo da conquista.
Além do mais, adorava Humberto. Não exatamente a pessoa, mas o macho. Com ele satisfazia-se plenamente na cama. Um homem ideal. Chegava a ser bruto, animalesco. Sobretudo após beber. Ameaçava-a de morte, caso ela o “traísse”.
Vânia não entendia o motivo das ameaças. Pois nunca dissera a Humberto nada como: “Não me traia, para não ser traído.” Pelo contrário, jurava amor e fidelidade até a morte. Não descumpriria o juramento prestado perante Deus.
E todos os domingos assistiam à missa. Desde crianças.
Pois exatamente ao regressarem da igreja, num domingo chuvoso, Humberto encontrou em casa umas “poesias imorais”. Dez ou mais folhas de papel. Entre as páginas de um velho romance. De certo Boter Wrigus. Presente de aniversário de Vânia, dado por uma amiga.
Humberto não conseguia ler nada. Só jornais. Lia os cadernos sobre esportes, boletins do Exército, folhetos da Igreja. Qualquer livro dava-lhe sono, preguiça, tédio. Folheava-o, lia uma frase aqui, outra ali, e nada lhe despertava interesse por aqueles pequenos objetos feitos de papel.
A curiosidade, ou a ociosidade, levou-o a folhear o romance de Boter Wrigus. Um dos maiores vendedores de livros do mundo. “Esse escritor é americano, meu bem?” Se não fosse americano, seria inglês, australiano, irlandês... De qualquer forma, um homem muito rico.
Retirou as folhas de papel de entre as do livro e leu um verso. Sentiu-se mais curioso. Aquilo cheirava a “porcaria”. Leu todo o primeiro poema. E passou a outros. Sim, um amontoado de bobagens. E quem as trouxera para dentro de seu lar? Talvez a doméstica. Sua mulher não seria capaz de ler tamanha imundície.
Ainda desejou rasgar as folhas, queimá-las, levá-las à lixeira. Só desistiu disso quando percebeu que as palavras Marcus Sallustius Secundus constavam em todas as folhas. Seria o autor das poesias?
Ao vê-lo às voltas com os versos, Vânia pensou em arranjar um bode expiatório que a livrasse de reprimendas ou mesmo agressões. E pôs-se a rir. Ele ergueu a mão que segurava as folhas: “Estou esperando uma explicação para isto.” Ela continuou rindo. Brincadeira de uma amiga. Aliás, não lera ainda uma só folha. Pois não devia ler mesmo. Pura imoralidade! E quem escrevera aquilo? Um poeta romano. Ele riu. Desde quando ela gostava de poesia? Se ainda fosse “poesia romântica”! Nem prostituta lia aquilo. Qual o nome da amiga? Joana não seria capaz de tanta baixeza.
Pressionada, Vânia acabou contando parte da verdade. Aquela papelada pertencia a um amigo. “E com que intenção ele lhe deu isto?”
As rusgas tornaram-se freqüentes. Ela vivia nervosa, agitada. E ora se sentia culpada, ora inocente. Via-se adúltera e mal conseguia olhar nos olhos de Humberto. Com remorsos, transformava-se em cozinheira, copeira, arrumadeira. Ele estranhava as atitudes dela. À noite ela o provocava, beijando-o, abraçando-o. E jurava a si mesma dar um ultimato a Isaque, no dia seguinte. Ou ele deixava de perseguí-la, ou ela contaria tudo a Fátima e Humberto.
Não, não diria nada nem à mulher de Isaque nem a seu marido. O tiro poderia sair pela culatra. Não acreditariam em sua versão. Humberto diria sempre que estupro só acontece com criança. Mulher adulta sabia se defender, se quisesse. Machista como o resto dos homens!
Nesses momentos sentia-se apenas vítima dos desejos de Isaque. Sem culpa e sem pecado. Inteiramente inocente. E jurava não cozinhar, não arrumar a casa, não lavar a louça. Deixar tudo por conta de Cristina. E, se Humberto não a solicitasse de noite, dormiria o melhor dos sonos.
Uma noite teve um sonho inusitado. Após ler os poemas de Salústio. Banhava-se numa fonte com outras ninfas. Súbito, de entre os arbustos, surgiam alguns faunos. Entre eles Isaque. Apavoradas, punham-se a correr. E assim terminava o sonho.
No dia seguinte ele a convidou para saírem juntos. Lembrou-se da perseguição noturna e disse-lhe não. Melhor afastarem-se um do outro. Se fossem solteiros, poderia ser diferente. E, sempre que o via aproximar-se da biblioteca, escondia-se, retirava-se. Contava com a ajuda, o socorro de Joana. “Ele chegou” – avisava. Logo Isaque percebeu o jogo de Vânia. E durante dias seguidos não apareceu. Já acreditava ter ele desistido dela, quando Isaque reapareceu. Só restava ameaçá-lo. Caso continuasse a perseguí-la, faria escândalo.
Parecia até brincadeira, jogo de esconde-esconde. Quando menos esperava, ele reaparecia. Se o aguardava, ele não dava sinal de vida. Ou Isaque tramava outras maneiras de se fazer presente. Como quando enviou ao endereço dela um envelope recheado de versos. Ao recebê-lo, das mãos de Humberto, sentiu um arrepio em toda a pele. Como se adivinhasse o nome do remetente. No entanto Isaque utilizou nome feminino – Quésia. Na verdade, um anagrama. “Quem mandou essa carta?” Vânia titubeou e terminou dizendo: “Uma amiga”. Apesar de não se lembrar de nenhuma Quésia.
Eram poemas do próprio Isaque. Todos escritos para Vânia. Um deles – “Soneto da paixão insana” – deixou-a profundamente comovida. Talvez pela declaração de amor.
Uma loucura aquela atitude de Isaque. E se Humberto lesse os versos? Melhor, pois, queimar toda a papelada. Quando, onde? Pois não se queimam cartas de amigas.

(Continua)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Vasto abismo - primeira parte (Nilto Maciel)





















Apparent rari nautis in gurgite vasto.Virgílio, Eneida


Primeira parte


Durante mais de vinte anos, Isaque Paiva se imaginou um homem incomum, quase excepcional. Dias antes de morrer, porém, compreendeu quão vulgar havia sido sua vida. Mesmo enquanto durou aquela paixão tão censurada e tão repelida. Uma ligação perigosíssima, é certo, mas ainda assim vulgaríssima.
Acreditou-se, desde adolescente, fadado aos livros. Lia tudo, com sofreguidão. Enquanto seus irmãos brincavam na rua.
Aos 36 anos havia escrito e publicado seis livros. Porém uma enorme insatisfação o roía. Não passava de um principiante, um ilustre desconhecido. As seis edições tomavam conta de todas as brechas das estantes de sua casa. Além disso, não via mais qualidades em nenhuma das obras que escrevera. Tudo inutilidades.
A idéia de recomeçar, deixar o passado para trás, ser um novo Isaque, engendrar outro sonho conduziu-o aos antigos. E pôs-se a ler e reler Homero, Virgílio, Horácio, etc. Logo descobriu a imensa pobreza das traduções brasileiras da velha literatura, sobretudo a grega e a latina. As livrarias dispunham apenas dos livros mais conhecidos. Autores como Teócrito, Calímaco e Plauto não constavam sequer nos catálogos das editoras. Isso o levou a interessar-se por obras raras e autores esquecidos. Mas onde os encontrar? Talvez nas velhas bibliotecas.
Chegou a elaborar uma lista enorme de nomes de escritores antigos e esquecidos, assim como de suas principais obras. Entre eles os poetas Joaquim de Sousa, Mário da Silveira e Alf. Castro.
De posse de tantos nomes e títulos, Isaque bateu às portas da Biblioteca da Câmara. E num só dia fez duas descobertas maravilhosas: o secular Marcus Sallustius Secundus e a vintaneira Vânia Verbena.
O livro parecia não ter sido sequer manuseado alguma vez. Pois as folhas dobradas assim permaneciam. No entanto recebera capa dura e letras douradas: GURGITE VASTO – Marcus Sallustius Secundus.
A curiosidade de Isaque se aguçou ao perceber que não se tratava de tradução. Sim, tudo em latim. Embora a edição fosse inglesa e datasse de 1847. Na última folha havia até uma referência à recente publicação de O Morro dos Ventos Uivantes.
Tentou ler alguns versos. Não conseguiu entender quase nada. Seu latim não ia além dos aforismos mais divulgados: Abyssus abyssum invocat. Manus manum lavat. Verba volant, scripta manent. Et coetera.Com certeza não havia tradução portuguesa daquela obra. Não se lembrava sequer daquele nome. Havia, sim, outro Salústio, porém Caius Sallustius Crispus.
De qualquer forma, levaria o livro por empréstimo. Não poderia perder a oportunidade de “ler” aquela obra rara. Sim, rara. Talvez raríssima.
E dirigiu-se, com afobamento, a uma funcionária. Queria levar um livro. Quanto tempo poderia ficar com ele? E se não conseguisse ler o livro dentro do prazo?
Diante da moça assustada, de rosto sereno e belo, Isaque lembrou-se das ninfas e deusas da mitologia. Mas precisava sair logo dali, voltar para casa, folhear o livro, ler aqueles versos latinos. Noutro dia olharia com mais atenção para aqueles olhos tão doces. Não, nada de ninfas, nada de mitologias. Devia, sim, cuidar de sua literatura, de seus interesses de escritor. Poderia, por exemplo, reescrever tudo. Pelo menos os versos. Não, jamais conseguiria transformá-los em boa poesia. Obra da juventude. Alguns escritos há vinte anos. Quase um menino ainda.
Reconhecia, embora tardiamente, sua mediocridade. Seis livros medíocres! Uma vida inteira dedicada a escrever, acreditando-se um escritor talentoso. Vinte anos enganado. Enganando-se. Primeiro dizendo-se poeta. Depois contista e romancista. Por último crítico literário.
Procurou o velho dicionário de latim. Faltavam folhas, além das capas. Uma relíquia! Nem lembrava mais como e quando o adquirira. Melhor comprar outro. E por que não voltar à Biblioteca? Assim reveria a funcionária bonita.
Sentiu no peito uma pontada. Remorso. Ana não merecia um pai daqueles. E Fátima, tão boa, tão dedicada à casa, à filha, a ele mesmo, nunca deveria ter rivais.
Ora, não havia nada entre ele e a moça de biblioteca. Nem sabia o nome dela. Talvez tivesse um nome horrível. Geraldina, Raimunda, Salustiana.
E que mal havia em achar bonita uma mulher? E mesmo admirá-la? E até desejá-la? Quem se julgasse livre de tais “pecados” que lhe atirasse a primeira pedra.
Saiu então decidido a ir às livrarias. Compraria uma gramática e outro dicionário latim-português. Terminou, porém, indo logo à Biblioteca. E, ao cabo de uma hora de idas e vindas pelos corredores, colheu duas importantes informações: a moça chamava-se Vânia e era casada.
Ao ver Isaque, ela o reconheceu, pois sorriu e perguntou pelo “poeta romano”. Se já iniciara a leitura.
Nos dias seguintes ele voltou à biblioteca. Olhava as lombadas dos livros, folheava um ou outro e, ao final, se dirigia a Vânia.
Um dia ofereceu-lhe exemplar de seu livro As sete patas do monstro. Ela devia gostar de ler, pois trabalhava entre livros. Sim, adorava ler. Sobretudo romances.
Na primeira folha ele escreveu: “Para Vânia – uma flor em pessoa – com a amizade nascente e a admiração crescente de Isaque Paiva.”
Em casa e no banco dedicava horas seguidas a estudar latim. Fazia exercícios, declinava vocábulos, traduzia frases. Lembrava o tempo de estudante, menino ainda. Os colegas, o colégio, os estudos. O professor de latim, a exigir que os alunos decorassem tudo. Fábulas de Fedro, historinhas curtas e cheias de graça. Fame coacta vulpes alta in vinea... Trechos das catilinárias: Quosque tandem, Catilina, abutere nostra patientia? E também da guerra gaulesa de Júlio Cesar: Gallia omnis est divisa in tres partes...
Porém não conseguia tirar da cabeça a imagem da funcionária risonha. A vontade de revê-la arrastava-o de casa ou do banco para a rua, e desta para a biblioteca. E a vontade logo se fez necessidade. Precisava ver todo dia aquela criatura.
Mas o que diria ela? Com certeza já percebera o excesso de idas dele à biblioteca. E os outros? Já conhecia porteiros, ascensoristas, bibliotecárias. Melhor passar uns dias sem pôr os pés na Câmara. Podia xerografar o livro de Salústio, devolvê-lo e nunca mais ver aquela moça.
Xerografado o livro, Isaque tratou imediatamente de devolvê-lo à biblioteca. Sentiu até um alívio, como se retirasse um peso da cabeça, da consciência.
E pôs-se a pensar com persistência na hipótese de ter em mãos uma obra latina nunca traduzida para o português. Mas quem poderia tirar essa dúvida? Logicamente que especialistas em literatura latina, professores de latim, etc. E quem eram essas pessoas? Não se lembrava de conhecer uma só delas.
Escreveu cartas a alguns amigos escritores. Falou de Salústio e do livro. Suspeitava ter descoberto uma raridade. Não se referiu, no entanto, ao sonho de traduzi-lo.
Sim, se Gurgite vasto não tivesse tradução portuguesa, ele, Isaque Paiva, poderia se tornar um homem famoso. Por descobri-lo e por traduzi-lo.
A notícia do achado de Isaque logo se propagou pela cidade. Poucos, porém, lhe deram importância. Outros riram. Então já havia até descobridores de livros?! E quem seria esse tal de Isaque Paiva? Decerto algum impostor. Brincadeira de desocupado. Adrino Aragão chegou a declarar que tudo – Isaque, Salústio, livro –, tudo era obra de Nilto Maciel. Houve risos no bar Beirute. Emanuel Medeiros pediu até outra cerveja. “Essa é por conta do amigo Nilto Maciel.”
Nada, porém, afastava a imagem de Vânia do pensamento de Isaque. Se tentava ler os versos do romano, toda puella assumia as feições da moça. E a via no lugar de toda dea, confundia-a com Vênus. Se escrevia cartas, o nome dela teimava em aparecer no papel. Rememorava com exatidão os mais triviais gestos dela. Recapitulava todas as palavras ditas por ela.
Tais ruminações logo deixavam o leito do acontecido, do vivido, para conduzi-lo a caminhos imaginários. Da biblioteca saltava para as ruas. Destas para os parques. Destes para os bosques. E terminava príncipe encantado a beijar a bela adormecida.
Acordava-se, assustado. Para que tanta fantasia? E voltava à Câmara, a tal dia, àquelas palavras tão cheias de graça, àquele olhar tão misterioso.
Não, não devia ficar ruminando o passado. E muito menos sonhando encontros. Devia, sim, procurá-la, convidá-la para tomarem um chope. Se ela dissesse não, insistiria. Persistindo a recusa, só lhe restaria desistir de tudo. E voltar a Salústio, aos romanos, ao latim, à velha e destruída Roma.
Afinal encontrara um novo ruma na vida. E não devia evitá-lo. Ao contrário, seguí-lo apaixonadamente. Pois perdera vinte anos de vida, a escrever uma literatura de quinta categoria. Iludido, certo de ter versos eternos e histórias modelares.
Lembrava-se perfeitamente da emoção sentida quando da publicação do primeiro livro. Título latino, a evidenciar erudição. Sentira-se um novo gênio. Revelação no gênero conto. Tivera até a breve ilusão de um dia viver de literatura. Tornar-se novo Jorge Amado. Porém o livro não chegou sequer aos jornais. A pequena tiragem teria encalhado em três ou quatro livrarias, não tivesse Isaque oferecido a parentes e amigos a maior parte dos exemplares.
Procurava fugir dessas recordações. Como se fossem aves agourentas. Espantava-as, irritado. Aliás, só queria mesmo o presente. Nada de passado. A não ser o dos livros. E por falar nisso, quem teria sido aquele poeta Salústio? Pois nenhuma enciclopédia o citava. O único Sallustius célebre fora historiador, e não poeta.
Se Marcos Salústio Segundo não tivesse existido, quem teria escrito Gurgite vasto? Ora, aquele nome poderia ser um pseudônimo – brincou Guido Heleno. E quem garantia ter sido escrito ao tempo de Roma Antiga? Por que os versos não podiam ser de muito depois? Mesmo do século 19? Talvez de algum inglês extravagante.
Não, Isaque não queria simples hipóteses. Em algum livro deveriam constar referências ao seu Salústio. E pôs-se a consultar Histórias de Roma, biografias de escritores latinos, ensaios, estudos, tudo sobre a literatura romana.
Diariamente voltava à Biblioteca da Câmara. E conversava com Vânia. Falavam dos livros, do trabalho dela, da pesquisa dele, disso e daquilo.
O primeiro “não” ele ouviu dela numa tarde muito quente. Desapontado, instalou-se numa cadeira de bar e só se retirou quase à meia-noite. Bebeu algumas cervejas e rabiscou versos sobre versos.
O “não”, pensando bem, poderia ter sido um “sim”. Questão de som. Pois ela o disse a rir e sem qualquer sombra de hostilidade.
No dia seguinte, porém, o “não” se confirmou em toda a sua plenitude. Pois Vânia mal cumprimentou Isaque. E até, em dado momento, deixou a mesa onde trabalhava, para só voltar muito mais tarde, quando confirmou ter Isaque ido embora.
Sentira-se ofendida. Por ser casada, comprometida com um homem. Se aceitasse o convite, estaria maculando sua própria imagem. Como se jogasse fezes no espelho onde se mirasse.
Ele tentou reaproximar-se dela. Nada, porém, fazia Vânia mudar de idéia. Melhor Isaque afastar-se definitivamente dela. Não a procurasse mais. Como se nunca tivessem se conhecido.
Desesperado, ele bebia e lia poesia todo dia. Releu em duas semanas alguns livros. Sobretudo os poetas líricos. Fez uma seleção dos versos que julgou mais adequados a seu estado de espírito. Tirou cópia deles e os enviou, pelo correio, a Vânia. Ao mesmo tempo se pôs a também escrever poesia. Primeiro aventurou-se pelo latim. Mas logo desistiu dele. Jamais realizaria tamanho intento.
É desse período o “Soneto da paixão insana”:

Este é o soneto da total insânia,
da mais completa, mais total loucura.
Nele o amor não vem da antiga Albânia,
não tem segredos, muito menos jura.

O amante não nasceu na Mauritânia,
sequer andava em busca de aventura.
Não se chamava a bela moça Jânia,
talvez não fosse muito bela e pura.

Essa paixão assim mediterrânea
é faca que maltrata, que perfura,
amor que pode dar em desventura.

O nome dela é, meus leitores, Vânia,
e esta paixão é tão terrível e dura
que até na morte não teria cura.

Enquanto isso, lia e relia autores latinos e tentava traduzir o Gurgite Vasto. Logo fez outra importante descoberta: Sallustius parodiava as poesias de seus compatriotas.
Isaque conhecia pouco a literatura latina. Talvez meia dúzia de livros: O asno de ouro, umas fábulas de Fedro, odes de Horácio, A arte de amar, Eneida, etc. Lidos ao longo dos anos, em traduções nem sempre elogiadas. Agora, porém, queria mais. E de uma só vez levou para casa quase trinta autores, de Apuleio a Virgílio. Uns em latim, outros em português.
A descoberta de Isaque se deu por acaso. Havia lido durante horas umas epigramas de Marcial. Chegou a fazer observações à margem das folhas do livro e até decorou uma das poesias. Em seguida voltou a Salústio e defrontou com uma epigrama curiosa. Salvo engano, já a conhecia. E pôs-se a cismar. Daí a pouco correu de volta a Marcus Valerius Martialis. Sim, uma epigrama imitava outra.
A partir de então se dedicou a um duplo trabalho: traduzir o livro de Sallustius e esquadrinhar as obras de outros escritores. Até encontrar nestes peças parecidas com as daquele.
No entanto a vespa da paixão não deixou de ferroar Isaque. Precisava rever Vânia. E pedir-lhe explicações. Afinal, não eram adolescentes. Se ela recusava uma aventura, por que não serem amigos? Para que fazerem-se inimigos?
Sim, iria procurá-la. No máximo ela diria ser casada, direita, e gostar muito do marido. Com mais otimismo, Isaque poderia ouvir uma confissão fundamental: ela jamais namorara outro homem, após o casamento, porém não gostava do esposo. Apenas o suportava. E então estaria aberta uma porta para a aventura. Tudo dependeria dele, de sua habilidade de cortejador.
Munido de tais raciocínios, dirigiu-se à Câmara. Na bagagem levou ainda uma relação de títulos de obras latinas. Ponto de partida para chegar à moça.
Antes de alcançar a biblioteca, encontrou uma amiga de Vânia. Haviam se conhecido lá mesmo. Por que não voltara mais? Desculpou-se: trabalhando muito, sem tempo para os livros.
O nome de Vânia logo veio à baila. Cheia de problemas. Pensando até em pedir remoção para outra seção. Seria, pois, de boa prudência que Isaque não visitasse tão cedo a biblioteca.
E Joana o chamou a um canto. Vânia andava apavorada. Pois, se Humberto descobrisse “tudo”, uma tragédia poderia ocorrer.
Ainda fingiu não estar entendendo nada. Não conhecia nenhum Humberto. A moça sorriu. Sabia de todos os detalhes do caso. Por pouco Humberto não vira as poesias enviadas a sua esposa por Isaque. Tomasse muito cuidado. Não repetisse tamanha tolice.
Num primeiro momento sentiu enorme pavor. Viu-se morto, um tiro no coração, estendido no meio da rua. E a multidão a correr, gritar. Não, Vânia não devia ter contado nada ao marido. E nem contaria.
Procurou um barzinho. Precisava se acalmar. Nada de apavoramento. Contudo não enviaria outros versos a ela. Não cometeria mais esse pecado juvenil. Aliás, aquela poesia melosa estava fora de moda. Nenhum homem nestes tempos de “sexo explícito” seria capaz de seduzir mulher com versos românticos. Coisa ultrapassada. O tempo das serenatas há muito passara.
Por que não levar a Vânia as poesias eróticas de Salústio Segundo? Pois todos os poemas do romano tangiam a lira de Eros. Pelo menos aqueles já traduzidos. Como a paródia do “Anni tempora”, de Ovídio.
Com certeza ela não se escandalizaria. Até porque já devia ter lido muita porcaria. Sobretudo nos romances norte-americanos. Pois adorava esse tipo de literatura. Apesar de trabalhar junto a livros tão diferentes disso.
Isaque não a censurou por ler aquelas histórias feitas de crimes, espionagem e sexo. Apenas riu e prometeu-lhe seus próprios livros. Ela iria gostar muito de O punhal de Brutus – brincou. Devia ser um “romance emocionante” – ela dissera, emocionada.
Não conseguia vender seus livros. A não ser nas sessões de autógrafo. Vinte a trinta pessoas, todas parentes e amigos. Depois a corrida atrás dos leitores. Deixava dez exemplares em cada livraria da cidade. O resto levava para casa, enviava a escritores desconhecidos ou ofertava.
Acusam-no de amadorismo. Escritor não devia dar livros. Nem pagar para ser editado. Antes exigir pagamento de direitos autorais e deixar por conta dos livreiros a comercialização dos livros. O leitor – diziam – não respeita escritor amador. Não respeita e não lê.
“De uma forma ou de outra, sou escritor” – objetava Isaque. E ria dos “escritores eternamente inéditos”.
Porém ria sem convicção. Sua obra talvez não merecesse mesmo ser publicada e lida. Daí a decisão de não mais escrever. Pelo menos durante um ou dois anos. E se dedicar à leitura dos clássicos.
Tão devotado andava a ler os latinos e a traduzir Salústio que chegou a sonhar escrevendo versos em latim.
Uma feita acordou em pleno sonho. Pulou da cama, agarrou caneta e papel, e anotou – Odi et amo: quare id faciam, fortasse requiris.
Imaginava ter escrito o verso para Vânia. Mas logo percebeu o engano – Catulo escrevera a epigrama para Lésbia.
Sonhava também vivendo no tempo dos Césares. Num desses sonhos procurava Marcus Sallustius Secundus. Andava pelas vias de Roma, a perguntar pelo poeta. Ninguém conhecia tal cidadão. Cansado de vagar pelas colinas, terminava o dia no interior do Coliseu. Súbito ouvia um rugido de leão. E acordou.
Enquanto traduzia, Isaque tentava esboçar uma biografia de Salústio. Mas como fazê-lo, se as enciclopédias nenhuma referência faziam do poeta?
A primeira pergunta seria: em que tempo ele vivera? Sua própria obra poderia dar a resposta. Bastava encontrar menção a nomes de imperadores, cônsules, tribunos, etc. Ou de poetas, historiadores, filósofos, etc. Para começar, relacionou alguns nomes, bem como os respectivos anos de nascimento e morte.
Descobriu, então, num dos poemas de Salústio, alusão a Lucio Apuleio. Logo, teria sido, no mínimo, contemporâneo deste. Ou seja, poderia ter vivido entre os anos 125 e 170.
Antes descobrira semelhanças entre algumas epigramas de Salústio e de Marcial. Como este viveu até 104 d.C., aquele havia sido posterior a Catulo, Estácio, Horácio, Ovídio, Plauto, Terêncio, Virgílio, e outros poetas.
Assim, Salústio Segundo teria nascido durante o governo do imperador Antonino e morrido sob Sétimo Severo. Suspeitou Isaque haver o grande parodista cometido suicídio.
Satisfeito com seus achados, escreveu a alguns amigos e telefonou a outros. Logo a notícia se espalhou. Muitos escritores, porém, novamente não lhe deram crédito. Jair Vitória riu. Que interesse podia haver naquilo? Afinal, latim era língua morta. Guido Heleno fez trocadilhos, inventou piadas: Salústio Segundo vivera até demais, pois chegara a Sétimo Severo. Outros dois, no entanto, deram importância à nova. Nilto Maciel e Salomão Sousa. Este quis até conhecer Isaque Paiva: “Apresente-me a ele, Nilto.”
Entretanto Isaque só queria rever Vânia. E comunicar-lhe o resultado de seus estudos. Aproveitaria a ocasião para mostrar-lhe os poemas já traduzidos. Mas como seria recebido?
Encontraram-se à saída da Câmara. Ela assustou-se e apressou o passo. Ele precisava falar-lhe. Só um minutinho. Ela ainda opôs resistência. Não queria mais conversa com ele. Seu casamento corria riscos. Humberto seria capaz de matá-los.
Isaque mudou de assunto. Só desejava falar-lhe do livro de Sallustius. E pôs-se a falar. Sentia-se agora um homem singular. Ninguém antes havia traduzido ao português aqueles poemas. Além do mais, o romano era completamente desconhecido. Nem as enciclopédias o citavam. E tudo graças a ela. “Por quê graças a mim?” Não fosse ela, jamais teria achado aquela raridade. Pois foram seus olhos que o prenderam àquela biblioteca. Iria publicar o livro em português. E o dedicaria a ela.
Ao despedirem-se, ofereceu-lhe cópia dos poemas já traduzidos. Lesse e desse opinião. Ela disse não estar interessada em ler poesia. Mas enfiou na bolsa a papelada. E saiu, quase a correr. Como que petrificado, ele se deixou a olhar para aquele vulto serpeante e lesto, que ora sumia, ora reaparecia, no amplo estacionamento.
Quando se deu conta da solidão em que se achava, Isaque pensava nas suas memórias. No projeto de escrevê-las. Há mais de ano recolhia documentos pessoais e de familiares. E fazia anotações. Sobretudo de datas e fatos importantes. Como o seu ingresso na Universidade. O agitado 1967. As grandes passeatas, jornalecos revolucionários.
No entanto só lembrava os nomes de dois ou três colegas de Faculdade. Recordava, sim, as feições de quase todos. E alguns fatos do cotidiano. Os livros, os namoros, uma colega bonita chamada Alice. A vontade de aproximar-se dela, atraí-la para si. Chegaram a estar a sós na sala de aula. Ela, porém, não o deixou abrir a boca. Falou o tempo todo, talvez meia hora, do Camarada Mao, da Guerra Popular, da necessidade da luta armada...
À noite, Isaque escreveu um conto. Intitulou-o “A camarada”. Uma estudante maoísta chamada Célia, que amava um poeta chamado Basílio. Esse conto está no seu primeiro livro, editado em 1971.
A maravilhosa Alice ele nunca mais a viu. Disseram-lhe ter desaparecido ainda em 1970.
Quando recordava pessoas já mortas, Isaque se deprimia e pensava em desistir de escrever as memórias. Melhor ler os clássicos. Até que Salústio Segundo apareceu e o fez esquecer os pesadelos do passado: “Vivamus, mea Julia, atque amemus...”
A quem teria Sallustius amado? Descobriu Isaque alguns nomes de mulher nos versos do poeta. O mais citado talvez seja Julia. Há, porém, ainda Justina, Livia e Lucila.
Julia teria sido amante do Imperador Cômodo. Pois um dos poemas de Salústio termina assim: “Amada minha, que teu senhor te esqueça e nunca mais te incomode.”
Uma de suas mais bem realizadas paródias foi escrita a partir do famoso poema que Catulo dedicou a sua amada:
Vivamus, mea Lesbia, atque amemus,
rumoresque senum severiorum...

Quase toda a poesia de Salústio fala de amor. Daí parodiar poetas que dedicaram muito de sua arte a Cupido. Há até um pequeno poema cujo título copia o do notável Ars Amandi de Ovídio.
Outras vezes Salústio simplesmente utilizava provérbios para intitular seus poemas. Como Amor tussisque non celantur (Não se pode esconder o amor e a tosse). Ou Nit transit amantes (Nada escapa aos amantes).
Um dos poemas satíricos do parodista intitula-se Rerum novarum. Fala de escravos e senhores. Para Isaque ocorreu mera coincidência ao haver Leão XIII dado o mesmo título à sua famosa encíclica.
O escritor Guido Heleno dava explicação para a “coincidência”: Salústio vivera após 1891. Seu verdadeiro nome poderia ser Isaac, Isaque ou mesmo Nilto.
Ao tomar conhecimentos da pilhéria, Isaque Paiva se aborreceu. Arrancaria a peruca de Guido, em pleno Beirute, num sábado à noite.
Zangado ainda, dirigiu-se à Câmara. Precisava desabafar urgentemente. E só Vânia lhe servia de confidente.
Ela riu do chiste de Guido. Devia ser uma pessoa muito engraçada. E os poemas, lera? Sim, pareciam bem escritos. E bem traduzidos. Parabéns pela tradução!
Conversavam animadamente, quando apareceu Humberto. Fora buscá-la de carro. Saíra mais cedo do quartel. Vânia apresentou um ao outro, meio assustada. “Isaque é um grande escritor”. Humberto apertou, com firmeza, a mão do rival. E perguntou se o expediente já encerrara. Isaque alegou estar apressado, e retirou-se da sala, quase a correr.

(Continua)