(Retirantes, de Portinari)
Páscoa
- I -
Manuel sungou as calças, alisou a cabeleira, moleques atrás de uma bola-de-meia, caras curiosas nas janelas, calorzão dos infernos. Deu uma volta ao redor do veículo e pulou para riba do bicho.
No queixo do tratorista, canhões escuros apontavam para o mundo. Entre os beiços e os buracos da venta, um bigode preto assanhado. Cara dura fincada no pescoço grosso de touro.
***
No curral da prefeitura, o boi dormia em pé e berrava. Num canto, a velha carroça coberta de moscas. Aqui e ali, touceiras de capim amarelado.
– Só resta matutar, meu boizinho.
Zé largou a pá e alisou o lombo do companheiro.
E fungou.
***
No rio, a meninada brincava de procurar água, enfiava as mãos na areia, corria, pulava, dava bundacanascas, mentia de nadar e se afogar.
– Socorro.
***
No terreiro de casa, Zé Carroceiro amarrava mato seco a um pedaço de pau.
– Que diabo é isso, homem?
Ora, se não podia mais dirigir a carroça, ia varrer rua, arrastar vassoura no calçamento.
Nem sequer levantou a vista para Maria, as mãos calosas entretidas nos nós. Também não tinha mais idade e sustança para sair correndo de porta em porta, carregando latas de lixo, como Chico Preto. Nem perder o emprego. Deus o livrasse dessa desgraça.
Fizeram o sinal-da-cruz, beijaram as pontas dos dedos.
E a carestia?
– Tudo pela hora da morte.
- II -
Antes de ser boi-de-carroça, de carregar a porcaria das casas e da rua para o monturo, vidinha besta, porca, foi garrote o amigo de Zé Carroceiro. No sertão, fartura e fome, chuva e seca, e a promessa de virar cozido. Terras de Raimundo Pitanga. E a decisão do prefeito de a Prefeitura adquirir um garrote para os serviços de limpeza pública.
De tanto fazer força e o tempo passar, cresceu, virou boi, agigantou-se. Quando pisava, o chão tremia. E todo dia passeava defronte das casas, orientado por Zé, que pouco ou quase nada nele batia, seguido de Chico Preto, que enchia até à tampa a carroça.
Tudo se limpava para se sujar de novo.
- III -
Espantou-se o boi com a passagem de homens descalços, magros, cor de cera.
– Boi bonito, hem!
Magote de sertanejos sujos e pedintes.
– Aqui pelo menos tem sombra.
Arrancharam-se diante do Palácio Entre-Rios, cobertos de chapéus de palha esfiapados, calças remendadas, pele queimada.
– Esse prefeito tem que arranjar comida.
Choro de crianças, lamentos, pragas. Seios murchos de fora e bocas sedentas a chupá-los.
– É a fome, minha gente.
Raimundo Pitanga surgiu à porta, engomado, branco, duro, a cuspir verbos.
A multidão se alvoroçou na calçada.
– O povo quer é comer, seu prefeito.
A autoridade pediu paciência, calma. Se Deus não mandava chuva, rezassem. Cada um no seu lugar. Água salgada no mar, padre na igreja, sertanejo no sertão, sapo na lagoa.
– Só se for a sua lagoa.
Riram as multidões. E cada um disse a sua, gritou, socou o chão com os pés. Menino chorou, faca riscou o cimento. Se o prefeito não arranjasse comida, invadiam a feira.
O boi lá longe fez mum.
E ninguém riu.
- IV -
Pulou do jipe Pitanga, diante do armazém de Luiz Macedo.
– Um cafezinho, chefe.
No chão, pó de tudo quanto hai, montanhas de sacos de algodão, cheiro de milho, feijão e gorgulho.
O prefeito beijava a xícara, assoprava e revirava os olhos.
– Bando de esmoleres.
Bichinhos miúdos atacavam seus pés, fartos, redondos, muitos.
– E o que se vai fazer?
Escorria suor das caras do prefeito e do atacadista. Colarinhos amarelos, bigodes tabacudos, olhos acesos.
– Caso de polícia.
Aceso, o palito de fósforo caiu bem em cima de um bichinho preto, que esticou os cambitos, estorricado.
– É a única solução.
- V -
Zé Carroceiro apoiou-se na vassoura e cuspiu longe, em tempo de sujar o homem que puxava um jumento carregado d'água.
– Não foi por gosto.
Um pedacinho de riso arranhou os dentes de Chico Preto. A pata do animal cobriu o resto da masca de fumo.
– Toque-toloque-toque.
O jipe de Raimundo Pitanga freou ao lado da bomba de gasolina.
– O tratorista.
Um cachorro enfiou a venta no cuspo do carroceiro, deu uma fungada e sarpou.
– E o prefeito arribou mesmo?
Cotia cutucou o carro, disparou feito bala e a catinga de gasolina tapou a boca de Chico.
– Hein?
Voltaram os dois a barrer a coxia, envergados, num vaivém cadenciado.
– Lá vem o trator.
Atrás deles, montinhos de lixo, bosta de cavalo, ponta de cigarro, capim seco, jornal velho, resto de osso.
– Basta uma faísca para isso pegar fogo.
Longe, o magote de flagelados espiava o tempo, comia farinha de cócoras, espantava o sol com chapéus furados.
– Será que o prefeito vai trazer verba?
O trator roncou junto aos ouvidos dos varredores. Zé subiu a calçada de um pulo.
– Isso lá é carroça de gente.
- VI -
Amontoados debaixo das marquises, os flagelados resmungavam.
– Esse Pitanga não é flor que se cheire.
Um cutucava os dentes com um pedaço de pau, a fazer caretas, feito soim.
– Tanta carne e a gente com fome.
O boi deu um longo mugido para as bandas de longe.
***
Luiz Macedo saiu esmagando gorgulhos e parou à porta do armazém.
– Bom-dia, compadre.
O outro parou, acendeu um cigarro, pigarreou.
– E esses cassacos?
O atacadista franziu a testa, espantou a fumaça, abriu e fechou a boca, mexeu e remexeu os beiços, assanhou o bigode, engelhou a cara.
– A salvação é o boi.
***
Os varredores encostaram as vassouras na parede, tiraram os chapéus, pediram cachaça.
Joaquim Traçalha abocanhou a cortiça com os dentes, fechou os olhos, chegou a garrafa aos copos.
– E aquele boi da carroça?
Zé engoliu o seu bocado, estalou os dedos, cuspiu ao pé do balcão.
– Triste que só vendo.
Chico Preto pediu um tico de farinha, esfregou a costa da mão, nos beiços, lambuzou-a toda.
O bodegueiro apresentou-lhe a cuia cheia do pó.
– Se não matarem o boi, os flagelados vão saquear o comércio.
(Continua)