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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Vládia Mourão e a escritura do tempo (Dimas Macedo)




A questão do tempo, umas das mais controvertidas da filosofia, tem desafiado a argúcia e a inteligência de muitos escritores de talento. Santo Agostinho o considerou um problema de impossível conceituação e de formulação teórica quase enigmática. Platão nunca elucidou os argumentos que foram levantados em torno do assunto. E da física quântica à especulação teorética, em torno da sua extensão ou durabilidade, muito mais dúvidas foram acumuladas do que possíveis soluções acerca da sua pertinência.
Jorge Luís Borges, um dos maiores gênios da literatura, via o tempo e o espaço como se fossem um binômio de compreensão inacessível. Afirmou que ambos constituem uma realidade indissociável, configurando uma diversidade de sentidos que se unifica em torno de um mesmo dilema ontológico. E de forma que o tempo e o espaço são categorias eternas que transcendem a todas as especulações que, em torno da matéria, se possam tecer ou formular.
Fala-se comumente na existência de um tempo objetivo e de um tempo subjetivo e de uma medida de valor para cada nível da abordagem pretendida pelo intérprete. Mas é certo que isto representa apenas um ponto de partida, pois é indiscutível que existe um tempo circular, de natureza cósmica e mundializada, que abrange a permanência de ambos e que tanto fascinou o universo da cultura grega.
Existe um tempo histórico objetivado que se mede pela cronologia ou pelo calendário que cada civilização convencionou e que adota como parâmetro de suas exigências. Essa medida do tempo interessa muito de perto aos historiadores e tem sido de grande utilidade para o estabelecimento das agendas no âmbito do processo social e político.
Bem diverso do tempo objetivo, que a todos interessa de forma plural e indiscriminada, existe o tempo subjetivo que se aloja na base do espírito e que fascina, essencialmente, a todos os artistas e especialmente aos escritores de maior expressão e tirocínio. Se tomarmos o tempo do delírio imaginativo dos dois principais personagens do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, ou se apelarmos para o tempo circular que movimenta o fluxo da consciência (e da linguagem) de Leopoldo Blom, o célebre personagem de Ulisses, monumento supremo da literatura de Joyce, podemos observar o quanto o tempo, em sua dimensão subjetiva, é um aliado forte de todos os escritores engenhosos.
Se invocarmos aqui a lição das Escrituras Sagradas, veremos que elas se referem a um tempo da anunciação e a um tempo da revelação, mostrando-nos que são atemporais, infinitos, complementares, simétricos e opostos o tempo do Antigo e o tempo do Novo Testamento. E assim como podemos falar de um tempo da semeadura e da colheita, podemos também nos reportar a um tempo da Graça e a um tempo da condenação ou do exílio da alma.
Entre a excitação e a satisfação, entre as grandes expectativas do homem e o instante da cura interior a que todos nós somos conduzidos, interpõe-se um lapso temporal ou um espaço de tempo que é infinitamente diferente em relação aos valores que cada ser humano professa. Rousseau, em Devaneios do Caminhante Solitário, e bem assim em As Confissões e no Emílio, mostra-nos que existem várias idades na perspectiva da idade cronológica. E que o lapso de tempo da existência proveitosa ou das misérias humanas de cada uma das pessoas não é medido pela quantidade do tempo objetivo que nos é destinado, mas pela intensidade com que vivenciamos a nossa experiência.
Torna-se, portanto, de grande utilidade, a abordagem da escritura do tempo na obra de um contista de fôlego e tão genial e abrangente quanto Samuel Rawet. Intelectual de origem judia, que vivenciou a herança da cultura judaica e que a renegou, posteriormente, com a verberação dos hereges, Samuel Rawet, indiscutivelmente, configura um dos marcos da curta ficção brasileira durante o século precedente.
A sua estréia na literatura, com os Contos do Imigrante (1956), mexeu com a inteligência da crítica. A sua obra, porém, toda ela plural e multifacetada, ainda não alcançou, no Brasil, a popularidade que todos os escritores do seu porte merecem e estão a reclamar. Isto, no entanto, não invalida os acertos da sua produção, pois toda obra de arte literária, para ser grandiosa, não depende tão-só da sua fruição ou da sua recepção por parte de leitores ou consumidores.
A sua hermenêutica e as suas possíveis releituras, a decifração da sua substância lingüística, a partir de elementos da semiologia e da semântica, e a redescoberta da sua unidade morfológica e dos arquétipos culturais que ela aloja nas suas entrelinhas, no seu enunciado filosófico e na polifonia da sua densidade significante são elementos que se prestam a remarcar toda a sua amplitude e abrangência.
Este livro de Vládia Mourão: Escritura do Tempo no Conto de Samuel Rawet, que arrebatou, em 2006, o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura – o que constitui, de forma induvidosa, o reconhecimento das suas qualidades – é um atestado inequívoco de como a rendição ao ensaio literário e à reflexão filosófica pode resultar numa obra de larga importância para a hermenêutica.
Em toda a extensão do seu texto, de forma soberana, Vládia coordena e unifica os laços de intercessão e de afastamento entre filosofia, cosmologia e literatura, com passagens pela mística de percepção augustiniana e pelos aportes da psicologia e da crítica literária de formação erudita, que encara as várias possibilidades do texto e a sua inserção no chamado sistema literário.
A erudição e o refinamento da linguagem que perpassam a elaboração deste trabalho de reflexão e de pesquisa atestam muito bem o lugar a que chegou Vládia Mourão como ensaísta do campo literário. Autora de Três Dimensões da Poética de Francisco Carvalho (1996), sua tese de mestrado em literatura brasileira, e do instigante livro de ensaios intitulado Contextos (Des)conexos (2006), Vládia se firma agora na literatura cearense como uma das suas escritoras de estatura maior, que assume o seu oficio de pesquisadora e de esteta decididamente como destino e vocação.
Não me vou, neste texto, explicar o conteúdo didático que mapeia e ordena a construção de todos os capítulos desta belíssima tese literária ou que recorta a sua dinâmica e a sua concepção investigativa. Digo tão-somente que a pesquisa de Vládia Mourão é um marco e um aporte da filosofia especulativa direcionada para a compreensão das muitas interfaces da literatura.
O tempo e as suas concepções, a escritura e as suas transformações no curso da história, a subjetividade e a objetividade que governam a imaginação dos escritores, a posição de Samuel Rawet na literatura brasileira e o significado da sua obra literária, mormente tendo-se em vista a elaboração da sua curta ficção e a destilação dos elementos da cultura judaica e da cultura da imigração e do exílio, que interferem na sua construção estilística, estão neste livro de Vládia Mourão a desafiar a curiosidade do leitor.
Colocando-se um pouco à margem do circuito da literatura que hoje se faz no Ceará, isto é, à margem das igrejas e do sistema da moda que transita pelos restaurantes, clubes sociais e academias, às vezes infestadas de veleidades e de gostos que nada dizem a respeito das grandes essências literárias, Vládia Mourão, desta forma, enobrece a sua militância e os espaços da sua atuação.
A disciplina, a paciência, a metodologia, a austeridade e o cuidadoso artesanato da linguagem e da precisão terminológica, empregados pela autora na confecção do texto deste livro, fazem do seu nome e da sua escritura literária um contributo de fôlego ao universo intelectual e à cultura da sua geração.
Poucas vezes vi no Ceará um livro tão inesperadamente maduro, tão pacientemente tecido e tão desveladamente lúcido quanto este – Escritura do Tempo no Conto de Samuel Rawet. E é por isto que eu o recomendo com tanto vigor e com o entusiasmo que sempre dediquei à leitura dos grandes escritores.
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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O assovio (Chico Lopes)



















(Para Gil Perini, em Goiânia)

Antes de tudo, era necessário não escutá-lo. Ou, escutando-o com cuidado, com a reverência de quem precisasse reter cada nota de uma dessas músicas cuja raridade faz com que se suspeite que não será ouvida novamente, negá-lo depois. Nisso, ela se esmerava – não, não estava perturbada, não, não sabia nada de nada. Havia um homem vagando pelos quarteirões principais do bairro tranqüilo tarde da noite, e não teria chamado a atenção de ninguém se não assoviasse daquele jeito. De um mavioso que ia para a afronta, para a vergonha, e ao mesmo tempo de um desarme, de uma delicadeza, como que convidando, intimando - mas a golpes de brisa - para Deus sabia o quê.