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terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Lideranças do Contestado (Enéas Athanázio)




Por circunstâncias da vida, nasci e cresci dentro do território do Contestado. Nos meus tempos de criança, no entanto, não se tocava no assunto, nem mesmo nos colégios onde estudei. Só o saudoso Prof. Estevão Juk, destoante da média em virtude de sua independência, aludia vez ou outra à insurreição cabocla. Era uma espécie de tema tabu, escondendo talvez secreto pudor ou vergonha de lembrar episódios sangrentos provocados por “bandidos e fanáticos atrasados.” Mesmo nessas raras referências, no entanto, falava-se na “revolta dos jagunços” e não em Contestado, designação que só ouvi muitos anos mais tarde, o que me leva a crer que foi invenção dos historiadores ou militares e não nasceu da boca do povo. Por outro lado, havia uma demonização do movimento no inconsciente popular, generalizando o terror implantado por Adeodato, mais conhecido por Leodato, que imperou apenas na última fase. Em relação a essa figura, mesclavam-se sentimentos de admiração e temor. Seu nome “fazia criança dormir.” Confirmando o que observei na minha região, sabe-se hoje que a imprensa em geral deu reduzido espaço à guerra que se estendeu por quatro anos (1912/1916), fazendo uma cobertura precária.
Existe hoje grande interesse pelo Contestado e, em conseqüência, vem se formando extensa bibliografia sobre o assunto, tanto na história como na ficção e até na poesia. Soma-se a ela agora um novo e importante título: “Lideranças do Contestado”, de autoria do historiador e professor da UFSC Paulo Pinheiro Machado (Editora da UNICAMP – Campinas – 2004). Baseado em ampla e minuciosa pesquisa, incluindo incansáveis excursões aos locais e entrevistas com numerosas pessoas, o conteúdo da obra vai muito além do título, constituindo-se em autêntica história do movimento, desde o início até o fim, penetrando na análise de suas causas e circunstâncias que o rodearam. Creio que é um dos mais completos ensaios existentes, se não o mais completo de todos, além de refletir a isenção de um autor que não tem laços pessoais com a região. Tal como o leitor há de estar se indagando, eu também indaguei por que foi o livro publicado pela UNICAMP e não pelas editoras locais. Creio que o próprio livro contém a resposta: em várias passagens ele põe em dúvida a palavra de consagrados autores sobre o assunto, quando não desmente, de forma frontal e com o peso de argumentos irrespondíveis, algumas de suas afirmações. E isso acontece em diversas oportunidades.
A primeira observação que se impõe com a leitura diz respeito ao desinteresse e ao alheamento da Capital em face do que acontecia no Planalto. Só mais tarde, quando as hostilidades explodiram de forma incontrolável, foram tomadas as providências necessárias e o governo estadual se fez mais presente. E, como sempre, a política miúda intervinha e atrapalhava, contribuindo para a situação caótica que se implantou em grande área da região. Cansados do jugo dos padres e dos coronéis que tudo dominavam com mão de ferro, buscavam os caboclos, desde o início, maior liberdade de ação e a possibilidade de viverem a seu modo, criando um novo estilo de vida. “Seria a construção de algo realmente novo, onde não vigoraria o poder das antigas autoridades. (...) O sentimento de irmandade cimentava estas práticas comunitárias (...) do que um comia, tudo tinha que comer; do que um bebia, tudo tinha que beber; todos eram irmãos” (pp. 209/210). Esse sentimento de irmandade era algo real, palpável e forte no interior dos redutos que se formaram com as bandeiras compostas de crentes que para eles se transferiram com suas famílias, teres e haveres. Surgiu um comunismo primitivo que nada tinha de marxista ou doutrinário. O ambiente ainda impregnado das pregações dos dois monges João Maria reforçava a fé dos caboclos. Contrariando o que tantas vezes se afirmou, o movimento foi composto de caboclos pobres, inclusive aqueles considerados ricos eram, de fato, pobres, e quase não havia pessoas oriundas de outras regiões do país. O grosso dos revoltosos se constituía de gente da região, incluindo as lideranças. Eram os “crioulos”(1) ou “pelos duros”(2), que depois passaram a se dizer “pelados”, em contraposição aos “peludos”, - os inimigos -, porque passaram a raspar as cabeças. Mesmo os “arigós”(3) demitidos da ferrovia, depois de sua conclusão, e que aderiram ao movimento, eram oriundos da região.
Como em outros movimentos semelhantes – Canudos, Caldeirão, Pau de Colher – os revoltosos eram monarquistas. Acreditavam que a monarquia fôra instituída por Deus, sendo, portanto, mais justa e honesta, o que revela como esse regime penetrou fundo na alma popular que enxergava no imperador uma espécie de pai de todos. Imaginavam estabelecer nos redutos um regime monárquico, mas como o “rei”, - o monge José Maria, - havia falecido e estava ausente, formou-se uma curiosa monarquia sem rei. O rei, acreditavam eles, ressuscitaria e voltaria para combater os peludos à frente do exército encantado de São Sebastião. Esse culto a São Sebastião, ao contrário do que muitos pensam, nada tem com o “sebastianismo”, inspirado no rei português que morreu nas Cruzadas, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O santo venerado é o São Sebastião soldado do exército romano e guerreiro, que foi amarrado e vítima de flechadas, mas não morreu, sendo mais tarde morto a bastonadas e lançado na Cloaca Máxima, de onde foi resgatado por cristãos e sepultado nas Catacumbas. Sua memória é celebrada em 20 de janeiro e as imagens sacras o figuram sempre amarrado ao poste e crivado de setas. A crença no retorno, porém, parece indicar a existência de certa confusão entre as histórias do rei e do santo.(4) Os chamados “12 Pares de França”, objeto de tantos comentários, na verdade nunca existiram. Segundo o autor, os sertanejos se referiam apenas aos pares de França, sem fixar o número de doze e sem referir-se a Carlos Magno, mais um detalhe que teria sido criado pelos intérpretes ou por lendas. No caso, a gesta carolíngia teria sido deturpada ou interpretada de forma errônea.
A rígida disciplina imposta nos redutos acabou gerando autêntica ditadura dos chefes e qualquer desvio merecia enérgica punição. Ao tempo de Adeodato, o último chefe, a partir de 1914, essas punições foram numerosas e de grande violência. Muitas delas são relatadas pelo autor.
Como se sabe, dois foram (pelo menos) os monges de nome João Maria que palmilharam o Planalto em pregações e previsões apocalípticas. No imaginário popular, porém, ambos se unificam e confundem num só, como concluiu o pesquisador Nilson Thomé em minucioso estudo. O autor do livro aqui comentado estabelece nítida distinção entre um e outro e, mais tarde, com a figura do monge José Maria, esclarecendo muitas confusões. O primeiro João Maria seria italiano, surgiu em Sorocaba em 1844 e desapareceu de circulação por volta de 1870. Seu nome era João Maria Agostini ou D’Agostini, e ficou conhecido como João Maria de Agostinho. Além de Sorocaba, perambulou pelo Rio Grande do Sul e pelo Paraná, onde existe uma gruta na qual teria morado, nas redondezas da cidade da Lapa, e, certamente, pelo nosso Planalto. Expulso do Rio Grande, veio para Santa Catarina, onde permaneceu “por alguns meses de 1849, vivendo voluntariamente isolado na Ilha do Arvoredo, a quinze quilômetros do litoral de Porto Belo, e depois seguiu para o Rio de Janeiro e retornou a Sorocaba” (p. 229). A permanência do monge nessa ilha é evocada num conto de José Boiteux, publicado no livro “Águas Passadas” (1932). Pregava o uso de águas curativas, a abstenção de carne aos sábados, guardar uma vida de respeito e penitência e levantar cruzes em locais indicados, em número de 14, conforme as estações da via sacra. Como conclui o autor,“tinha uma relação bastante próxima com a estrutura oficial da Igreja católica” (p. 164). Oswaldo Rodrigues Cabral foi o mais minucioso investigador dessa figura itinerante, sempre coberta pelo gorro de pele de jaguatirica e apoiado em seu cajado.
O segundo João Maria seria sírio de nascimento e tinha sotaque acastelhanado, tendo vindo de Buenos Aires, onde, com certeza, viveu por algum tempo. Chamava-se Anastas Marcaf e peregrinou longamente pelo Planalto entre 1890 e 1908 ou 1910. Ficou conhecido como João Maria de Jesus e dizia que vivia peregrinando para cumprir uma penitência. Entre sua entrada em cena e o desaparecimento do primeiro mediou um tempo de pelo menos dez anos. Tinha certa semelhança física com o primeiro, também falava em águas santas e pregava a necessidade de erigir cruzes. Evitava aglomerações de povo e não permanecia muito tempo no mesmo lugar – “anoitecia e não amanhecia”, diziam. Era monarquista, tinha simpatia pelos federalistas e “teve uma relação hostil com o clero católico: fazia batizados; propalava um discurso apocalíptico com grande receptividade no Planalto”(p. 168). Tinha fama de milagroso, realizando muitas curas, e punha extrema atenção nos sinais da natureza. “Quem não sabe ler a natureza é analfabeto de Deus” – afirmava. Esteve nos campos de Palmas, no vale do rio do Peixe, no interior e nas vilas de Campos Novos, Curitibanos, Rio Negro, Canoinhas e Porto União. Nas cercanias desta cidade, no pico do Morro da Cruz, existia um cruzeiro que teria sido erigido por ele. Dizia-se que quando essa cruz caísse haveria uma enchente catastrófica no rio Iguaçu. Segundo os padres franciscanos, foi ele o grande responsável pelo fanatismo religioso na região, mesmo tendo desaparecido muito antes dos embates guerreiros. A crença popular afirma que João Maria se retirou para o alto do Morro do Taió, onde vive até hoje, “encantado”, com quase duzentos anos (pp. 168/169). Foi um líder nato, com intenso poder de convencimento, e sua atitude independente em relação ao clero fechava com o sentimento dos insurgentes que se consideravam vítimas de padres e coronéis.
Decorridos de dois a quatro anos, aparece no cenário o monge José Maria, aquele que alguns autores consideram o “monge de guerra”, fato que o autor põe em dúvida ao mostrar que ele tudo fez para não guerrear e só iniciou as hostilidades para não recuar diante de um desafio peremptório. Por volta de 1912, vivia no povoado do Espinilho, no município de Campos Novos, onde se fizera “erveiro” competente, receitando mezinhas e garrafadas, realizando suas curas, além de rezas e benzimentos. Numa época de escassos médicos e farmacêuticos, ele supria a ausência desses profissionais da saúde, dando assistência aos doentes que o procuravam. Foi ali que uma grada comitiva de revoltosos foi buscá-lo para comandar o movimento e, assim, iniciar sua caminhada para ingressar na História. Homem de passado obscuro, chamava-se Miguel Lucena de Boaventura e proclamava ser irmão de João Maria. Morreu em 22 de dezembro de 1912, no combate do Irani, fato que marcou o início real da guerra. Nessa contenda também morreu o coronel João Gualberto, comandante das forças legais, e que alardeara que em poucos dias faria os fanáticos desfilarem, amarrados com cordas, pela rua XV de Novembro, em Curitiba. A morte do monge espalhou um rastro de ódio nos corações caboclos do Planalto, deu margem a inúmeras versões e lendas, e passou a alimentar a esperança de sua ressurreição, voltando à frente do exército encantado de São Sebastião para impor a suprema derrota aos peludos. Em sonhos ou visões, José Maria conversava com as “virgens santas”, os chefes e outras figuras dos redutos, transmitindo ordens e estratégias guerreiras. Ficou “encantado” e passou a ser visto em toda parte.
Daí em diante a guerra se estende até 1916 e os insurgentes chegam a dominar imenso território. Conhecedores do terreno e donos de uma coragem sobre-humana, praticavam uma guerra de guerrilhas que desnorteava as forças legais, atacando e recuando, usando da surpresa e da audácia. Invadiram a vila de Curitibanos, reduto do coronel Albuquerque, queimaram os povoados de Calmon, uma das sedes da Cia. Lumber, São João de Cima e São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Em 5 e 6 de setembro de 1914 foram incendiados Calmon, sob o comando de Chiquinho Alonso, e São João dos Pobres, sob o comando de Venuto Baiano. A violência dos ataques não teve limites. Todos os homens adultos foram mortos, as instalações ferroviárias incendiadas. Em Calmon, a serraria da Lumber, símbolo do poder estrangeiro, foi reduzida a cinzas, e as labaredas, segundo testemunhas, iluminaram o sertão durante noites seguidas. O capitão Matos Costa foi morto no dia 6, num equívoco lamentável porque foi uma pacifista e entendia os reclamos dos caboclos (pp. 263/264).
São algumas observações sobre um livro que aborda tema dos mais complexos de nossa história, ao qual trouxe grande contribuição, embora muito ainda haja a desvendar, como adverte o próprio autor. É uma obra que daqui em diante será indispensável em qualquer pesquisa sobre o Contestado, cuja ausência a inquinará de grave falha. Anoto, por fim, a surpresa que me causaram os muitos erros de redação existentes no texto, em especial no mau uso da crase, fato que recomenda rigorosa revisão na hipótese de nova edição. No conjunto, é obra isenta, minuciosa e bem fundamentada.
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Notas:
(1) Crioulo, no Planalto, é a pessoa originária do local. Nada tem a ver com descendência afro e nenhum sentido pejorativo.
(2) Pelo duro é o caboclo puro, sem mistura de outras raças.
(3) Arigós eram os trabalhadores braçais da ferrovia. A maioria foi demitida com o término da construção da estrada de ferro.
(4) “Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, Editora Globo, 1971, 12a. ed., Tomo X.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

O caminho de casa (Leonardo Vieira)



No mesmo dia da morte de Edgar, um homem alugou a casa vizinha. A viúva não deu importância ao fato, pois a dor da perda ocupava-lhe todas as horas. Os vizinhos, do mesmo modo atingidos pela morte daquele homem que se mostrara sempre tão amável e próximo, acharam estranho que, após tantos anos, a casa fosse ocupada.
Chegou um caminhão. Dois funcionários de uniforme levaram para dentro da casa uns poucos móveis: a cama de casal, mesas de cabeceira, armário, sofá, poltronas, escrivaninha, e tudo o mais que compõe o lar de pessoa solteira. Quando os carregadores terminaram o serviço, receberam a gorjeta do homem, e o caminhão partiu logo depois.
Os dias foram passando. A viúva, aos poucos, foi voltando à “rotina”. Já não permanecia trancada em casa, mas podia ser vista saindo, principalmente à tarde, para passear com o gato que havia comprado após a morte do esposo. Fazia-lhe companhia; e os vizinhos, sempre gostavam de dar-lhe boa tarde. Os pêlos de seu corpo pareciam arrepiar-se quando se aproximavam dele, e um guizo, pendurado no pescoço, brilhava com mais intensidade, se passavam os dedos em sua cabecinha, fazendo-lhe carinho.
À medida que a sombra da morte foi se dissipando do lugar – a casa da viúva estava sendo decorada com animais de topiaria, anões de jardim, a fonte artificial com o anjo segurando um jarro, de onde brotava água; de vez em quando, o jardineiro aparecia para modelar os arbustos; homens da loja de gesso traziam as peças ornamentais – os vizinhos perceberam que o homem da casa vizinha nunca havia saído dali, desde o dia em que a alugara. Viam-no surgir atravessando a janela da sala. À noite, numa seteira do segundo andar, divisavam seu rosto. Se perguntassem a cada um deles como seria o homem, não conseguiriam descrevê-lo, apesar de que a distância que separava as casas não passava de poucos metros. O estranho é que todos, quando se deparavam com sua figura, não podiam deter-se. Se tentavam olhar o rosto, algo mais forte, o medo, talvez, os repelia. Só a senhora Joana, a dona da loja de roupas, dissera que ele parecia ser muito velho, os cabelos compridos chegavam até a cintura. Fumava algo como um cigarro, soprando longas baforadas. As faces, finas, aparentavam cansaço. No mais, qual o desenho dos olhos, da boca, do nariz, não, isso não se poderia discernir. Joana tremia se a mais leve insinuação de que ela havia contemplado o rosto era jogada ao vento. E assim, passaram-se meses, um ano, e o jardim da viúva tornou-se um alegre parque de brinquedos: mandara trazer um carrossel, cujos cavalos tinham o tamanho real. Os filhos dos vizinhos vinham brincar nele. Batiam na porta da casa; a viúva saía sorridente, devido às crianças ansiosas por se divertirem. Não chegara a ter filhos, quando via um menino, também se lembrava de Edgar. Mas com um sentimento de carinho tão intenso, como se ele fosse alguma daquelas crianças, como se, depois de morto, houvessem lhe dado o direito de regressar à vida. Mas não, as idéias se dissipavam. A viúva corria a ligar o carrossel, enquanto os garotos montavam nos cavalos. Então, o carrossel girava, ouviam-se gritos, gargalhadas, a felicidade das crianças. O gato concentrava um olhar congelado no carrossel, totalmente hirto, e o guizo refletia as inúmeras cores do brinquedo.
Então, a viúva passou a prestar atenção à casa vizinha. Após ligar o carrossel, e sentar-se num balanço, cujas correntes estavam atadas ao galho de um pinheiro, olhava para a fachada enviesada do vizinho. Se sua casa, após a morte do marido, tingira-se de coloridos, de verde, do rumorejar da água escorrendo do jarro do anjinho, no outro terreno não se ouvia nada. Não possuía árvores o pequeno pedaço de terra que ficava em frente. Da grade até a fachada, uma grama mal cuidada, ressecada, era tudo que havia. A fachada precisava de reparos urgentes, uma das janelas tinha o vidro quebrado, talvez alguma pedra atirada por crianças, não se saberia dizer a quantos anos.
Quando saía para o passeio com o gato, ou, quando precisava fazer alguma compra, a viúva, quase todas as vezes, colocava-se diante da grade da casa, apertava o rosto entre os vãos, e, se o homem lá dentro, de fato, reparasse nela, veria a face como que retalhada, olhos saltados, boca contraída, o pescoço, sobressaindo dos ferros, com o pomo-de-adão quase do tamanho de uma maçã. E ria, sim, ela ria, um riso esfatiado. Poderia se dizer que pusesse a língua para fora. Só a cabeça do gato seria vista por inteiro, atravessando os espaços entre as grades.
Os vizinhos estranhavam quando viam a viúva nessa situação. Pois não se mantinha naquele estado, o corpo espetado nas grades, espiando lá dentro, por pouco tempo. Mas como, de que forma, alguém conseguiria medir o tempo que se passava? Não foi uma hora que ficara ali, sem mover um músculo? No dia em que choveu, mesmo assim, não continuou lá, quase fazendo parte da arquitetura da casa, molhada, podia ser que pegasse uma pneumonia, fixa, no trabalho infatigável, imóvel, de olhar para dentro? E como poderia ser aquilo, quando todos, evidentemente todos, não conseguiriam nem mesmo ousar atravessar a rua, para ver a edificação mais de perto? Não, ninguém passava pela calçada do homem. Mas ela permanecia ali, hipnotizada. Porém, talvez ela nunca tivesse estado, na mesma posição, espiando. Talvez fosse isso o que pensassem.
Um dia, um desses dias muito radiosos de dezembro, na antevéspera do Natal, a viúva saiu com o gato, preso numa coleira. Não foi na direção do Jardim Botânico, onde, diariamente, passeava entre as aléias, admirava o jardim japonês, o orquidário, ficava algum tempo sentada numa das mesas do café, acariciando o gato, cujos olhos permaneciam sem brilho, quase apagados; e ronronando. O trajeto não mudava: do jardim japonês ao orquidário, deste ao café, todos os dias, como se obedecesse à lei de um relógio. A menina que lhe servia algum refrigerante ou refresco, se dirigia, de qualquer modo, apenas a uma senhora com seu gato, mas se lhe perguntassem sobre o que poderia achar dessa mulher, a boca iria se calar, ou, começaria a falar de outra coisa qualquer, olhos salientes, o queixo trêmulo. Como uma simples senhora poderia causar tanto espanto àquela moça, bela, de cujo corpo sorria uma vida intensa, com toda certeza a mesma mocinha que, nos horários de folga, era vista de mãos dadas com o namorado, que a amava, enlaçava-a nos braços, e desejava casar com ela? “Não é nessa mesa que ela se senta, todos os dias, na mesma hora?” “Quem?” “A viúva, com um gato?!” “Mas essa mesa, não, ninguém pode se sentar aqui, a essa hora, além de mim. Tenho plena certeza. Pois, também, todos os dias, nesse mesmo espaço de tempo de que você está me dizendo sobre a tal senhora, sou eu mesmo que estou sentado aqui, exatamente nessa mesa. E sabe por quê? Porque estou escrevendo um livro, e esse é o melhor lugar para se escrever. Essa é a mesa que eu escolhi para escrever!”
A viúva, como se disse, desviou-se do trajeto para o Jardim Botânico. Ao invés dele, pegou a rua do canal. E não se deteve, nesse dia, diante da grade da casa vizinha. Pegou o caminho inverso, o gato é que parecia levá-la, os olhos e o guizo brilhando devido ao sol intenso. Usava um chapéu de palha com bordado azul, o vestido da mesma cor. Depois do canal, chegou ao fim da rua pavimentada. Atravessou o solo coberto de folhas amarelas. Algumas folhas se juntavam às do chão, caindo das copas das árvores. O gatinho então fez com que ela passasse pelos portões do cemitério.
A grama verde. Debaixo do sol a pino, a viúva andou pelo terreno. Não havia lápide ou mausoléu. Nem mesmo uma cruz. O solo encontrava-se atapetado pela grama verde, fulgindo sob o céu inteiramente azul, sem nuvens. A grama perdia-se ao longe. Também não existiam árvores. O gato arrastava a viúva pelo tapete verde, macio, por um vento que soprava agora de lugar nenhum, mas que beijava-lhe o corpo em longas lufadas. No que podia ser o centro do cemitério, erguia-se um carrossel, igual ao que a viúva mandara colocar no jardim. Só que, à medida que chegava perto dele, as dimensões foram aumentando, de tal forma, que a viúva teve a impressão de que fosse uma criança. Com dificuldade, escalou um dos cavalos, o gato equilibrado num dos braços. Quando conseguiu postar-se na sela, tomada de alegria, percebeu que o carrossel não poderia começar a girar, porque não tinha ninguém para ligá-lo. Mas aquela criança não podia fazer isso? Não, não era a de uma criança aquela silhueta, muito longe, ao lado do que parecia ser uma cabana, pintada de branco. A figura, de cabelos longos e brancos, com fumo evolando do rosto, acenava para a viúva. Ela sentiu que o sangue fervia em seu corpo, que as bochechas afogueavam, apertou demais o gatinho, enquanto o carrossel começava a girar, o cavalo abaixava e levantava, o gato soltou um miado doce. E sabia que tinha sido ele que ligara o carrossel para ela, e isso a fez se sentir quase feliz.

Mas, alguns dias depois, a senhora Joana, dona da loja de roupas, recebeu uma carta. Nela, a viúva pedia que lhe fizesse um vestido, indicava todas as medidas do corpo, de modo que não fosse preciso tirar as suas. Joana achou tudo estranho. Estava no cômodo que transformara em sala de costura. Não conseguiu espiar da janela para a casa da viúva. O medo era incontrolável. Agora a casa vizinha e a da viúva pareciam ter se tornado uma só, uma construção geminada, que unia um único medo. Joana observou que o dia era de sol. As árvores, que ladeavam a rua que levava ao Jardim Botânico, mostravam-se carregadas de flores, abertas em grandes cachos. Alguns passarinhos vinham pousar nos galhos. As crianças agora se distraíam andando de bicicleta ou velocípede. Na casa ao lado da loja de roupas, o pai de uma menina acabara de montar a piscina. A garotinha, provavelmente, fazia brincadeiras na água, pois Joana escutava um chapinhar, as risadinhas, o barulho dos pés: Platch! Platch! Quase sorriu. Mas não, havia aquela carta. Observando melhor, Joana reparou que as letras haviam sido escritas com muita precisão. Sim, não eram letras normais: as vogais, consoantes, a pontuação, era quase como se houvessem sido impressas no papel por algum tipo de carimbo. Só que Joana sabia que as letras tinham sido escritas à caneta. Uma perfeição quase... Devia ter levado horas escrevendo. Talvez escrevendo e escrevendo, jogando fora cartas inteiras, se algum erro deformava, por mais leve que fosse, a arquitetura das letras. Ela pedia que lhe fizesse um vestido branco. Um vestido com mangas godê, sem decote. Para quê, aquilo? E por que não viera pessoalmente pedir? Era só atravessar a rua. Joana soube que, como eles, ela também tinha medo. Desde o Natal, as crianças não iam mais ao jardim, andar de carrossel. Pois a viúva não saía mais de casa. Igual a el... Não era mais possível vê-lo. Joana sabia que não conseguiria. Para tentar capturá-lo, seria preciso apenas virar um pouco mais o rosto, pois sua janela não era ao lado da viúva? Qual a última vez que o vira? Talvez sentado numa cadeira, na janela do andar térreo, o rosto retalhado pelas grades. Fumaça saía de algo na boca. Os cabelos ainda maiores, as madeixas se enroscavam, caíam pela janela e se emaranhavam no chão, chegavam até as grades. Joana teve um sobressalto, levantou-se da cadeira, dobrou a carta e a colocou sobre um cesto ao lado da máquina de costura. Apesar de tudo, era necessário trabalhar. Para o Ano Novo, o vestido tinha que estar pronto no Ano Novo. Precisava encomendar a fazenda. Mas, não era necessário, tinha ainda uma boa peça de tecido branco, no depósito. Se fosse por si própria, de modo algum, de nenhuma maneira daria prosseguimento à tarefa. Por que não rasgava a carta, esquecia de tudo, afinal ela, ela não estava...? Alguma coisa a guiava para pegar o tecido branco, dispor as agulhas sobre a máquina, pegar a tesoura e cortar o pano, depois abrir a carta e verificar as medidas, medir com a fita métrica, desenhar as partes do vestido, passar o desenho para a fazenda através do papel carbono, sentindo, por meio do lápis, o perfil do corpo da viúva, corpo que ia se desenhando em suas mãos. Apesar do medo, do medo que crescia, devido às formas que iam invadindo-a, Joana continuava. Dois dias antes do Ano Novo, o vestido estava pronto. De pé, cobrindo uma armação de arame, a viúva se postava no centro da sala de costura. A viúva sem pernas, braços e a cabeça.

Poucos minutos antes do Ano Novo, a viúva se olhava no espelho ogival do quarto. O vestido caía-lhe perfeitamente. A mulher apalpava a cintura. Ainda o corpo mantinha o antigo desenho. Os seios despontavam sob a fazenda branca. E o rosto? Como seria? Ninguém mais saberia dizer. Aquelas faces, vivas, sorridentes, só existiam agora para o espelho. A viúva se recortava diante do armário de roupas, das mesinhas de cabeceira, da cama de casal coberta com uma colcha de renda. A cama de casal! Calor tingiu-lhe as faces. Tirou o excesso de batom do lábio inferior com a ponta da unha. Para si mesma, nunca estivera tão jovem. O gato, as duas patas dianteiras salientes, parado na borda da cama. Os olhos e o guizo brilhavam como estrelas. Mas não escutava sua respiração. Como se houvesse parado de funcionar. Os relógios, também, há muito não funcionavam. Tic-tacs congelados. Na sala de estar, sobre a cômoda, uma moldura vazia, a tela totalmente branca, ladeada por dois jarros com água.
O que existia dentro da casa? Móveis, como em todas as casas, quadros, portas, janelas, cadeiras. Não se poderia dizer que houvesse algo a mais que isso. A casa de uma mulher, um tanto sóbria, de mulher de meia-idade. Alguns bordados, esculturas, porta-retratos. Só que parecia não haver mais desenho. As esculturas amorfas. Os porta-retratos guardavam entes invisíveis. Até os móveis, tudo se emaranhava, como novelos de teias-de-aranha, fios brancos, finos, engalfinhando-se, fios que chegavam até as grades. Dos tetos pendiam lustres de teias-de-aranha, em cujos casulos algo brilhava. Nos relógios, uma superfície de água mantinha os ponteiros soluçando; a madeira, o ferro, os parafusos encontravam-se virados ao avesso, como que retorcidos, em espiral; as portas não conseguiam dormir. Por mais cansada que estivesse a casa, não conseguia dormir. Refletido no espelho, um corpo, totalmente coberto por teias, tentava se libertar. A única coisa que se movia, que tentava gritar dentro da imobilidade. Podia-se ver o desenho da boca projetando-se na camada sedosa do tecido: um buraco no centro da espiral. Os braços alcançavam uma determinada altura, e voltavam ao mesmo ponto, ao mesmo eixo de sua inércia. Alguém brincava com a água da banheira, alguém que não era uma menina, algo que se aproximava de uma menina, uma menina ao avesso, vermelha. E um grito, um grito ecoou por todas as coisas, estourando os ovos congelados nas teias, rebentando os copos, estalando a madeira. A viúva sorriu, ajeitou uma mecha do cabelo, pegou o gato, aninhado num dos braços e desceu as escadas. Faltavam pouquíssimos minutos para o Ano Novo. Ela dirigiu-se à porta da sala. Nunca estivera tão feliz.
Ela o viu, ou, melhor, viu o que era possível, parado na entrada da casa. Onde estariam os olhos? Não dava para distingui-los, porque estavam em vários lugares, se deslocavam, levados por riscos, por pinceladas, deslocados, piscando tortos, ora azuis, verdes, negros, brilhando, refletindo o guizo e os olhos do gato, os olhos da viúva, seu corpo fragmentado nas pupilas. E o nariz? Só existia pele, algo como borracha, por sob a qual o nariz e a boca eram apenas protuberâncias, desenhos falsos do que pudesse se fazer humano. A boca tentava falar, mas a pele abafava o sentido. Algo, muito remotamente, como, talvez: Venha comigo! E os cabelos, seriam cobras de seda, ou línguas de teias-de-aranha? Caíam em grandes ramadas, iam até lá fora, pela rua, cobriam as grades, o carrossel abandonado, engrossavam as barbas dos anões de jardim, se empapavam da água do jarro segurado pelo anjinho de pedra, gotejavam dos animais de topiaria, escondiam os balanços, parecia neve nos galhos do pinheiro. A viúva sentiu a mão, apertando a sua. Uma mão quente, macia, viva! O cigarro saía da boca de borracha, e fumo se dispersava pelo ar.
Ninguém viu quando a viúva saiu de casa com o gato, e dirigiu-se como autômato para a casa vizinha. Por trás das cortinas cerradas, garrafas de champanhe espocavam. Famílias se abraçavam, casais se beijavam, beijavam-se as crianças, recebiam o Ano Novo como uma bebida sagrada. Até Joana, segurando um cálice de vinho, mesmo olhando para as cortinas cerradas, só prestava atenção à música que, ainda há pouco, botara para tocar. Uma musiquinha infantil. Ninguém viu quando o homem abriu a porta de casa, e a viúva, no seu vestido branco, com o gato, entrou. Ninguém mais reparou, a partir daí, que da casa, emanava um calor. Que se ousassem atravessar a rua, e espremessem o rosto entre as grades, veriam lá dentro os três, as três figuras de olhos brilhantes: a mulher, o marido, o filho.


Leonardo Vieira de Almeida é escritor e cursa o mestrado em Literatura Brasileira na UERJ. Autor do livro de contos Os que estão aí, Ibis Libris, 2002, e de contos publicados no suplemento literário Rascunho, do jornal do estado do Paraná, no jornal Panorama e no sites literários Paralelos e Bestiário. É também tradutor e mora no Rio de Janeiro.


* Este conto faz parte do próximo livro a ser publicado pelo autor, A caixa de ostras.
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