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domingo, 13 de janeiro de 2008

A paixão pelos livros (Enéas Athanázio)


(Enéas Athanázio)


Quando teve início a difusão da Internet, repetiram-se as profecias no sentido de que o livro, em seu formato tradicional, estava com os dias contados e acabaria por desaparecer num futuro não muito distante. A freqüência com que surgiam esses vaticínios deixou deveras preocupados os amantes do livro, mas foi uma preocupação vã porque até agora aquelas profecias não se realizaram e os fatos parecem indicar que estavam equivocadas. Com efeito, nunca foram publicados tantos livros e sobre os mais variados assuntos como nos dias de hoje, inclusive no Brasil, e o consumo também cresceu de forma considerável. As Bienais do Livro, tanto em São Paulo como no Rio, são visitadas por um público cada vez maior e vendem milhões de exemplares de todos os gêneros. É verdade que, em termos comparativos com nossa população, o percentual de compradores de livros ainda é pequeno, mas houve uma evolução sensível desde que comecei a freqüentar essas feiras. Sempre que visito as livrarias, em especial as grandes, fico impressionando com a quantidade, a qualidade, a variedade e o tamanho das obras publicadas. Livros sofisticados, impressos em papel especial, em várias cores e recheados de ilustrações revelam uma indústria livreira competente e arrojada, sinal de que confia no mercado e investe pesado. Afirmava-se também que os livros grandes, com muitas páginas, não encontrariam público, mesmo porque o tempo dos leitores é cada vez mais escasso. Puro engano: obras enormes, em vários volumes, beirando o milheiro de páginas, figuram muitas vezes entre as mais vendidas, apesar do preço elevado. Em recente viagem a São Paulo conheci a “Livraria da FNAC”, num imenso subsolo da Avenida Paulista, cuja exposição é tão grande e variada que mais parece um shopping livreiro, exigindo tempo e paciência para uma simples visita. Ela promove, todos os meses, inúmeros eventos relacionados ao livro e à literatura a que denomina “Encontros na FNAC”, atraindo considerável público interessado. Por outro lado, tanto os catálogos das editoras como as notícias de lançamentos de novos títulos, publicadas nos jornais, informam a respeito da grande quantidade de obras novas que são colocadas no mercado a todo instante. O jornal “Folha de S. Paulo” criou a “Publifolha”, espécie de editora paralela de livros, e tem feito o lançamento de obras importantes, nacionais e estrangeiras, a preços reduzidos e com boa qualidade gráfica. A “Biblioteca Folha” publicou uma coleção de clássicos a preços baixos em relação aos de mercado, incluindo obras de Hemingway, Graham Greene, Somerset Maugham, Franz Kafka, Vargas Llosa, F. Scott Fitzgerald, Joseph Conrad, James Joyce, Vladimir Nabokov, Graciliano Ramos e outros. Conclui-se, pois, que aqueles que previam a substituição do livro pelo computador estavam completamente enganados.
Aqui no Estado a situação não é tão promissora. Nossas feiras do livro são fracas e não dispomos de boas livrarias, com poucas exceções. E o mais grave é que não temos livreiros, na verdadeira acepção da palavra, daqueles que conhecem e amam o métier, com as poucas exceções de praxe. Consta que existem no Estado cerca de cinqüenta editoras, entre as quais as oficiais. A rede de livrarias no território estadual é pequena, o mesmo ocorrendo com as bibliotecas públicas, muitas delas apenas nominais, mas que não funcionam ou o fazem de forma precária. A visita a muitas delas é desanimadora. Creio que nunca houve, pelo menos que me lembre, um esforço sério e contínuo para dotar o Estado de bibliotecas públicas bem aparelhadas, com um acervo razoável e pessoas qualificadas.
No plano nacional, tem aumentado o número de livrarias convencionais. Ao lado delas funcionam os sebos, muitos deles de luxo, embora a maioria seja popular, instalada nos mais diversos locais, inclusive nas calçadas das vias públicas. Os primeiros compram e vendem obras raras, esgotadas e de difícil acesso, atingindo algumas delas preços incríveis. É o caso da “Leart – Livraria e Encadernação”, pertencente à minha amiga Zelina Castello Branco, viúva do escritor, jornalista e bibliófilo Carlos Heitor Castello Branco, o maior expert em livros que pude conhecer. Instalada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, possui livros que fazem a alegria de colecionadores de todo o país e que a visitam de tempos em tempos na incansável pesquisa de raridades. Os sebos “Brandão” e “Calil”, da mesma cidade, também são admiráveis pela quantidade e variedade de obras à venda. O primeiro deles ocupa nada menos que nove andares com as paredes recobertas de estantes repletas. Numa visita ao “Calil”, o gerente ficou muito aborrecido porque não encontrei nenhum dos três títulos que procurava. Outros sebos bons existem também no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Blumenau e outras cidades, muitos deles com aquele cheiro característico do livro usado que os identifica à distância. Sebos populares vendem livros a preços inferiores ao de um exemplar de jornal. Só não lê quem não quer.
À margem desse mercado oficial do livro se desenvolve imensa rede informal constituída pelas pequenas editoras, edições feitas pelos próprios autores (edições do autor), edições feitas em sistema de cooperativas, obras editadas por empresas e instituições culturais e obras fora do comércio. Em tiragens maiores ou menores, quase nunca chegam às livrarias ou só são expostas em algumas, realizando seus autores as vendas diretas aos interessados, com largo uso do sistema dos correios para a distribuição. Circula dessa forma grande volume de livros, cujo número é impossível precisar. Houve um período bastante longo em que ocorreu verdadeira “febre” de antologias, todas publicando e vendendo. O encarecimento dos custos diminuiu essas edições, embora muitas ainda continuem sendo feitas. A publicação por tais meios nem sempre influi na qualidade das obras; muitas vezes são de qualidade literária superior às que contam com grande divulgação e esmerada distribuição. A maioria dos best-sellers que pulula nas montras dos livreiros é de valor literário inferior. Em literatura, distribuição agressiva e divulgação constante na mídia não constituem garantias de qualidade. Muitos autores célebres preferiram publicar seus livros em pequenas edições pessoais e bem elaboradas que em tiragens mecânicas e impessoais saídas de grandes prelos. O escritor português Miguel Torga é um exemplo; a britânica Virgínia Woolf criou pequena editora artesanal na qual dava a público obras artísticas em conteúdo e feição gráfica. Por outro lado, muitos autores que publicam por conta própria vendem bem, tornam-se conhecidos e até se transformam em escritores profissionais. Suas obras, com o tempo, conquistam espaços, vencendo os óbices criados pela ausência de divulgação e se impõem. Tenho conhecido escritores que viajam pelo país com suas obras embaixo do braço, vendendo-as aqui e ali, e vivem apenas dessa atividade. Muitos nomes poderiam ser lembrados.
Falando-se em livros, não podem ser esquecidas as sociedades ou agremiações que reúnem bibliófilos, bibliômanos, bibliomaníacos, colecionadores aficionados ou simples leitores. Entidades do gênero existem em todo o mundo. Aqui no Brasil, merece referência especial a “Confraria dos Bibliófilos do Brasil” (CBB), com sede em Brasília. Criada por José Salles Neto, com número limitado de associados (apenas 350), edita obras escolhidas pelos seus integrantes em volumes numerados para cada um deles, conforme a ordem de sua inscrição. São livros de reconhecida qualidade literária, sempre que possível publicados em datas que relembram eventos da vida de seu autor, em formato grande, com sobrecapa e caixa, ilustrados de forma exclusiva por artistas plásticos de renome.
A Confraria editou, até o momento em que escrevo, 13 obras, sendo a última saída do prelo, “Dez contos selecionados de Clarice Lispector” (2004). Escolhidos com esmero, com o auxílio do próprio presidente, os contos constituem uma antologia única, revelando inúmeras facetas da contística da autora em suas diversas fases. O livro foi composto em linotipo, a impressão do texto e das vinhetas foi realizada em máquina tipográfica manual, a encadernação e o acabamento executados por técnico especializado, no miolo foi utilizado papel de elite, a capa e a sobrecapa feitas em papel fabricado à mão com fibras vegetais por artesã papeleira. As ilustrações foram reproduzidas em serigrafia a partir dos originais. Elas são de autoria do artista plástico Marcelo Grassmann, muito conhecido, que apresenta, no final do volume, uma suíte com várias páginas de desenhos, em outra tonalidade de cor, enriquecendo ainda mais o livro.
Como se vê, uma obra similar ao que se faz em todo o mundo nas melhores editoras artísticas. Em paralelo, a Confraria lançou as “Edições da Confraria”, publicando livros com venda aberta ao público e com as mesmas qualidades. Em nosso Estado a entidade conta com apenas dois associados. (Contatos: Caixa Postal 8 6 3 1 – CEP 70312-970 – BRASÍLIA/DF).
Como existem livros sobre todos os assuntos imagináveis, é natural que também existam livros sobre livros. O já mencionado Somerset Maugham, leitor aficionado, daqueles que, à falta de outra coisa, liam até guias telefônicos, costumava dizer que não pode haver objeto mais inútil que livro que fala de outros livros. E, no entanto, ele próprio se entregava com prazer à leitura desses livros. Pensando bem, de que serve ler livros sobre outros livros? Não seria mais útil e proveitoso ler os próprios?
Para mim, embora reconhecendo que sou dos poucos, essa leitura ainda tem encantos. Passam os anos e não me canso de ler coletâneas de ensaios literários, como acabo de fazer, trilhando as páginas amareladas de um velho volume denominado “Método e Interpretação”, de José Aderaldo Castello (Edição do CEC/SP – 1964). Nele o autor reuniu textos analíticos de livros de diversos autores, entre os quais Lima Barreto, Monteiro Lobato e Gilberto Amado, nada menos que três dos meus monstros sagrados. Mesmo sendo um exigente exercício de leitura, foi uma experiência agradável, mostrando quão vastos são os caminhos que uma obra pode abrir para um crítico competente.
Li também uma coletânea de crônicas sobre livros, esta mais voltada à análise da paixão livresca, publicada por pequena editora Trata-se de “A paixão pelos livros”, reunindo depoimentos de autores brasileiros e estrangeiros, como Carlos Drummond de Andrade, D’Alembert, Flaubert, Petrarca, John Milton, Camilo Castelo Branco, Montaigne, William Saroyan, Varlam Chalámov, Plínio Doyle, José Mindlin e outros. A disparidade literária entre os textos salta aos olhos, mas o conjunto é interessante. Mindlin e Doyle não são escritores, embora tocados pela mesma paixão que fez deles os maiores bibliófilos nacionais. Os depoimentos do russo Varlam Chalámov e do norte-americano William Saroyan são tocantes, como também o empenho de Doyle para obter algum livro desejado. Como se sabe, ele foi o anfitrião do “Sabadoyle”, reunião de escritores que acontecia em sua residência, no Rio de Janeiro, e que tive ocasião de freqüentar. O livro faz indagar sobre a forma como se inocula a “doença livresca” e o apego que se desenvolve na pessoa, tantas vezes inibindo-a de se desfazer de um livro que nunca serviu para nada, é um autêntico trambolho, mas que tem algo de especial e indefinível aos olhos de seu dono. Como tem acontecido comigo.
E os livros que não se vendem? Nelson Palma Travassos, editor que passou a vida fazendo livros, próprios e alheios, costumava dizer que livro que não se vende é inútil. É claro que tal afirmação era uma brincadeira, pois, se assim não fosse, os livros mais importantes que existem, ou pelo menos a maioria deles, nunca teria sido publicada. O próprio Travassos, homem culto e escritor de talento, sabia muito bem disso, tanto que publicou inúmeros livros de vendagem duvidosa mas de significação cultural ou literária. Como se isso não bastasse, ele próprio publicou um livro denominado “Livro sobre livros” (Editora Hucitec – S. Paulo – 1978), reunindo parte do que produziu de melhor.
Eis aí algumas observações, muito pessoais e empíricas, de quem tem vivido os últimos trinta anos às voltas com os livros, lendo-os, divulgando-os, escrevendo-os e viajando sempre com eles embaixo do braço.
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sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Vasto abismo - quarta parte (Nilto Maciel)

























QUARTA PARTE

Ana vivia ultimamente triste. Quase não via seu pai. Deixou de ser aluna estudiosa e até repetiu o último ano do primeiro grau. Talvez se sentisse só. Por que seus pais não lhe “fizeram” uma irmãzinha? Repetia a pergunta de muitos anos atrás, quando confundia bonecas de pano e plástico com criaturas de carne e osso.
Isaque ainda tentou arranhar desculpas para suas ausências. Andava lendo muito, pesquisando, preocupado com sua vida íntima de escritor. Precisava encontrar novo rumo. Sentia-se perdido, atônito, confuso. Teria valido a pena escrever aqueles seis livros? E se construísse um grande romance? Sim, de vez em quando imaginava-se autor de um livro como Ulisses. Talvez lendo os clássicos gregos e latinos encontrasse o fio da meada. Um herói do século XX inspirado na Grécia ou em Roma antigas.
E falava de poetas antigos para a menina. Lia em voz alta versos em latim:
Nec bibit inter aquas, nec poma petentia carpit
Tantalus infelix, quem sua fata premunt;...
Onde andava o velho dicionário de latim? Terminou comprando novo dicionário. Àquele faltavam a capa e várias folhas. Precisava traduzir Salústio. Se não tivesse voltado à biblioteca, tudo teria sido diferente? Talvez o destino explicasse aquela história. Vânia havia sido posta em seu caminho pelos deuses. Inútil querer a vida de outra forma. Nec bibit inter aquas...
Ana não sabia latim, não gostava de poesias e fugia dos livros. Uma vez até chorou, após ouvir uma sátira de Horácio. Choro sem explicação.
Isaque teve vontade de também chorar. Ou gritar, fugir, sumir. Aninha não merecia um pai como ele. Nem Fátima merecia aquela traição. Tão boa, tão dedicada ao lar. Não deveria ter rivais. Não, aquilo era apenas uma paixão passageira. Logo esqueceria Vânia. Aliás, talvez nem se tratasse de paixão. Apenas desejo.
Quando Fátima descobriu a ponta do fio, nada disse a Isaque. Talvez esperasse novas provas. Não lhe fez sequer uma pergunta. Ele negaria tudo.
Certo de que ninguém no mundo sabia de seus novos sentimentos, Isaque vivia aquela paixão em toda sua plenitude. Para ele, Fátima não imaginava um só átomo de seu tormentoso momento. E por que andava tão nervosa? E a menina, macambúzia, arreliada?
Fátima chegou a seguir os passos de Isaque. Sim, ele só podia ter outra mulher. E queria saber quem era ela. Esteve no banco onde ele trabalhava. Conversou com colegas dele. Sondou diversas pessoas. Não encontrou o menor indício da outra. Pensou em contratar um detetive.
Além do mais, Isaque se dedicava então aos versos. Dia e noite a rabiscá-los. Com certeza havia paixão ali. Ninguém escreveria “versos apaixonados”, se não vivesse uma paixão.
E o nome dela até aparecia em alguns poemas. Sim, chamava-se Vânia. E iria conhecê-la, encontrá-la. Talvez matá-la.
De tanto seguir os passos de Isaque, chegou à Câmara. Perdeu-o de vista logo à entrada. Voltaria noutro dia. Não, melhor esperar. E meia hora depois Isaque saía, acompanhado de uma mulher. Exultou. Enfim descobrira a amante de seu marido. Por que não matá-los logo? Não conduzia arma. Uma faquinha sequer.
Nervosa, Fátima os seguiu. Mais adiante ele se despediu da mulher. Nem um só beijo. Não, aquela não poderia ser a amante, a musa dele. Até porque parecia ter a idade dele, se não fosse mais velha. E nenhuma beleza.
Conseguiu aproximar-se da estranha. Chamava-se Joana e trabalhava na Biblioteca da Câmara. Conhecia, sim, Isaque. Porém há pouco tempo. Ele freqüentava a biblioteca, à cata de livros antigos. “E você quem é?”
Fátima passou a ler todos os manuscritos, rascunhos, anotações de Isaque. Queria a história completa da traição. Desde quando ele a traía e não mais a amava.
Leu até as memórias, as poucas folhas já escritas. Quem seria uma tal Alice? Talvez mais uma das namoradas de Isaque. Não, ele falava de um passado distante. A pobre Alice havia desaparecido em 1970. Provavelmente assassinada pelos militares.
Deixou de lado aquele caderno melancólico. Revirou outras gavetas e encontrou os versos traduzidos de Salústio Segundo. Talvez fosse o próprio Isaque. Um pseudônimo. E uma tal de Julia não seria outra senão Vânia.
Quando leu o “Soneto da paixão insana”, quase ensandeceu. Ali estava a prova mais concreta do crime. O nome da outra aparecia com todas as letras. Tudo às claras. Como se Isaque fizesse questão de revelar sua traição.
Quis rasgar, queimar tudo. Não deixaria um só registro daquela malfadada paixão. Tolice. Com certeza havia cópia.
Leu, com sofreguidão, o prefácio para a edição brasileira dos poemas de Marcus Sallustius Secundus. E só então se convenceu de que não eram de Isaque aqueles versos às vezes tão repletos de lubricidade.
Depois encontrou o velho exemplar do Gurgite vasto. Tudo latim. Isaque não teria escrito aquilo. E nunca lhe falara de tal livro. Tentou ler alguns versos. Inútil. Não entendia nada. "Vivamus, mea Julia, atque amemus..."
Sim, Julia vivera há 2.000 anos. Estava morta, virara fóssil. E sentiu um desmedido alívio, como se de sua alma todos os tormentos sumissem no Infinito.
Mesmo assim, nada mudou na vida dos dois. Continuaram distantes um do outro. Cada vez mais distantes. Como se caminhassem em sentidos opostos. Ela para leste, ele para oeste.
Aconteceu, então, o primeiro ato da tragédia. E Isaque por pouco não perdeu o juízo. Um acidente automobilístico deixou Vânia ferida. E o causador de tudo teria sido Humberto. Bebera em demasia. O carro chocou-se contra um poste de iluminação pública. Vânia foi lançada contra o painel.
Isaque só soube do fato no dia seguinte. Queria visitar Vânia. Precisava vê-la, ter certeza de que nada havia de grave. Não, Joana não tinha razões para mentir. “Você não deve ir à casa dela.” Então telefonaria.
Não, não deveria telefonar. Vânia talvez nem falasse nada. Ou dissesse alguma grosseria. Como naquela tarde muito quente em que a convidara para saírem juntos. O primeiro “não” dela. Um golpe fundo na carne. Para curar a ferida, só a bebida. E sentou-se numa cadeira de bar, bebeu cerveja e escreveu uns versos amargos. É desse dia o pequeno poema “Vasto abismo”:
A dor,
seja a de ficar,
seja a de partir.

O amor,
por mais negado,
por mais aceito.

Tudo é abismo,
o vasto abismo,
onde se afunda
o Ser.

Porém aquele “não” de Vânia já era passado. Agora precisava saber do estado dela. Mesmo por telefone.
Isaque não se identificou e Humberto não insistiu. Passo o fone a Vânia, que falou com tranqüilidade, segurança. Voltaria ao trabalho em quinze dias.
Foram quinze dias de ansiedade para Isaque. Como desejava rever Vânia! Aquilo só podia ter sido proposital. Humberto quisera matar a esposa. Ou matar-se com ela.
Não demorou muito, Humberto e Vânia se separaram. Decisão menos trágica que a morte. Conheceria outras mulheres. Talvez menos tontas que aquela.
Só às vésperas da separação Humberto contou a história a seus irmãos e amigos. Não a mesma que tentou narrar ao sargento Fernandes, no bar. Agora havia mais capítulos. Artur fez-se pasmo e em nenhum momento falou em reação violenta. Se o mano desejava aquilo, só restava cuidar da papelada.
E por que não matar o outro? A idéia veio à tona como uma purgação. Houve até risos e comemorações. E todos quiseram pagar a despesa. Artur quase chorou ao ombro do irmão. O sargento Fernandes dançou, deu vivas ao colega, despejou cerveja na mesa.
Muito antes dessa noite, porém, já Humberto andava no encalço de Isaque. Descobriu onde morava e trabalhava, assim como os lugares que mais freqüentava.
Por muitas noites estiveram no Beirute. Quase sempre próximos um do outro. Humberto ia só e sentia dificuldades em arranjar mesa. Pedia um cantinho, quase por caridade. Como precisava estar ali, sentir a presença de Isaque, o inimigo, a presa! Cada palavra dele soava-lhe como um insulto. Cada gesto uma bofetada. O copo levado aos lábios significava talvez a morte.
Humberto remoía ódio, embebedava-se de solidão e silêncio. Aquele homem a seu lado, cercado de amigos, a falar de livros, poesia e amor, parecia feliz.
Não, não devia atormentar-se tanto. E passou meses sem sequer passar diante do Beirute. Cambada de bêbados, veados, vagabundos!
Voltou com muito alarde. Como a retomada de uma praça de guerra. Humberto e um grupo de sargentos. Seguidas sextas- feiras. Bebiam à vontade e só se retiravam de madrugada.
O primeiro encontro não se repetiu. O grupo de Humberto chegou cedo e ocupou duas mesas. Ao perceber a chegada de Isaque, fez desocupar uma das mesas. E logo chegaram amigos do escritor.
Propositalmente, Humberto e seus amigos falavam alto. Iam de futebol a fórmula um, de mulher a política.
Isaque reconheceu logo Humberto. Porém nem sequer o cumprimentou. O sargento parecia transtornado. Como quando Isaque o viu pela primeira vez. “Um grande escritor”, brincou Vânia, o belo sorriso nos olhos, na face. Aquilo deve ter ferido ainda mais o militar. Para vingar-se, apertou com força a mão de Isaque. Poderia quebrar-lhe os dedos frágeis.
Isaque olhou várias vezes para Humberto. Não sentiu medo, ódio ou ciúme. Talvez um pouco de compaixão. Teve vontade de falar do rival aos amigos. Terminou nada dizendo. Nas vezes anteriores nunca o “vira”. E nem pudera, pois o militar usara disfarces.
Perto da meia-noite o sargento deu um viva à “Revolução de 64”. Houve vaias, algum tumulto. Isaque não se manifestou. Até sugeriu irem embora.
Em casa anotou o incidente num diário bissexto. E lembrou de retomar as memórias. Escreveu dez linhas sobre as passeatas estudantis de 67 e 68. Mais uma vez relembrou Alice, a colega de Faculdade desaparecida em 70. Enquanto escrevia, seus olhos se molharam. Sentiu-se muito deprimido. Tentou escrever uns versos. A indignação, porém, o sufocava. E nada mais escreveu naquele dia.
Depois disso esteve poucas vezes naquele local. Havia ultimado a tradução do livro de Salústio e procurava editor. Escreveu cartas a mais de trinta editoras. Duas ou três deram-lhe resposta: não tinham interesse em publicar poesia. Pensou em arcar com a despesa da edição. Venderia o carro, reduziria os gastos domésticos e pessoais. Não, não valia a pena nada disso. Bastava o malogro de sua própria literatura. Seis livrinhos medíocres, nenhum comentário nos jornais. E talvez nem meia dúzia de leitores. Apenas parentes, amigos e sobretudo “colegas de ofício”. Muita desilusão acumulada. A vida inteira dedicada a inutilidades. Sim, seus livros não passavam disso. Para que, então, gastar dinheiro editando outro livro?
A editora acabou sendo Vânia. Belíssima impressão, com uma homenagem comovente a Isaque, escrita por Nilto Maciel, a pedido de Vânia.
Na primeira folha a dedicatória há muito escrita: “À minha última paixão – Vânia Verbena.”
Isaque tencionava escrever um livro de poesia dedicado a Vânia. Dele fariam parte o “Soneto da paixão insana” e alguns outros dados como concluídos. Porém a maior parte dos poemas restaram inacabados ou simplesmente rascunhados.
E sua última paixão não teve o privilégio de ser musa em livro.
A última sexta-feira de Isaque, o epílogo de sua tragédia não teve sequer testemunhas. Havia bebido duas garrafas de cerveja e voltava para casa. Caminhava absorto para seu carro, após esperar duas horas por uma pessoa. Haviam se conhecido há dias, apresentados por Nilto. Marcaram encontro no Beirute. Trocariam livros. “Ao novo amigo Emanuel Medeiros este As sete patas do monstro, com grande admiração.”
Como o tempo corria! Há dois anos descobrira o secular Marcus Sallustius Secundus. E como sua vida havia mudado de lá até aquele dia! Aliás, dupla descoberta num só dia: o poeta romano e a bela Vânia. Nem sabia qual dos dois lhe trouxera mais prazer.
A dois passos de seu carro recebeu o primeiro tiro. O segundo varou o livro, levado instintivamente ao peito, como escudo. Tombou junto ao veículo e mais quatro balas se alojaram em seu corpo.
E assim findou o tempo de Isaque Paiva, seu vasto abismo.
Brasília, 1991.