(Enéas Athanázio)
Quando teve início a difusão da Internet, repetiram-se as profecias no sentido de que o livro, em seu formato tradicional, estava com os dias contados e acabaria por desaparecer num futuro não muito distante. A freqüência com que surgiam esses vaticínios deixou deveras preocupados os amantes do livro, mas foi uma preocupação vã porque até agora aquelas profecias não se realizaram e os fatos parecem indicar que estavam equivocadas. Com efeito, nunca foram publicados tantos livros e sobre os mais variados assuntos como nos dias de hoje, inclusive no Brasil, e o consumo também cresceu de forma considerável. As Bienais do Livro, tanto em São Paulo como no Rio, são visitadas por um público cada vez maior e vendem milhões de exemplares de todos os gêneros. É verdade que, em termos comparativos com nossa população, o percentual de compradores de livros ainda é pequeno, mas houve uma evolução sensível desde que comecei a freqüentar essas feiras. Sempre que visito as livrarias, em especial as grandes, fico impressionando com a quantidade, a qualidade, a variedade e o tamanho das obras publicadas. Livros sofisticados, impressos em papel especial, em várias cores e recheados de ilustrações revelam uma indústria livreira competente e arrojada, sinal de que confia no mercado e investe pesado. Afirmava-se também que os livros grandes, com muitas páginas, não encontrariam público, mesmo porque o tempo dos leitores é cada vez mais escasso. Puro engano: obras enormes, em vários volumes, beirando o milheiro de páginas, figuram muitas vezes entre as mais vendidas, apesar do preço elevado. Em recente viagem a São Paulo conheci a “Livraria da FNAC”, num imenso subsolo da Avenida Paulista, cuja exposição é tão grande e variada que mais parece um shopping livreiro, exigindo tempo e paciência para uma simples visita. Ela promove, todos os meses, inúmeros eventos relacionados ao livro e à literatura a que denomina “Encontros na FNAC”, atraindo considerável público interessado. Por outro lado, tanto os catálogos das editoras como as notícias de lançamentos de novos títulos, publicadas nos jornais, informam a respeito da grande quantidade de obras novas que são colocadas no mercado a todo instante. O jornal “Folha de S. Paulo” criou a “Publifolha”, espécie de editora paralela de livros, e tem feito o lançamento de obras importantes, nacionais e estrangeiras, a preços reduzidos e com boa qualidade gráfica. A “Biblioteca Folha” publicou uma coleção de clássicos a preços baixos em relação aos de mercado, incluindo obras de Hemingway, Graham Greene, Somerset Maugham, Franz Kafka, Vargas Llosa, F. Scott Fitzgerald, Joseph Conrad, James Joyce, Vladimir Nabokov, Graciliano Ramos e outros. Conclui-se, pois, que aqueles que previam a substituição do livro pelo computador estavam completamente enganados.
Aqui no Estado a situação não é tão promissora. Nossas feiras do livro são fracas e não dispomos de boas livrarias, com poucas exceções. E o mais grave é que não temos livreiros, na verdadeira acepção da palavra, daqueles que conhecem e amam o métier, com as poucas exceções de praxe. Consta que existem no Estado cerca de cinqüenta editoras, entre as quais as oficiais. A rede de livrarias no território estadual é pequena, o mesmo ocorrendo com as bibliotecas públicas, muitas delas apenas nominais, mas que não funcionam ou o fazem de forma precária. A visita a muitas delas é desanimadora. Creio que nunca houve, pelo menos que me lembre, um esforço sério e contínuo para dotar o Estado de bibliotecas públicas bem aparelhadas, com um acervo razoável e pessoas qualificadas.
No plano nacional, tem aumentado o número de livrarias convencionais. Ao lado delas funcionam os sebos, muitos deles de luxo, embora a maioria seja popular, instalada nos mais diversos locais, inclusive nas calçadas das vias públicas. Os primeiros compram e vendem obras raras, esgotadas e de difícil acesso, atingindo algumas delas preços incríveis. É o caso da “Leart – Livraria e Encadernação”, pertencente à minha amiga Zelina Castello Branco, viúva do escritor, jornalista e bibliófilo Carlos Heitor Castello Branco, o maior expert em livros que pude conhecer. Instalada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, possui livros que fazem a alegria de colecionadores de todo o país e que a visitam de tempos em tempos na incansável pesquisa de raridades. Os sebos “Brandão” e “Calil”, da mesma cidade, também são admiráveis pela quantidade e variedade de obras à venda. O primeiro deles ocupa nada menos que nove andares com as paredes recobertas de estantes repletas. Numa visita ao “Calil”, o gerente ficou muito aborrecido porque não encontrei nenhum dos três títulos que procurava. Outros sebos bons existem também no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Blumenau e outras cidades, muitos deles com aquele cheiro característico do livro usado que os identifica à distância. Sebos populares vendem livros a preços inferiores ao de um exemplar de jornal. Só não lê quem não quer.
À margem desse mercado oficial do livro se desenvolve imensa rede informal constituída pelas pequenas editoras, edições feitas pelos próprios autores (edições do autor), edições feitas em sistema de cooperativas, obras editadas por empresas e instituições culturais e obras fora do comércio. Em tiragens maiores ou menores, quase nunca chegam às livrarias ou só são expostas em algumas, realizando seus autores as vendas diretas aos interessados, com largo uso do sistema dos correios para a distribuição. Circula dessa forma grande volume de livros, cujo número é impossível precisar. Houve um período bastante longo em que ocorreu verdadeira “febre” de antologias, todas publicando e vendendo. O encarecimento dos custos diminuiu essas edições, embora muitas ainda continuem sendo feitas. A publicação por tais meios nem sempre influi na qualidade das obras; muitas vezes são de qualidade literária superior às que contam com grande divulgação e esmerada distribuição. A maioria dos best-sellers que pulula nas montras dos livreiros é de valor literário inferior. Em literatura, distribuição agressiva e divulgação constante na mídia não constituem garantias de qualidade. Muitos autores célebres preferiram publicar seus livros em pequenas edições pessoais e bem elaboradas que em tiragens mecânicas e impessoais saídas de grandes prelos. O escritor português Miguel Torga é um exemplo; a britânica Virgínia Woolf criou pequena editora artesanal na qual dava a público obras artísticas em conteúdo e feição gráfica. Por outro lado, muitos autores que publicam por conta própria vendem bem, tornam-se conhecidos e até se transformam em escritores profissionais. Suas obras, com o tempo, conquistam espaços, vencendo os óbices criados pela ausência de divulgação e se impõem. Tenho conhecido escritores que viajam pelo país com suas obras embaixo do braço, vendendo-as aqui e ali, e vivem apenas dessa atividade. Muitos nomes poderiam ser lembrados.
Falando-se em livros, não podem ser esquecidas as sociedades ou agremiações que reúnem bibliófilos, bibliômanos, bibliomaníacos, colecionadores aficionados ou simples leitores. Entidades do gênero existem em todo o mundo. Aqui no Brasil, merece referência especial a “Confraria dos Bibliófilos do Brasil” (CBB), com sede em Brasília. Criada por José Salles Neto, com número limitado de associados (apenas 350), edita obras escolhidas pelos seus integrantes em volumes numerados para cada um deles, conforme a ordem de sua inscrição. São livros de reconhecida qualidade literária, sempre que possível publicados em datas que relembram eventos da vida de seu autor, em formato grande, com sobrecapa e caixa, ilustrados de forma exclusiva por artistas plásticos de renome.
A Confraria editou, até o momento em que escrevo, 13 obras, sendo a última saída do prelo, “Dez contos selecionados de Clarice Lispector” (2004). Escolhidos com esmero, com o auxílio do próprio presidente, os contos constituem uma antologia única, revelando inúmeras facetas da contística da autora em suas diversas fases. O livro foi composto em linotipo, a impressão do texto e das vinhetas foi realizada em máquina tipográfica manual, a encadernação e o acabamento executados por técnico especializado, no miolo foi utilizado papel de elite, a capa e a sobrecapa feitas em papel fabricado à mão com fibras vegetais por artesã papeleira. As ilustrações foram reproduzidas em serigrafia a partir dos originais. Elas são de autoria do artista plástico Marcelo Grassmann, muito conhecido, que apresenta, no final do volume, uma suíte com várias páginas de desenhos, em outra tonalidade de cor, enriquecendo ainda mais o livro.
Como se vê, uma obra similar ao que se faz em todo o mundo nas melhores editoras artísticas. Em paralelo, a Confraria lançou as “Edições da Confraria”, publicando livros com venda aberta ao público e com as mesmas qualidades. Em nosso Estado a entidade conta com apenas dois associados. (Contatos: Caixa Postal 8 6 3 1 – CEP 70312-970 – BRASÍLIA/DF).
Como existem livros sobre todos os assuntos imagináveis, é natural que também existam livros sobre livros. O já mencionado Somerset Maugham, leitor aficionado, daqueles que, à falta de outra coisa, liam até guias telefônicos, costumava dizer que não pode haver objeto mais inútil que livro que fala de outros livros. E, no entanto, ele próprio se entregava com prazer à leitura desses livros. Pensando bem, de que serve ler livros sobre outros livros? Não seria mais útil e proveitoso ler os próprios?
Para mim, embora reconhecendo que sou dos poucos, essa leitura ainda tem encantos. Passam os anos e não me canso de ler coletâneas de ensaios literários, como acabo de fazer, trilhando as páginas amareladas de um velho volume denominado “Método e Interpretação”, de José Aderaldo Castello (Edição do CEC/SP – 1964). Nele o autor reuniu textos analíticos de livros de diversos autores, entre os quais Lima Barreto, Monteiro Lobato e Gilberto Amado, nada menos que três dos meus monstros sagrados. Mesmo sendo um exigente exercício de leitura, foi uma experiência agradável, mostrando quão vastos são os caminhos que uma obra pode abrir para um crítico competente.
Li também uma coletânea de crônicas sobre livros, esta mais voltada à análise da paixão livresca, publicada por pequena editora Trata-se de “A paixão pelos livros”, reunindo depoimentos de autores brasileiros e estrangeiros, como Carlos Drummond de Andrade, D’Alembert, Flaubert, Petrarca, John Milton, Camilo Castelo Branco, Montaigne, William Saroyan, Varlam Chalámov, Plínio Doyle, José Mindlin e outros. A disparidade literária entre os textos salta aos olhos, mas o conjunto é interessante. Mindlin e Doyle não são escritores, embora tocados pela mesma paixão que fez deles os maiores bibliófilos nacionais. Os depoimentos do russo Varlam Chalámov e do norte-americano William Saroyan são tocantes, como também o empenho de Doyle para obter algum livro desejado. Como se sabe, ele foi o anfitrião do “Sabadoyle”, reunião de escritores que acontecia em sua residência, no Rio de Janeiro, e que tive ocasião de freqüentar. O livro faz indagar sobre a forma como se inocula a “doença livresca” e o apego que se desenvolve na pessoa, tantas vezes inibindo-a de se desfazer de um livro que nunca serviu para nada, é um autêntico trambolho, mas que tem algo de especial e indefinível aos olhos de seu dono. Como tem acontecido comigo.
E os livros que não se vendem? Nelson Palma Travassos, editor que passou a vida fazendo livros, próprios e alheios, costumava dizer que livro que não se vende é inútil. É claro que tal afirmação era uma brincadeira, pois, se assim não fosse, os livros mais importantes que existem, ou pelo menos a maioria deles, nunca teria sido publicada. O próprio Travassos, homem culto e escritor de talento, sabia muito bem disso, tanto que publicou inúmeros livros de vendagem duvidosa mas de significação cultural ou literária. Como se isso não bastasse, ele próprio publicou um livro denominado “Livro sobre livros” (Editora Hucitec – S. Paulo – 1978), reunindo parte do que produziu de melhor.
Eis aí algumas observações, muito pessoais e empíricas, de quem tem vivido os últimos trinta anos às voltas com os livros, lendo-os, divulgando-os, escrevendo-os e viajando sempre com eles embaixo do braço.
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