Por circunstâncias da vida, nasci e cresci dentro do território do Contestado. Nos meus tempos de criança, no entanto, não se tocava no assunto, nem mesmo nos colégios onde estudei. Só o saudoso Prof. Estevão Juk, destoante da média em virtude de sua independência, aludia vez ou outra à insurreição cabocla. Era uma espécie de tema tabu, escondendo talvez secreto pudor ou vergonha de lembrar episódios sangrentos provocados por “bandidos e fanáticos atrasados.” Mesmo nessas raras referências, no entanto, falava-se na “revolta dos jagunços” e não em Contestado, designação que só ouvi muitos anos mais tarde, o que me leva a crer que foi invenção dos historiadores ou militares e não nasceu da boca do povo. Por outro lado, havia uma demonização do movimento no inconsciente popular, generalizando o terror implantado por Adeodato, mais conhecido por Leodato, que imperou apenas na última fase. Em relação a essa figura, mesclavam-se sentimentos de admiração e temor. Seu nome “fazia criança dormir.” Confirmando o que observei na minha região, sabe-se hoje que a imprensa em geral deu reduzido espaço à guerra que se estendeu por quatro anos (1912/1916), fazendo uma cobertura precária.
Existe hoje grande interesse pelo Contestado e, em conseqüência, vem se formando extensa bibliografia sobre o assunto, tanto na história como na ficção e até na poesia. Soma-se a ela agora um novo e importante título: “Lideranças do Contestado”, de autoria do historiador e professor da UFSC Paulo Pinheiro Machado (Editora da UNICAMP – Campinas – 2004). Baseado em ampla e minuciosa pesquisa, incluindo incansáveis excursões aos locais e entrevistas com numerosas pessoas, o conteúdo da obra vai muito além do título, constituindo-se em autêntica história do movimento, desde o início até o fim, penetrando na análise de suas causas e circunstâncias que o rodearam. Creio que é um dos mais completos ensaios existentes, se não o mais completo de todos, além de refletir a isenção de um autor que não tem laços pessoais com a região. Tal como o leitor há de estar se indagando, eu também indaguei por que foi o livro publicado pela UNICAMP e não pelas editoras locais. Creio que o próprio livro contém a resposta: em várias passagens ele põe em dúvida a palavra de consagrados autores sobre o assunto, quando não desmente, de forma frontal e com o peso de argumentos irrespondíveis, algumas de suas afirmações. E isso acontece em diversas oportunidades.
A primeira observação que se impõe com a leitura diz respeito ao desinteresse e ao alheamento da Capital em face do que acontecia no Planalto. Só mais tarde, quando as hostilidades explodiram de forma incontrolável, foram tomadas as providências necessárias e o governo estadual se fez mais presente. E, como sempre, a política miúda intervinha e atrapalhava, contribuindo para a situação caótica que se implantou em grande área da região. Cansados do jugo dos padres e dos coronéis que tudo dominavam com mão de ferro, buscavam os caboclos, desde o início, maior liberdade de ação e a possibilidade de viverem a seu modo, criando um novo estilo de vida. “Seria a construção de algo realmente novo, onde não vigoraria o poder das antigas autoridades. (...) O sentimento de irmandade cimentava estas práticas comunitárias (...) do que um comia, tudo tinha que comer; do que um bebia, tudo tinha que beber; todos eram irmãos” (pp. 209/210). Esse sentimento de irmandade era algo real, palpável e forte no interior dos redutos que se formaram com as bandeiras compostas de crentes que para eles se transferiram com suas famílias, teres e haveres. Surgiu um comunismo primitivo que nada tinha de marxista ou doutrinário. O ambiente ainda impregnado das pregações dos dois monges João Maria reforçava a fé dos caboclos. Contrariando o que tantas vezes se afirmou, o movimento foi composto de caboclos pobres, inclusive aqueles considerados ricos eram, de fato, pobres, e quase não havia pessoas oriundas de outras regiões do país. O grosso dos revoltosos se constituía de gente da região, incluindo as lideranças. Eram os “crioulos”(1) ou “pelos duros”(2), que depois passaram a se dizer “pelados”, em contraposição aos “peludos”, - os inimigos -, porque passaram a raspar as cabeças. Mesmo os “arigós”(3) demitidos da ferrovia, depois de sua conclusão, e que aderiram ao movimento, eram oriundos da região.
Como em outros movimentos semelhantes – Canudos, Caldeirão, Pau de Colher – os revoltosos eram monarquistas. Acreditavam que a monarquia fôra instituída por Deus, sendo, portanto, mais justa e honesta, o que revela como esse regime penetrou fundo na alma popular que enxergava no imperador uma espécie de pai de todos. Imaginavam estabelecer nos redutos um regime monárquico, mas como o “rei”, - o monge José Maria, - havia falecido e estava ausente, formou-se uma curiosa monarquia sem rei. O rei, acreditavam eles, ressuscitaria e voltaria para combater os peludos à frente do exército encantado de São Sebastião. Esse culto a São Sebastião, ao contrário do que muitos pensam, nada tem com o “sebastianismo”, inspirado no rei português que morreu nas Cruzadas, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O santo venerado é o São Sebastião soldado do exército romano e guerreiro, que foi amarrado e vítima de flechadas, mas não morreu, sendo mais tarde morto a bastonadas e lançado na Cloaca Máxima, de onde foi resgatado por cristãos e sepultado nas Catacumbas. Sua memória é celebrada em 20 de janeiro e as imagens sacras o figuram sempre amarrado ao poste e crivado de setas. A crença no retorno, porém, parece indicar a existência de certa confusão entre as histórias do rei e do santo.(4) Os chamados “12 Pares de França”, objeto de tantos comentários, na verdade nunca existiram. Segundo o autor, os sertanejos se referiam apenas aos pares de França, sem fixar o número de doze e sem referir-se a Carlos Magno, mais um detalhe que teria sido criado pelos intérpretes ou por lendas. No caso, a gesta carolíngia teria sido deturpada ou interpretada de forma errônea.
A rígida disciplina imposta nos redutos acabou gerando autêntica ditadura dos chefes e qualquer desvio merecia enérgica punição. Ao tempo de Adeodato, o último chefe, a partir de 1914, essas punições foram numerosas e de grande violência. Muitas delas são relatadas pelo autor.
Como se sabe, dois foram (pelo menos) os monges de nome João Maria que palmilharam o Planalto em pregações e previsões apocalípticas. No imaginário popular, porém, ambos se unificam e confundem num só, como concluiu o pesquisador Nilson Thomé em minucioso estudo. O autor do livro aqui comentado estabelece nítida distinção entre um e outro e, mais tarde, com a figura do monge José Maria, esclarecendo muitas confusões. O primeiro João Maria seria italiano, surgiu em Sorocaba em 1844 e desapareceu de circulação por volta de 1870. Seu nome era João Maria Agostini ou D’Agostini, e ficou conhecido como João Maria de Agostinho. Além de Sorocaba, perambulou pelo Rio Grande do Sul e pelo Paraná, onde existe uma gruta na qual teria morado, nas redondezas da cidade da Lapa, e, certamente, pelo nosso Planalto. Expulso do Rio Grande, veio para Santa Catarina, onde permaneceu “por alguns meses de 1849, vivendo voluntariamente isolado na Ilha do Arvoredo, a quinze quilômetros do litoral de Porto Belo, e depois seguiu para o Rio de Janeiro e retornou a Sorocaba” (p. 229). A permanência do monge nessa ilha é evocada num conto de José Boiteux, publicado no livro “Águas Passadas” (1932). Pregava o uso de águas curativas, a abstenção de carne aos sábados, guardar uma vida de respeito e penitência e levantar cruzes em locais indicados, em número de 14, conforme as estações da via sacra. Como conclui o autor,“tinha uma relação bastante próxima com a estrutura oficial da Igreja católica” (p. 164). Oswaldo Rodrigues Cabral foi o mais minucioso investigador dessa figura itinerante, sempre coberta pelo gorro de pele de jaguatirica e apoiado em seu cajado.
O segundo João Maria seria sírio de nascimento e tinha sotaque acastelhanado, tendo vindo de Buenos Aires, onde, com certeza, viveu por algum tempo. Chamava-se Anastas Marcaf e peregrinou longamente pelo Planalto entre 1890 e 1908 ou 1910. Ficou conhecido como João Maria de Jesus e dizia que vivia peregrinando para cumprir uma penitência. Entre sua entrada em cena e o desaparecimento do primeiro mediou um tempo de pelo menos dez anos. Tinha certa semelhança física com o primeiro, também falava em águas santas e pregava a necessidade de erigir cruzes. Evitava aglomerações de povo e não permanecia muito tempo no mesmo lugar – “anoitecia e não amanhecia”, diziam. Era monarquista, tinha simpatia pelos federalistas e “teve uma relação hostil com o clero católico: fazia batizados; propalava um discurso apocalíptico com grande receptividade no Planalto”(p. 168). Tinha fama de milagroso, realizando muitas curas, e punha extrema atenção nos sinais da natureza. “Quem não sabe ler a natureza é analfabeto de Deus” – afirmava. Esteve nos campos de Palmas, no vale do rio do Peixe, no interior e nas vilas de Campos Novos, Curitibanos, Rio Negro, Canoinhas e Porto União. Nas cercanias desta cidade, no pico do Morro da Cruz, existia um cruzeiro que teria sido erigido por ele. Dizia-se que quando essa cruz caísse haveria uma enchente catastrófica no rio Iguaçu. Segundo os padres franciscanos, foi ele o grande responsável pelo fanatismo religioso na região, mesmo tendo desaparecido muito antes dos embates guerreiros. A crença popular afirma que João Maria se retirou para o alto do Morro do Taió, onde vive até hoje, “encantado”, com quase duzentos anos (pp. 168/169). Foi um líder nato, com intenso poder de convencimento, e sua atitude independente em relação ao clero fechava com o sentimento dos insurgentes que se consideravam vítimas de padres e coronéis.
Decorridos de dois a quatro anos, aparece no cenário o monge José Maria, aquele que alguns autores consideram o “monge de guerra”, fato que o autor põe em dúvida ao mostrar que ele tudo fez para não guerrear e só iniciou as hostilidades para não recuar diante de um desafio peremptório. Por volta de 1912, vivia no povoado do Espinilho, no município de Campos Novos, onde se fizera “erveiro” competente, receitando mezinhas e garrafadas, realizando suas curas, além de rezas e benzimentos. Numa época de escassos médicos e farmacêuticos, ele supria a ausência desses profissionais da saúde, dando assistência aos doentes que o procuravam. Foi ali que uma grada comitiva de revoltosos foi buscá-lo para comandar o movimento e, assim, iniciar sua caminhada para ingressar na História. Homem de passado obscuro, chamava-se Miguel Lucena de Boaventura e proclamava ser irmão de João Maria. Morreu em 22 de dezembro de 1912, no combate do Irani, fato que marcou o início real da guerra. Nessa contenda também morreu o coronel João Gualberto, comandante das forças legais, e que alardeara que em poucos dias faria os fanáticos desfilarem, amarrados com cordas, pela rua XV de Novembro, em Curitiba. A morte do monge espalhou um rastro de ódio nos corações caboclos do Planalto, deu margem a inúmeras versões e lendas, e passou a alimentar a esperança de sua ressurreição, voltando à frente do exército encantado de São Sebastião para impor a suprema derrota aos peludos. Em sonhos ou visões, José Maria conversava com as “virgens santas”, os chefes e outras figuras dos redutos, transmitindo ordens e estratégias guerreiras. Ficou “encantado” e passou a ser visto em toda parte.
Daí em diante a guerra se estende até 1916 e os insurgentes chegam a dominar imenso território. Conhecedores do terreno e donos de uma coragem sobre-humana, praticavam uma guerra de guerrilhas que desnorteava as forças legais, atacando e recuando, usando da surpresa e da audácia. Invadiram a vila de Curitibanos, reduto do coronel Albuquerque, queimaram os povoados de Calmon, uma das sedes da Cia. Lumber, São João de Cima e São João dos Pobres, hoje Matos Costa. Em 5 e 6 de setembro de 1914 foram incendiados Calmon, sob o comando de Chiquinho Alonso, e São João dos Pobres, sob o comando de Venuto Baiano. A violência dos ataques não teve limites. Todos os homens adultos foram mortos, as instalações ferroviárias incendiadas. Em Calmon, a serraria da Lumber, símbolo do poder estrangeiro, foi reduzida a cinzas, e as labaredas, segundo testemunhas, iluminaram o sertão durante noites seguidas. O capitão Matos Costa foi morto no dia 6, num equívoco lamentável porque foi uma pacifista e entendia os reclamos dos caboclos (pp. 263/264).
São algumas observações sobre um livro que aborda tema dos mais complexos de nossa história, ao qual trouxe grande contribuição, embora muito ainda haja a desvendar, como adverte o próprio autor. É uma obra que daqui em diante será indispensável em qualquer pesquisa sobre o Contestado, cuja ausência a inquinará de grave falha. Anoto, por fim, a surpresa que me causaram os muitos erros de redação existentes no texto, em especial no mau uso da crase, fato que recomenda rigorosa revisão na hipótese de nova edição. No conjunto, é obra isenta, minuciosa e bem fundamentada.
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Notas:
(1) Crioulo, no Planalto, é a pessoa originária do local. Nada tem a ver com descendência afro e nenhum sentido pejorativo.
(2) Pelo duro é o caboclo puro, sem mistura de outras raças.
(3) Arigós eram os trabalhadores braçais da ferrovia. A maioria foi demitida com o término da construção da estrada de ferro.
(4) “Enciclopédia Brasileira Globo”, P. Alegre, Editora Globo, 1971, 12a. ed., Tomo X.