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terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Boi da cara triste - primeira parte (Nilto Maciel)

(Parábola de escárnio e maldizer)


Meu boi bonito,
Boi zabumbeiro,
Espalha essa gente
Que está no terreiro!
(Do "Bumba Meu Boi")


PROFECIA

-I -
Deu um tapa no lombo do boi e saiu capengando. O animal entortou o pescoço em sua direção e berrou. Zé Carroceiro estacou e virou-se.
– Volto já.
Enfiou o chapéu na cabeça e retomou a marcha. Tropicava nas pedras mal assentadas da rua, olhos pregados no chão e no casario adiante. Risinho no canto da boca, resmungava, à cadência dos passos.
– Que será?
Diante da Prefeitura, parou, benzeu-se e levou às mãos o chapéu. Ciscou feito galinha e, de supetão, venceu os sete degraus da entrada e todo o corredor que ia dar na sala do prefeito. Resfolegava, camisa grudada no corpo. Escorreu o fura-bolos na testa e despejou gotas de suor no chão. Com a mesma mão bateu à porta, de leve.
– Entre.
Frente à autoridade, cumprimentou-a com o chapéu e abaixou a cabeça, solenemente.
Retratos a óleo do Marechal Deodoro, do Presidente da República, de personalidades estaduais e municipais há muito pendurados à parede cercavam Raimundo Pitanga. Ladeavam-no bandeiras do Brasil e do Ceará. Sobre a mesa, papéis, canetas, cinzeiros, cigarros, um jarrinho de flores. Toda a sala recendia a silêncio e respeito.
– É só para falar do lixo.
Zé dizia sim com a cabeça, testa franzida, olhos piscando, boca aberta, mãos atadas ao chapéu. Prendia a respiração, aquelas barbas, aquelas patentes, aquelas imponências falando pela boca do prefeito.
– O progresso, o senhor sabe.
A voz grossa enchia a sala de palavras escolhidas, bonitas, sonoras, difíceis, às vezes engasgadas. E se misturavam à mão-caneta que ia e vinha sobre o papel, riscando, desenhando, anotando. Um cigarro atrás do outro envolvia a carroça, o boi e o lixo da cidade num nevoeiro imenso.
– Um trator.
O carroceiro amolegava a palha do chapéu, fitava as autoridades, lambia os beiços, fazia caretas.
– Entendo, sim, senhor.
Uma negra trouxe café para o edil, que o sorveu devagar, caneta apontada para o funcionário.
– Carroça, coisa do tempo do bumba, não é?

- II -
Caminhava, lerdo, mãos estiradas segurando o chapéu surrado, chinelos varrendo a rua, assustando os cachorros dorminhocos.
– Do tempo do bumba-meu-boi?
Zé atravessava a praça, atrapalhando a brincadeira da meninada, que jogava bola-de-meia, corria e gritava.
– Pára.
Parou, franziu a testa e os moleques debandaram, sumindo detrás dos benjamins. A bola contorcia-se, pequena, indefesa, aos pés do carroceiro, que a chutou, desajeitado, zambeta.

***
O pagode começou já tarde da noite, o terreiro cheinho de gente, a lua ajudando os candeeiros.
– Viva o boi.
Zé fantasiado de chifres de mesmo, arranjados com finado Capitão Marcelino, vestido de couro de remendos, balançando o chocalho no rumo do povo, dançando feito uma dama, rindo para os que iam matá-lo.
E o boi morreu e renasceu depois de um tempão de brincadeira.
– Quede a cachaça, pessoal?
– Eu não era boi de vera, ele.

***
Chegou junto ao animal, alisou-lhe a cara, vagarosamente, e disse baixinho que se preparasse para receber a notícia: o prefeito ia trocá-lo por um tal de trator. O boi estremeceu, fitou-o com demora, gemeu e chorou.
– Você não é tão velho assim, nem nunca dançou, não é?
O boi balançou o chocalho, estendeu a língua para o companheiro, como se o quisesse lamber, e em seu focinho desenharam-se as marcas de um sorriso. O carroceiro abraçou-lhe o pescoço e fungou.

- III -
Montinhos de terra e capim ao longo do fio-de-pedra, aos pés do boi, como se arrumados sob medida. O poste pintado de branco até à altura de uma pessoa descia em sombra sobre o animal, cortando-o ao meio. As paredes amarelas do Grupo, o muro alto, uma lagartixa que acenava, janelas de combogós, tudo como numa paisagem desbotada.
– Amigo velho.

***
Passavam defronte à casa amarela de porta e janela azuis na Praça Waldemar Falcão e Chico Preto pediu que parassem. Saía sangue de sua mão esquerda.
– Foi nessa lata.
Zé bateu palmas à porta da casa e pediu qualquer coisa para fazer um curativo: água, álcool, pó de café, fiapo de pano velho que fosse. Veio uma velha coberta de cabelos brancos, debulhando um rosário nos lábios murchos e arrastando umas chinelas mofadas.
O boi mugiu qualquer coisa e tiveram que pedir auxílio aos vizinhos.

***
As portas laterais da Matriz fechadas. Morcegos chiavam desesperados entre as paredes seculares. As casas, ao redor da praça deserta, refulgiam como arco-íris, assediando a Prefeitura imponente. Do chão, do calçamento evolava a fumaça do meio-dia. O carroceiro cochilava sobre os chinelos gastos, pés rachados como o sertão, calças frouxas e remendadas, cintura amarrada a cordão, mãos calosas em busca da terra, feito papungu no meio do mundo.

***
No monturo, cheiro de podridão, urubus alvoroçados, saltitantes, cachorros, porcos e galinhas disputavam restos de comida, pedaços de ratos e baratas, molambos sujos de sangue e bosta.
– Eu não me acostumo com imundícia.
Zé e Chico despejavam mais lixo para o repasto dos bichos caseiros.
– E quem vai se acostumar?
– O diabo.
O boi deu um berro tão esculhambado que os cachorros saíram em disparada, os porcos escapuliram aos roncos, as galinhas disputaram o céu aos urubus, Zé benzeu-se e Chico subiu à carroça.
– Valha-me, Santo Deus.

***
Escanchado no fio, um passarinho escorregava montado num tufo de nuvem na direção da serra. A sombra do carroceiro beijava os pés do boi, recostando a cabeça comprida no travesseiro de terra e capim.
– Eita vontade de tirar uma modorna.
O animal ergueu os chifres, olhou para o sol e respingou baba sobre a cama de pedra da rua.
– Estou é brincando, bichinho. Vamos trabalhar.
***
O prefeito, montado no jipe, passou no rumo do Potiú que parecia uma bala. Nem olhou para a carroça carregada de lixo.
– Já vai, danadinho?
O boi deu uma risada da caçoada, sem se importar com a poeira levantada pelo carro.
– Lixo de rapariga é vidro de perfume.

***
Pelos pés do carroceiro passeava uma formiga apressada. Parou no unhão e caiu no chão. Nenhum outro animalzinho andava pelo corpo do velho. Só um urubu pousava pequenino entre o chapéu e o telhado do Palácio Entre Rios.

- IV -
Com pouco, apareceu de novo o focinho de gato do jipe velho do prefeito. Aqueles dois olhões de enxergar todo mundo, aquele riso escangalhado.
A poeira subia e os cachorros atrás, malucos, inconformados com a velocidade do bicho.
– Ainda mato um peste desses.
Custou a pregar as patas redondas no calçamento. Fuçava o chão, em tempo de botar os bofes pela boca.
– Quem é, Chico?
Não o montava mais Pitanga, cavalgava-o Manuel Cotia, dentes de ouro a ranger. Apeou-se, rodou a chave no dedo, balançou as calças.
– Sede da gota.
Nem piscava o olhão amarelo do sol em cima de tudo. O chão chiava de se crestar. Zé Carroceiro apertou os olhos. Da venta de Chico escorria catinga de lixo. No lombo do boi não encostava nem mosquito.
– Vai ser jipeiro agora?
Manuel arreganhou os dentes para morder o tempo, coçou o fundo, bateu nas ancas duras do carro. Gostava lá daquela geringonça!
– Sou é tratorista.
E a chuva, caía ou não passava da Bahia? Parecia até a seca do quinze. Coitado do povo do sertão, nem chão, sem são nenhum de proteção.
– Mas Deus é grande.
O carroceiro cobriu a vista com a mão do coração e se afundou nas lonjuras do céu.
O boi almoçava o capim da coxia, incréu e sem berro.

- V -
O relógio da Matriz badalou doze vezes e as tripas de Zé roncaram.
– Lombriga.
Chico Preto diminuía cada vez mais de tamanho, no rumo do Beco de Labirinto. Pisava lá e acolá, feito urubu cangueiro.
– Sou é tratorista.
Mais nem sinal do Cotia, nem do jipe.
Fungou o carroceiro, levantou um pé, inclinou o esqueleto, quase escorregou no próprio escarro. Arrastou as chinelas na fornalha da calçada, em perseguição da sombra de sua lerdeza.
A cachorrada se metia nas latas de lixo soltas no chão, fuçava, lambia, sonhava.
Pelas janelas abertas das casas saltava a zoada de colheres cavando pratos, de meninos enjoados, homens e mães enjoados.
– Se não comer, não vai brincar.
Na praça, burros arrancavam raízes dos pés de benjamins e o mundo sobre o chapéu de Zé era uma terrinha azul com uma gema de ovo no fundo.

- VI -
Escancaradas as portas da bodega de Joaquim Traçalha, feito portão de feira. Na boca do carroceiro, nem um tiquinho de cuspe. Língua de papagaio.
– Bote uma p'r'eu matar o bicho.
O bodegueiro deu-lhe as costas, chupou os dentes, alcançou as prateleiras.
– Colonial ou Guaramiranga?
Meiou um copo nas barbas de Zé. Se chegava ou completava.
Arrolhou de novo a garrafa e viu as gengivas podres do freguês. E a cachaça a ferver na goela e se encachoeirar no rumo dos peitos do carroceiro.
– Boa, hein?
Zé meteu a mão no bolso. Dinheiro amassado e sem valor. Cobrasse e botasse outra. Criar coragem de chegar em casa.
– Calor dos seiscentos.
O bodegueiro deu o troco, retirou a tampa da garrafa, despejou a cachaça no copinho. Enfiou outra vez os olhos dentro da boca de Zé. E encolheu o nariz.

- VII -
– Lá vem o pai.
Abaixou-se o carroceiro ao passar pela porta. E só faltou quebrar os chifres.
Desbotados, grudados na parede, São Francisco, padre Cícero e Virgem Maria olhavam para o dono da casa.
Num canto, o pote, inchado, da cor de nada. O cururu havia voltado. Não adiantou desperdiçar tanto sal.
– Bicho teimoso.
Maria esfregou as mãos nos remendos do vestido, deu um pito no cachorro, caçou a vassoura.
– Trouxe a farinha?
A que tinha não dava um pirão escaldado.
O cachorro velho, cego, carga de ossos, lambia os beiços debaixo da mesa. Um magote de caneludos coçava perebas, catava piolhos, chupava catarro, fedia a bosta e ceroto.
– Vá ali na comadre, Chiquinha, e peça uma xícara de farinha emprestado. De tardinha eu pago.
A menina ensebou as canelas e chispou.
Soprou a trempe a mulher, cinza para todos os lados. E o homem ali, a rondar a mesa, tropicar nos mondrongos do chão.
– Essa menina parece que foi buscar a morte.
Levantou a vista Zé, arrotou cachaça, remoeu o lixo da goela.
– Fala, cristão.

***
Olhava para as paredes limpas da sala do prefeito, mesa repleta de tinteiros, ordens, tudo lustroso, cercado de Osório, Caxias, Deodoro, Ananias.
– O progresso da cidade, o senhor entende?
As mãos de Raimundo Pitanga desenhavam arabescos, labirintos, encenavam dramas, tragédias, e tudo encandeava o carroceiro, fazia-o perder o sossego, o equilíbrio, a razão.
– Compramos então um trator.
Sobre o bureau, fotografias exóticas, um bicho de grandes rodas, sistema dum jipe aloprado.
– E, como o senhor compreende, contratamos um tratorista.
A sala toda se retorceu, feito animal debaixo de chicote, girou, deu cambalhotas, entrou num remoinho danado. O prefeito pulava a mesa, as cadeiras rebolavam, a tinta do tinteiro sujava as paredes, os heróis pulavam fora dos quadros e se atracavam, o Palácio só faltava desabar.
– É o seu Manuel.

***
Horrorizada, Dona Maria fazia os pratos de arroz, feijão e farinha.
– Agora é ser varredor de rua.
Os meninos mordiam os beiços, chupavam as línguas, devorando o barro das panelas, olhos cheios de garras.

(Continua)

domingo, 13 de janeiro de 2008

A paixão pelos livros (Enéas Athanázio)


(Enéas Athanázio)


Quando teve início a difusão da Internet, repetiram-se as profecias no sentido de que o livro, em seu formato tradicional, estava com os dias contados e acabaria por desaparecer num futuro não muito distante. A freqüência com que surgiam esses vaticínios deixou deveras preocupados os amantes do livro, mas foi uma preocupação vã porque até agora aquelas profecias não se realizaram e os fatos parecem indicar que estavam equivocadas. Com efeito, nunca foram publicados tantos livros e sobre os mais variados assuntos como nos dias de hoje, inclusive no Brasil, e o consumo também cresceu de forma considerável. As Bienais do Livro, tanto em São Paulo como no Rio, são visitadas por um público cada vez maior e vendem milhões de exemplares de todos os gêneros. É verdade que, em termos comparativos com nossa população, o percentual de compradores de livros ainda é pequeno, mas houve uma evolução sensível desde que comecei a freqüentar essas feiras. Sempre que visito as livrarias, em especial as grandes, fico impressionando com a quantidade, a qualidade, a variedade e o tamanho das obras publicadas. Livros sofisticados, impressos em papel especial, em várias cores e recheados de ilustrações revelam uma indústria livreira competente e arrojada, sinal de que confia no mercado e investe pesado. Afirmava-se também que os livros grandes, com muitas páginas, não encontrariam público, mesmo porque o tempo dos leitores é cada vez mais escasso. Puro engano: obras enormes, em vários volumes, beirando o milheiro de páginas, figuram muitas vezes entre as mais vendidas, apesar do preço elevado. Em recente viagem a São Paulo conheci a “Livraria da FNAC”, num imenso subsolo da Avenida Paulista, cuja exposição é tão grande e variada que mais parece um shopping livreiro, exigindo tempo e paciência para uma simples visita. Ela promove, todos os meses, inúmeros eventos relacionados ao livro e à literatura a que denomina “Encontros na FNAC”, atraindo considerável público interessado. Por outro lado, tanto os catálogos das editoras como as notícias de lançamentos de novos títulos, publicadas nos jornais, informam a respeito da grande quantidade de obras novas que são colocadas no mercado a todo instante. O jornal “Folha de S. Paulo” criou a “Publifolha”, espécie de editora paralela de livros, e tem feito o lançamento de obras importantes, nacionais e estrangeiras, a preços reduzidos e com boa qualidade gráfica. A “Biblioteca Folha” publicou uma coleção de clássicos a preços baixos em relação aos de mercado, incluindo obras de Hemingway, Graham Greene, Somerset Maugham, Franz Kafka, Vargas Llosa, F. Scott Fitzgerald, Joseph Conrad, James Joyce, Vladimir Nabokov, Graciliano Ramos e outros. Conclui-se, pois, que aqueles que previam a substituição do livro pelo computador estavam completamente enganados.
Aqui no Estado a situação não é tão promissora. Nossas feiras do livro são fracas e não dispomos de boas livrarias, com poucas exceções. E o mais grave é que não temos livreiros, na verdadeira acepção da palavra, daqueles que conhecem e amam o métier, com as poucas exceções de praxe. Consta que existem no Estado cerca de cinqüenta editoras, entre as quais as oficiais. A rede de livrarias no território estadual é pequena, o mesmo ocorrendo com as bibliotecas públicas, muitas delas apenas nominais, mas que não funcionam ou o fazem de forma precária. A visita a muitas delas é desanimadora. Creio que nunca houve, pelo menos que me lembre, um esforço sério e contínuo para dotar o Estado de bibliotecas públicas bem aparelhadas, com um acervo razoável e pessoas qualificadas.
No plano nacional, tem aumentado o número de livrarias convencionais. Ao lado delas funcionam os sebos, muitos deles de luxo, embora a maioria seja popular, instalada nos mais diversos locais, inclusive nas calçadas das vias públicas. Os primeiros compram e vendem obras raras, esgotadas e de difícil acesso, atingindo algumas delas preços incríveis. É o caso da “Leart – Livraria e Encadernação”, pertencente à minha amiga Zelina Castello Branco, viúva do escritor, jornalista e bibliófilo Carlos Heitor Castello Branco, o maior expert em livros que pude conhecer. Instalada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, possui livros que fazem a alegria de colecionadores de todo o país e que a visitam de tempos em tempos na incansável pesquisa de raridades. Os sebos “Brandão” e “Calil”, da mesma cidade, também são admiráveis pela quantidade e variedade de obras à venda. O primeiro deles ocupa nada menos que nove andares com as paredes recobertas de estantes repletas. Numa visita ao “Calil”, o gerente ficou muito aborrecido porque não encontrei nenhum dos três títulos que procurava. Outros sebos bons existem também no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Blumenau e outras cidades, muitos deles com aquele cheiro característico do livro usado que os identifica à distância. Sebos populares vendem livros a preços inferiores ao de um exemplar de jornal. Só não lê quem não quer.
À margem desse mercado oficial do livro se desenvolve imensa rede informal constituída pelas pequenas editoras, edições feitas pelos próprios autores (edições do autor), edições feitas em sistema de cooperativas, obras editadas por empresas e instituições culturais e obras fora do comércio. Em tiragens maiores ou menores, quase nunca chegam às livrarias ou só são expostas em algumas, realizando seus autores as vendas diretas aos interessados, com largo uso do sistema dos correios para a distribuição. Circula dessa forma grande volume de livros, cujo número é impossível precisar. Houve um período bastante longo em que ocorreu verdadeira “febre” de antologias, todas publicando e vendendo. O encarecimento dos custos diminuiu essas edições, embora muitas ainda continuem sendo feitas. A publicação por tais meios nem sempre influi na qualidade das obras; muitas vezes são de qualidade literária superior às que contam com grande divulgação e esmerada distribuição. A maioria dos best-sellers que pulula nas montras dos livreiros é de valor literário inferior. Em literatura, distribuição agressiva e divulgação constante na mídia não constituem garantias de qualidade. Muitos autores célebres preferiram publicar seus livros em pequenas edições pessoais e bem elaboradas que em tiragens mecânicas e impessoais saídas de grandes prelos. O escritor português Miguel Torga é um exemplo; a britânica Virgínia Woolf criou pequena editora artesanal na qual dava a público obras artísticas em conteúdo e feição gráfica. Por outro lado, muitos autores que publicam por conta própria vendem bem, tornam-se conhecidos e até se transformam em escritores profissionais. Suas obras, com o tempo, conquistam espaços, vencendo os óbices criados pela ausência de divulgação e se impõem. Tenho conhecido escritores que viajam pelo país com suas obras embaixo do braço, vendendo-as aqui e ali, e vivem apenas dessa atividade. Muitos nomes poderiam ser lembrados.
Falando-se em livros, não podem ser esquecidas as sociedades ou agremiações que reúnem bibliófilos, bibliômanos, bibliomaníacos, colecionadores aficionados ou simples leitores. Entidades do gênero existem em todo o mundo. Aqui no Brasil, merece referência especial a “Confraria dos Bibliófilos do Brasil” (CBB), com sede em Brasília. Criada por José Salles Neto, com número limitado de associados (apenas 350), edita obras escolhidas pelos seus integrantes em volumes numerados para cada um deles, conforme a ordem de sua inscrição. São livros de reconhecida qualidade literária, sempre que possível publicados em datas que relembram eventos da vida de seu autor, em formato grande, com sobrecapa e caixa, ilustrados de forma exclusiva por artistas plásticos de renome.
A Confraria editou, até o momento em que escrevo, 13 obras, sendo a última saída do prelo, “Dez contos selecionados de Clarice Lispector” (2004). Escolhidos com esmero, com o auxílio do próprio presidente, os contos constituem uma antologia única, revelando inúmeras facetas da contística da autora em suas diversas fases. O livro foi composto em linotipo, a impressão do texto e das vinhetas foi realizada em máquina tipográfica manual, a encadernação e o acabamento executados por técnico especializado, no miolo foi utilizado papel de elite, a capa e a sobrecapa feitas em papel fabricado à mão com fibras vegetais por artesã papeleira. As ilustrações foram reproduzidas em serigrafia a partir dos originais. Elas são de autoria do artista plástico Marcelo Grassmann, muito conhecido, que apresenta, no final do volume, uma suíte com várias páginas de desenhos, em outra tonalidade de cor, enriquecendo ainda mais o livro.
Como se vê, uma obra similar ao que se faz em todo o mundo nas melhores editoras artísticas. Em paralelo, a Confraria lançou as “Edições da Confraria”, publicando livros com venda aberta ao público e com as mesmas qualidades. Em nosso Estado a entidade conta com apenas dois associados. (Contatos: Caixa Postal 8 6 3 1 – CEP 70312-970 – BRASÍLIA/DF).
Como existem livros sobre todos os assuntos imagináveis, é natural que também existam livros sobre livros. O já mencionado Somerset Maugham, leitor aficionado, daqueles que, à falta de outra coisa, liam até guias telefônicos, costumava dizer que não pode haver objeto mais inútil que livro que fala de outros livros. E, no entanto, ele próprio se entregava com prazer à leitura desses livros. Pensando bem, de que serve ler livros sobre outros livros? Não seria mais útil e proveitoso ler os próprios?
Para mim, embora reconhecendo que sou dos poucos, essa leitura ainda tem encantos. Passam os anos e não me canso de ler coletâneas de ensaios literários, como acabo de fazer, trilhando as páginas amareladas de um velho volume denominado “Método e Interpretação”, de José Aderaldo Castello (Edição do CEC/SP – 1964). Nele o autor reuniu textos analíticos de livros de diversos autores, entre os quais Lima Barreto, Monteiro Lobato e Gilberto Amado, nada menos que três dos meus monstros sagrados. Mesmo sendo um exigente exercício de leitura, foi uma experiência agradável, mostrando quão vastos são os caminhos que uma obra pode abrir para um crítico competente.
Li também uma coletânea de crônicas sobre livros, esta mais voltada à análise da paixão livresca, publicada por pequena editora Trata-se de “A paixão pelos livros”, reunindo depoimentos de autores brasileiros e estrangeiros, como Carlos Drummond de Andrade, D’Alembert, Flaubert, Petrarca, John Milton, Camilo Castelo Branco, Montaigne, William Saroyan, Varlam Chalámov, Plínio Doyle, José Mindlin e outros. A disparidade literária entre os textos salta aos olhos, mas o conjunto é interessante. Mindlin e Doyle não são escritores, embora tocados pela mesma paixão que fez deles os maiores bibliófilos nacionais. Os depoimentos do russo Varlam Chalámov e do norte-americano William Saroyan são tocantes, como também o empenho de Doyle para obter algum livro desejado. Como se sabe, ele foi o anfitrião do “Sabadoyle”, reunião de escritores que acontecia em sua residência, no Rio de Janeiro, e que tive ocasião de freqüentar. O livro faz indagar sobre a forma como se inocula a “doença livresca” e o apego que se desenvolve na pessoa, tantas vezes inibindo-a de se desfazer de um livro que nunca serviu para nada, é um autêntico trambolho, mas que tem algo de especial e indefinível aos olhos de seu dono. Como tem acontecido comigo.
E os livros que não se vendem? Nelson Palma Travassos, editor que passou a vida fazendo livros, próprios e alheios, costumava dizer que livro que não se vende é inútil. É claro que tal afirmação era uma brincadeira, pois, se assim não fosse, os livros mais importantes que existem, ou pelo menos a maioria deles, nunca teria sido publicada. O próprio Travassos, homem culto e escritor de talento, sabia muito bem disso, tanto que publicou inúmeros livros de vendagem duvidosa mas de significação cultural ou literária. Como se isso não bastasse, ele próprio publicou um livro denominado “Livro sobre livros” (Editora Hucitec – S. Paulo – 1978), reunindo parte do que produziu de melhor.
Eis aí algumas observações, muito pessoais e empíricas, de quem tem vivido os últimos trinta anos às voltas com os livros, lendo-os, divulgando-os, escrevendo-os e viajando sempre com eles embaixo do braço.
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