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domingo, 24 de fevereiro de 2008

O caminho de casa (Leonardo Vieira)



No mesmo dia da morte de Edgar, um homem alugou a casa vizinha. A viúva não deu importância ao fato, pois a dor da perda ocupava-lhe todas as horas. Os vizinhos, do mesmo modo atingidos pela morte daquele homem que se mostrara sempre tão amável e próximo, acharam estranho que, após tantos anos, a casa fosse ocupada.
Chegou um caminhão. Dois funcionários de uniforme levaram para dentro da casa uns poucos móveis: a cama de casal, mesas de cabeceira, armário, sofá, poltronas, escrivaninha, e tudo o mais que compõe o lar de pessoa solteira. Quando os carregadores terminaram o serviço, receberam a gorjeta do homem, e o caminhão partiu logo depois.
Os dias foram passando. A viúva, aos poucos, foi voltando à “rotina”. Já não permanecia trancada em casa, mas podia ser vista saindo, principalmente à tarde, para passear com o gato que havia comprado após a morte do esposo. Fazia-lhe companhia; e os vizinhos, sempre gostavam de dar-lhe boa tarde. Os pêlos de seu corpo pareciam arrepiar-se quando se aproximavam dele, e um guizo, pendurado no pescoço, brilhava com mais intensidade, se passavam os dedos em sua cabecinha, fazendo-lhe carinho.
À medida que a sombra da morte foi se dissipando do lugar – a casa da viúva estava sendo decorada com animais de topiaria, anões de jardim, a fonte artificial com o anjo segurando um jarro, de onde brotava água; de vez em quando, o jardineiro aparecia para modelar os arbustos; homens da loja de gesso traziam as peças ornamentais – os vizinhos perceberam que o homem da casa vizinha nunca havia saído dali, desde o dia em que a alugara. Viam-no surgir atravessando a janela da sala. À noite, numa seteira do segundo andar, divisavam seu rosto. Se perguntassem a cada um deles como seria o homem, não conseguiriam descrevê-lo, apesar de que a distância que separava as casas não passava de poucos metros. O estranho é que todos, quando se deparavam com sua figura, não podiam deter-se. Se tentavam olhar o rosto, algo mais forte, o medo, talvez, os repelia. Só a senhora Joana, a dona da loja de roupas, dissera que ele parecia ser muito velho, os cabelos compridos chegavam até a cintura. Fumava algo como um cigarro, soprando longas baforadas. As faces, finas, aparentavam cansaço. No mais, qual o desenho dos olhos, da boca, do nariz, não, isso não se poderia discernir. Joana tremia se a mais leve insinuação de que ela havia contemplado o rosto era jogada ao vento. E assim, passaram-se meses, um ano, e o jardim da viúva tornou-se um alegre parque de brinquedos: mandara trazer um carrossel, cujos cavalos tinham o tamanho real. Os filhos dos vizinhos vinham brincar nele. Batiam na porta da casa; a viúva saía sorridente, devido às crianças ansiosas por se divertirem. Não chegara a ter filhos, quando via um menino, também se lembrava de Edgar. Mas com um sentimento de carinho tão intenso, como se ele fosse alguma daquelas crianças, como se, depois de morto, houvessem lhe dado o direito de regressar à vida. Mas não, as idéias se dissipavam. A viúva corria a ligar o carrossel, enquanto os garotos montavam nos cavalos. Então, o carrossel girava, ouviam-se gritos, gargalhadas, a felicidade das crianças. O gato concentrava um olhar congelado no carrossel, totalmente hirto, e o guizo refletia as inúmeras cores do brinquedo.
Então, a viúva passou a prestar atenção à casa vizinha. Após ligar o carrossel, e sentar-se num balanço, cujas correntes estavam atadas ao galho de um pinheiro, olhava para a fachada enviesada do vizinho. Se sua casa, após a morte do marido, tingira-se de coloridos, de verde, do rumorejar da água escorrendo do jarro do anjinho, no outro terreno não se ouvia nada. Não possuía árvores o pequeno pedaço de terra que ficava em frente. Da grade até a fachada, uma grama mal cuidada, ressecada, era tudo que havia. A fachada precisava de reparos urgentes, uma das janelas tinha o vidro quebrado, talvez alguma pedra atirada por crianças, não se saberia dizer a quantos anos.
Quando saía para o passeio com o gato, ou, quando precisava fazer alguma compra, a viúva, quase todas as vezes, colocava-se diante da grade da casa, apertava o rosto entre os vãos, e, se o homem lá dentro, de fato, reparasse nela, veria a face como que retalhada, olhos saltados, boca contraída, o pescoço, sobressaindo dos ferros, com o pomo-de-adão quase do tamanho de uma maçã. E ria, sim, ela ria, um riso esfatiado. Poderia se dizer que pusesse a língua para fora. Só a cabeça do gato seria vista por inteiro, atravessando os espaços entre as grades.
Os vizinhos estranhavam quando viam a viúva nessa situação. Pois não se mantinha naquele estado, o corpo espetado nas grades, espiando lá dentro, por pouco tempo. Mas como, de que forma, alguém conseguiria medir o tempo que se passava? Não foi uma hora que ficara ali, sem mover um músculo? No dia em que choveu, mesmo assim, não continuou lá, quase fazendo parte da arquitetura da casa, molhada, podia ser que pegasse uma pneumonia, fixa, no trabalho infatigável, imóvel, de olhar para dentro? E como poderia ser aquilo, quando todos, evidentemente todos, não conseguiriam nem mesmo ousar atravessar a rua, para ver a edificação mais de perto? Não, ninguém passava pela calçada do homem. Mas ela permanecia ali, hipnotizada. Porém, talvez ela nunca tivesse estado, na mesma posição, espiando. Talvez fosse isso o que pensassem.
Um dia, um desses dias muito radiosos de dezembro, na antevéspera do Natal, a viúva saiu com o gato, preso numa coleira. Não foi na direção do Jardim Botânico, onde, diariamente, passeava entre as aléias, admirava o jardim japonês, o orquidário, ficava algum tempo sentada numa das mesas do café, acariciando o gato, cujos olhos permaneciam sem brilho, quase apagados; e ronronando. O trajeto não mudava: do jardim japonês ao orquidário, deste ao café, todos os dias, como se obedecesse à lei de um relógio. A menina que lhe servia algum refrigerante ou refresco, se dirigia, de qualquer modo, apenas a uma senhora com seu gato, mas se lhe perguntassem sobre o que poderia achar dessa mulher, a boca iria se calar, ou, começaria a falar de outra coisa qualquer, olhos salientes, o queixo trêmulo. Como uma simples senhora poderia causar tanto espanto àquela moça, bela, de cujo corpo sorria uma vida intensa, com toda certeza a mesma mocinha que, nos horários de folga, era vista de mãos dadas com o namorado, que a amava, enlaçava-a nos braços, e desejava casar com ela? “Não é nessa mesa que ela se senta, todos os dias, na mesma hora?” “Quem?” “A viúva, com um gato?!” “Mas essa mesa, não, ninguém pode se sentar aqui, a essa hora, além de mim. Tenho plena certeza. Pois, também, todos os dias, nesse mesmo espaço de tempo de que você está me dizendo sobre a tal senhora, sou eu mesmo que estou sentado aqui, exatamente nessa mesa. E sabe por quê? Porque estou escrevendo um livro, e esse é o melhor lugar para se escrever. Essa é a mesa que eu escolhi para escrever!”
A viúva, como se disse, desviou-se do trajeto para o Jardim Botânico. Ao invés dele, pegou a rua do canal. E não se deteve, nesse dia, diante da grade da casa vizinha. Pegou o caminho inverso, o gato é que parecia levá-la, os olhos e o guizo brilhando devido ao sol intenso. Usava um chapéu de palha com bordado azul, o vestido da mesma cor. Depois do canal, chegou ao fim da rua pavimentada. Atravessou o solo coberto de folhas amarelas. Algumas folhas se juntavam às do chão, caindo das copas das árvores. O gatinho então fez com que ela passasse pelos portões do cemitério.
A grama verde. Debaixo do sol a pino, a viúva andou pelo terreno. Não havia lápide ou mausoléu. Nem mesmo uma cruz. O solo encontrava-se atapetado pela grama verde, fulgindo sob o céu inteiramente azul, sem nuvens. A grama perdia-se ao longe. Também não existiam árvores. O gato arrastava a viúva pelo tapete verde, macio, por um vento que soprava agora de lugar nenhum, mas que beijava-lhe o corpo em longas lufadas. No que podia ser o centro do cemitério, erguia-se um carrossel, igual ao que a viúva mandara colocar no jardim. Só que, à medida que chegava perto dele, as dimensões foram aumentando, de tal forma, que a viúva teve a impressão de que fosse uma criança. Com dificuldade, escalou um dos cavalos, o gato equilibrado num dos braços. Quando conseguiu postar-se na sela, tomada de alegria, percebeu que o carrossel não poderia começar a girar, porque não tinha ninguém para ligá-lo. Mas aquela criança não podia fazer isso? Não, não era a de uma criança aquela silhueta, muito longe, ao lado do que parecia ser uma cabana, pintada de branco. A figura, de cabelos longos e brancos, com fumo evolando do rosto, acenava para a viúva. Ela sentiu que o sangue fervia em seu corpo, que as bochechas afogueavam, apertou demais o gatinho, enquanto o carrossel começava a girar, o cavalo abaixava e levantava, o gato soltou um miado doce. E sabia que tinha sido ele que ligara o carrossel para ela, e isso a fez se sentir quase feliz.

Mas, alguns dias depois, a senhora Joana, dona da loja de roupas, recebeu uma carta. Nela, a viúva pedia que lhe fizesse um vestido, indicava todas as medidas do corpo, de modo que não fosse preciso tirar as suas. Joana achou tudo estranho. Estava no cômodo que transformara em sala de costura. Não conseguiu espiar da janela para a casa da viúva. O medo era incontrolável. Agora a casa vizinha e a da viúva pareciam ter se tornado uma só, uma construção geminada, que unia um único medo. Joana observou que o dia era de sol. As árvores, que ladeavam a rua que levava ao Jardim Botânico, mostravam-se carregadas de flores, abertas em grandes cachos. Alguns passarinhos vinham pousar nos galhos. As crianças agora se distraíam andando de bicicleta ou velocípede. Na casa ao lado da loja de roupas, o pai de uma menina acabara de montar a piscina. A garotinha, provavelmente, fazia brincadeiras na água, pois Joana escutava um chapinhar, as risadinhas, o barulho dos pés: Platch! Platch! Quase sorriu. Mas não, havia aquela carta. Observando melhor, Joana reparou que as letras haviam sido escritas com muita precisão. Sim, não eram letras normais: as vogais, consoantes, a pontuação, era quase como se houvessem sido impressas no papel por algum tipo de carimbo. Só que Joana sabia que as letras tinham sido escritas à caneta. Uma perfeição quase... Devia ter levado horas escrevendo. Talvez escrevendo e escrevendo, jogando fora cartas inteiras, se algum erro deformava, por mais leve que fosse, a arquitetura das letras. Ela pedia que lhe fizesse um vestido branco. Um vestido com mangas godê, sem decote. Para quê, aquilo? E por que não viera pessoalmente pedir? Era só atravessar a rua. Joana soube que, como eles, ela também tinha medo. Desde o Natal, as crianças não iam mais ao jardim, andar de carrossel. Pois a viúva não saía mais de casa. Igual a el... Não era mais possível vê-lo. Joana sabia que não conseguiria. Para tentar capturá-lo, seria preciso apenas virar um pouco mais o rosto, pois sua janela não era ao lado da viúva? Qual a última vez que o vira? Talvez sentado numa cadeira, na janela do andar térreo, o rosto retalhado pelas grades. Fumaça saía de algo na boca. Os cabelos ainda maiores, as madeixas se enroscavam, caíam pela janela e se emaranhavam no chão, chegavam até as grades. Joana teve um sobressalto, levantou-se da cadeira, dobrou a carta e a colocou sobre um cesto ao lado da máquina de costura. Apesar de tudo, era necessário trabalhar. Para o Ano Novo, o vestido tinha que estar pronto no Ano Novo. Precisava encomendar a fazenda. Mas, não era necessário, tinha ainda uma boa peça de tecido branco, no depósito. Se fosse por si própria, de modo algum, de nenhuma maneira daria prosseguimento à tarefa. Por que não rasgava a carta, esquecia de tudo, afinal ela, ela não estava...? Alguma coisa a guiava para pegar o tecido branco, dispor as agulhas sobre a máquina, pegar a tesoura e cortar o pano, depois abrir a carta e verificar as medidas, medir com a fita métrica, desenhar as partes do vestido, passar o desenho para a fazenda através do papel carbono, sentindo, por meio do lápis, o perfil do corpo da viúva, corpo que ia se desenhando em suas mãos. Apesar do medo, do medo que crescia, devido às formas que iam invadindo-a, Joana continuava. Dois dias antes do Ano Novo, o vestido estava pronto. De pé, cobrindo uma armação de arame, a viúva se postava no centro da sala de costura. A viúva sem pernas, braços e a cabeça.

Poucos minutos antes do Ano Novo, a viúva se olhava no espelho ogival do quarto. O vestido caía-lhe perfeitamente. A mulher apalpava a cintura. Ainda o corpo mantinha o antigo desenho. Os seios despontavam sob a fazenda branca. E o rosto? Como seria? Ninguém mais saberia dizer. Aquelas faces, vivas, sorridentes, só existiam agora para o espelho. A viúva se recortava diante do armário de roupas, das mesinhas de cabeceira, da cama de casal coberta com uma colcha de renda. A cama de casal! Calor tingiu-lhe as faces. Tirou o excesso de batom do lábio inferior com a ponta da unha. Para si mesma, nunca estivera tão jovem. O gato, as duas patas dianteiras salientes, parado na borda da cama. Os olhos e o guizo brilhavam como estrelas. Mas não escutava sua respiração. Como se houvesse parado de funcionar. Os relógios, também, há muito não funcionavam. Tic-tacs congelados. Na sala de estar, sobre a cômoda, uma moldura vazia, a tela totalmente branca, ladeada por dois jarros com água.
O que existia dentro da casa? Móveis, como em todas as casas, quadros, portas, janelas, cadeiras. Não se poderia dizer que houvesse algo a mais que isso. A casa de uma mulher, um tanto sóbria, de mulher de meia-idade. Alguns bordados, esculturas, porta-retratos. Só que parecia não haver mais desenho. As esculturas amorfas. Os porta-retratos guardavam entes invisíveis. Até os móveis, tudo se emaranhava, como novelos de teias-de-aranha, fios brancos, finos, engalfinhando-se, fios que chegavam até as grades. Dos tetos pendiam lustres de teias-de-aranha, em cujos casulos algo brilhava. Nos relógios, uma superfície de água mantinha os ponteiros soluçando; a madeira, o ferro, os parafusos encontravam-se virados ao avesso, como que retorcidos, em espiral; as portas não conseguiam dormir. Por mais cansada que estivesse a casa, não conseguia dormir. Refletido no espelho, um corpo, totalmente coberto por teias, tentava se libertar. A única coisa que se movia, que tentava gritar dentro da imobilidade. Podia-se ver o desenho da boca projetando-se na camada sedosa do tecido: um buraco no centro da espiral. Os braços alcançavam uma determinada altura, e voltavam ao mesmo ponto, ao mesmo eixo de sua inércia. Alguém brincava com a água da banheira, alguém que não era uma menina, algo que se aproximava de uma menina, uma menina ao avesso, vermelha. E um grito, um grito ecoou por todas as coisas, estourando os ovos congelados nas teias, rebentando os copos, estalando a madeira. A viúva sorriu, ajeitou uma mecha do cabelo, pegou o gato, aninhado num dos braços e desceu as escadas. Faltavam pouquíssimos minutos para o Ano Novo. Ela dirigiu-se à porta da sala. Nunca estivera tão feliz.
Ela o viu, ou, melhor, viu o que era possível, parado na entrada da casa. Onde estariam os olhos? Não dava para distingui-los, porque estavam em vários lugares, se deslocavam, levados por riscos, por pinceladas, deslocados, piscando tortos, ora azuis, verdes, negros, brilhando, refletindo o guizo e os olhos do gato, os olhos da viúva, seu corpo fragmentado nas pupilas. E o nariz? Só existia pele, algo como borracha, por sob a qual o nariz e a boca eram apenas protuberâncias, desenhos falsos do que pudesse se fazer humano. A boca tentava falar, mas a pele abafava o sentido. Algo, muito remotamente, como, talvez: Venha comigo! E os cabelos, seriam cobras de seda, ou línguas de teias-de-aranha? Caíam em grandes ramadas, iam até lá fora, pela rua, cobriam as grades, o carrossel abandonado, engrossavam as barbas dos anões de jardim, se empapavam da água do jarro segurado pelo anjinho de pedra, gotejavam dos animais de topiaria, escondiam os balanços, parecia neve nos galhos do pinheiro. A viúva sentiu a mão, apertando a sua. Uma mão quente, macia, viva! O cigarro saía da boca de borracha, e fumo se dispersava pelo ar.
Ninguém viu quando a viúva saiu de casa com o gato, e dirigiu-se como autômato para a casa vizinha. Por trás das cortinas cerradas, garrafas de champanhe espocavam. Famílias se abraçavam, casais se beijavam, beijavam-se as crianças, recebiam o Ano Novo como uma bebida sagrada. Até Joana, segurando um cálice de vinho, mesmo olhando para as cortinas cerradas, só prestava atenção à música que, ainda há pouco, botara para tocar. Uma musiquinha infantil. Ninguém viu quando o homem abriu a porta de casa, e a viúva, no seu vestido branco, com o gato, entrou. Ninguém mais reparou, a partir daí, que da casa, emanava um calor. Que se ousassem atravessar a rua, e espremessem o rosto entre as grades, veriam lá dentro os três, as três figuras de olhos brilhantes: a mulher, o marido, o filho.


Leonardo Vieira de Almeida é escritor e cursa o mestrado em Literatura Brasileira na UERJ. Autor do livro de contos Os que estão aí, Ibis Libris, 2002, e de contos publicados no suplemento literário Rascunho, do jornal do estado do Paraná, no jornal Panorama e no sites literários Paralelos e Bestiário. É também tradutor e mora no Rio de Janeiro.


* Este conto faz parte do próximo livro a ser publicado pelo autor, A caixa de ostras.
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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Vládia Mourão e a escritura do tempo (Dimas Macedo)




A questão do tempo, umas das mais controvertidas da filosofia, tem desafiado a argúcia e a inteligência de muitos escritores de talento. Santo Agostinho o considerou um problema de impossível conceituação e de formulação teórica quase enigmática. Platão nunca elucidou os argumentos que foram levantados em torno do assunto. E da física quântica à especulação teorética, em torno da sua extensão ou durabilidade, muito mais dúvidas foram acumuladas do que possíveis soluções acerca da sua pertinência.
Jorge Luís Borges, um dos maiores gênios da literatura, via o tempo e o espaço como se fossem um binômio de compreensão inacessível. Afirmou que ambos constituem uma realidade indissociável, configurando uma diversidade de sentidos que se unifica em torno de um mesmo dilema ontológico. E de forma que o tempo e o espaço são categorias eternas que transcendem a todas as especulações que, em torno da matéria, se possam tecer ou formular.
Fala-se comumente na existência de um tempo objetivo e de um tempo subjetivo e de uma medida de valor para cada nível da abordagem pretendida pelo intérprete. Mas é certo que isto representa apenas um ponto de partida, pois é indiscutível que existe um tempo circular, de natureza cósmica e mundializada, que abrange a permanência de ambos e que tanto fascinou o universo da cultura grega.
Existe um tempo histórico objetivado que se mede pela cronologia ou pelo calendário que cada civilização convencionou e que adota como parâmetro de suas exigências. Essa medida do tempo interessa muito de perto aos historiadores e tem sido de grande utilidade para o estabelecimento das agendas no âmbito do processo social e político.
Bem diverso do tempo objetivo, que a todos interessa de forma plural e indiscriminada, existe o tempo subjetivo que se aloja na base do espírito e que fascina, essencialmente, a todos os artistas e especialmente aos escritores de maior expressão e tirocínio. Se tomarmos o tempo do delírio imaginativo dos dois principais personagens do conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis, ou se apelarmos para o tempo circular que movimenta o fluxo da consciência (e da linguagem) de Leopoldo Blom, o célebre personagem de Ulisses, monumento supremo da literatura de Joyce, podemos observar o quanto o tempo, em sua dimensão subjetiva, é um aliado forte de todos os escritores engenhosos.
Se invocarmos aqui a lição das Escrituras Sagradas, veremos que elas se referem a um tempo da anunciação e a um tempo da revelação, mostrando-nos que são atemporais, infinitos, complementares, simétricos e opostos o tempo do Antigo e o tempo do Novo Testamento. E assim como podemos falar de um tempo da semeadura e da colheita, podemos também nos reportar a um tempo da Graça e a um tempo da condenação ou do exílio da alma.
Entre a excitação e a satisfação, entre as grandes expectativas do homem e o instante da cura interior a que todos nós somos conduzidos, interpõe-se um lapso temporal ou um espaço de tempo que é infinitamente diferente em relação aos valores que cada ser humano professa. Rousseau, em Devaneios do Caminhante Solitário, e bem assim em As Confissões e no Emílio, mostra-nos que existem várias idades na perspectiva da idade cronológica. E que o lapso de tempo da existência proveitosa ou das misérias humanas de cada uma das pessoas não é medido pela quantidade do tempo objetivo que nos é destinado, mas pela intensidade com que vivenciamos a nossa experiência.
Torna-se, portanto, de grande utilidade, a abordagem da escritura do tempo na obra de um contista de fôlego e tão genial e abrangente quanto Samuel Rawet. Intelectual de origem judia, que vivenciou a herança da cultura judaica e que a renegou, posteriormente, com a verberação dos hereges, Samuel Rawet, indiscutivelmente, configura um dos marcos da curta ficção brasileira durante o século precedente.
A sua estréia na literatura, com os Contos do Imigrante (1956), mexeu com a inteligência da crítica. A sua obra, porém, toda ela plural e multifacetada, ainda não alcançou, no Brasil, a popularidade que todos os escritores do seu porte merecem e estão a reclamar. Isto, no entanto, não invalida os acertos da sua produção, pois toda obra de arte literária, para ser grandiosa, não depende tão-só da sua fruição ou da sua recepção por parte de leitores ou consumidores.
A sua hermenêutica e as suas possíveis releituras, a decifração da sua substância lingüística, a partir de elementos da semiologia e da semântica, e a redescoberta da sua unidade morfológica e dos arquétipos culturais que ela aloja nas suas entrelinhas, no seu enunciado filosófico e na polifonia da sua densidade significante são elementos que se prestam a remarcar toda a sua amplitude e abrangência.
Este livro de Vládia Mourão: Escritura do Tempo no Conto de Samuel Rawet, que arrebatou, em 2006, o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura – o que constitui, de forma induvidosa, o reconhecimento das suas qualidades – é um atestado inequívoco de como a rendição ao ensaio literário e à reflexão filosófica pode resultar numa obra de larga importância para a hermenêutica.
Em toda a extensão do seu texto, de forma soberana, Vládia coordena e unifica os laços de intercessão e de afastamento entre filosofia, cosmologia e literatura, com passagens pela mística de percepção augustiniana e pelos aportes da psicologia e da crítica literária de formação erudita, que encara as várias possibilidades do texto e a sua inserção no chamado sistema literário.
A erudição e o refinamento da linguagem que perpassam a elaboração deste trabalho de reflexão e de pesquisa atestam muito bem o lugar a que chegou Vládia Mourão como ensaísta do campo literário. Autora de Três Dimensões da Poética de Francisco Carvalho (1996), sua tese de mestrado em literatura brasileira, e do instigante livro de ensaios intitulado Contextos (Des)conexos (2006), Vládia se firma agora na literatura cearense como uma das suas escritoras de estatura maior, que assume o seu oficio de pesquisadora e de esteta decididamente como destino e vocação.
Não me vou, neste texto, explicar o conteúdo didático que mapeia e ordena a construção de todos os capítulos desta belíssima tese literária ou que recorta a sua dinâmica e a sua concepção investigativa. Digo tão-somente que a pesquisa de Vládia Mourão é um marco e um aporte da filosofia especulativa direcionada para a compreensão das muitas interfaces da literatura.
O tempo e as suas concepções, a escritura e as suas transformações no curso da história, a subjetividade e a objetividade que governam a imaginação dos escritores, a posição de Samuel Rawet na literatura brasileira e o significado da sua obra literária, mormente tendo-se em vista a elaboração da sua curta ficção e a destilação dos elementos da cultura judaica e da cultura da imigração e do exílio, que interferem na sua construção estilística, estão neste livro de Vládia Mourão a desafiar a curiosidade do leitor.
Colocando-se um pouco à margem do circuito da literatura que hoje se faz no Ceará, isto é, à margem das igrejas e do sistema da moda que transita pelos restaurantes, clubes sociais e academias, às vezes infestadas de veleidades e de gostos que nada dizem a respeito das grandes essências literárias, Vládia Mourão, desta forma, enobrece a sua militância e os espaços da sua atuação.
A disciplina, a paciência, a metodologia, a austeridade e o cuidadoso artesanato da linguagem e da precisão terminológica, empregados pela autora na confecção do texto deste livro, fazem do seu nome e da sua escritura literária um contributo de fôlego ao universo intelectual e à cultura da sua geração.
Poucas vezes vi no Ceará um livro tão inesperadamente maduro, tão pacientemente tecido e tão desveladamente lúcido quanto este – Escritura do Tempo no Conto de Samuel Rawet. E é por isto que eu o recomendo com tanto vigor e com o entusiasmo que sempre dediquei à leitura dos grandes escritores.
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