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domingo, 9 de março de 2008

Os corvos de alumínio de Francisco Carvalho (Henrique Marques Samyn)


(Poeta Francisco Carvalho)

A precariedade da distribuição de livros no Brasil é um problema que, embora muito conhecido e denunciado, aparentemente permanecerá como tal por longo tempo. A internet, é verdade, representou uma solução para uma parte mínima desse problema: ao menos as grandes livrarias tornaram-se acessíveis para moradores de regiões nas quais elas não se encontram fisicamente presentes, o que assegura que, pelo menos, os lançamentos das maiores editoras estejam disponíveis para boa parte dos leitores brasileiros. Entretanto, a lógica que rege as grandes editoras é mais econômica do que propriamente literária, algo que atinge fatalmente a poesia, gênero literário cujo parco potencial lucrativo é conhecido – de modo que, se inúmeros bons autores estão fora das principais cadeias de distribuição literária, é possível afirmar categoricamente que, em sua maioria, são poetas. Quem perde com isso, é claro, é a literatura brasileira, que sofre com o esquecimento de obras de qualidade incontestável.Toda essa discussão não pode deixar de ser evocada quando se fala sobre um poeta como Francisco Carvalho. Aos oitenta anos, publicou mais de vinte obras, todas inencontráveis nos catálogos das grandes livrarias, a despeito dos dois prêmios de expressão nacional que constam de seu currículo – prêmios Nestlé (1982) e Biblioteca Nacional (1997). Fiel à sua certeza de que prêmios literários são apenas estímulos eventuais, Francisco Carvalho continua escrevendo e publicando uma obra em que transparece um apurado domínio técnico, capaz de transitar pelas mais diversas formas poéticas com resultados, não raro, assombrosos. Leia-se, por exemplo, este:

SONETO DA CONTEMPLAÇÃO

Na vida andei por solitária estrada,
meus caminhos não foram de veludo.
Os deuses nunca me ensinaram tudo
nem que do amor nunca se sabe nada.

Em tua ausência pus os meus cuidados,
todas as horas, todos os minutos.
O mais alto dos galhos onde os frutos
dificilmente podem ser tocados.

Onde pus esperança e pus empenho,
meu sonho ardeu como se ardesse um lenho
entre as chamas do cedro perfumado.

Nada espero do augúrio do adivinho.
Não beberei da espuma do teu vinho
nem serei por teus olhos contemplado.

Esse poema faz parte de Corvos de alumínio (Fortaleza: LCR, 2007), volume que reúne a poesia inédita de Francisco Carvalho, em que se pode atestar a riqueza de seu estro. Trata-se, afinal, de um poeta capaz de tematizar as mais díspares dimensões da experiência humana por meio de versos que vão do temário mais concreto, político e telúrico, ao mais abstrato e existencial. Seu sentimento lírico caracteriza-se pela cristalina lucidez com que retrata a condição humana, precária e efêmera, mas, ainda assim, plena de dignidade; é uma poesia que, em outras palavras, trata do Homem em seu mais universal sentido, de suas obras e de sua perene luta pela sobrevivência material e espiritual. Há momentos em que seu lirismo é francamente político:

MENINOS

Os meninos ficaram sem arroz
(os meninos esmagados pelos mísseis).
Os meninos chamaram pelas mães
e lhes pedem brinquedos e carícias.

Os meninos fugiram das granadas
dos campos semeados de explosivos.
Desenterraram bombas do tamanho
dos ovos dos maiores crocodilos.

Os meninos chegaram muito tarde
os meninos tiveram muita sede
os meninos sentiram muito frio.

Os meninos são filhos de leopardo
abrem fendas e escrevem na parede
odes de insônia para um deus sombrio.

Outras vezes, o poeta faz de seus versos diálogos com autores basilares da literatura universal: Camões, Cervantes, Borges. Não obstante, sob essa miríade temática, Francisco Carvalho resguarda seu compromisso essencial com o poético, que parece, na verdade, constituir sua própria forma de ler a história e estar no mundo. Se maior é a poesia que emerge da vida, cabe reiterar que, a despeito das contingências geográficas e mercadológicas, Francisco Carvalho está entre os nossos poetas maiores.
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sexta-feira, 7 de março de 2008

A ventura de um morto (Raymundo Netto)


Vinha batendo às paredes, puxando o nó da gravata com agonia. A boca seca deixava transparecer, num canto, uma espécie de baba branca. Suava demais a procurar algo nos bolsos. Havia largado a pasta a poucos metros. Tombou, ao fim, no chão.
As pessoas em torno estranhavam e apressaram os passos. Uns moleques aproximaram metendo as mãos nos bolsos de seu paletó, na camisa, na calça. Outro deles, já ia longe correndo com a pasta enfiada debaixo da camisa.
O movimento naquela calçada era grande, mas ninguém podia parar a não ser quem tinha seus interesses...
Dois rapazes beiraram o homem caído. Enquanto um chutava-lhe a costela com a ponta do sapato, outro lhe batia na face com um jornal. Ele não sinalizava coisa alguma, nem gemido nem ofensa. Nada. Eles deram com os ombros, tiraram-lhe os sapatos, os óculos escuros, a calça e o paletó. Foram.
As pessoas passavam por cima, tão atrasadas, não o percebiam.
O gari que varria a calçada reclamou do que rebolavam por ali. Com a vassoura, empurrou o homem até deixá-lo na coxia. Outro gari, que limpava a coxia, protestou de imediato “Aqui não, violão!” e empurrou o corpanzil, de bruços, para o meio da rua.
Os carros, que também não podiam parar; passavam-lhe por cima, macerando-o contra a pista. Trânsito caótico. Compromissos demais.
Alguém parou, desceu do carro, olhou indignado para o prostrado:
— E a prefeitura não faz nada? A gente paga impostos para quê? Poderia estragar o meu carro, ora! — voltou e ligou, do celular, para a Ouvidoria.
Uma senhora passando na calçada o viu estirado, empastado, sujo e, aproveitando o sinal, o arrastou até uma viela próxima. Chegando lá, examinou à sua volta, não viu ninguém e arrancou um olho, correndo com um sorriso maroto nos lábios: uma córnea! Com pouco mais, alguém viria buscar a outra.
Finalmente, a polícia chegou. Avistou o corpo seminu na rua e o recolheu: atentado ao pudor!
Na cadeia, os outros presos o viam com desconfiança, ofereciam-lhe bagulhos, contavam piadas, mas ele permanecia indiferente. Perceberam que ele não era um deles, se amotinaram e usaram-no como refém. A cena foi ao ar para todo o país: um jovem apontava-lhe o cano do revólver à testa, órbitas negras arregaladas, as veias do pescoço intumescidas e estranguladas pelo braço potente, a ameaça de jogá-lo pela janela. A equipe de socorro pedia-lhe calma, calmacalmacalma. O suor frio escorria na face exangue. Do ouvido, escorria outra coisa...
Logo a polícia contornou a situação. Rebelião desfeita. Os bandidos, porém, decidiram vingar-se do traidor. Espancaram-no, quebraram-lhe os dentes e o enforcaram com a própria cueca. No outro dia, a manchete: Refém de rebelião suicida-se!
A comoção foi geral. Algumas entidades se juntaram em vigília àquele homem — velas e faixas às portas da cadeia pública —, mais uma vítima da opressão e da violência. Choraram, rezaram por ele, abraçaram o prédio em nome da PAZ.
Um fato causou, então, maravilhamento: um aleijado, presente na multidão, soltou as muletas e se pôs a caminhar. As pessoas se horrorizaram: um milagre! O homem era santo, minha gente, era santo!
Os populares invadiram a cadeia e, quando trouxeram o corpo à rua, feito um cristo crucificado, a multidão o disputou. Todos queriam uma lembrança do corpo santo. O olhar vazio, a mandíbula deslocada para esquerda, a venta para a direita e, mesmo assim, alguém lhe decepou o braço, outro rasgou-lhe a perna, torceu-lhe os pés... Humildes, os malogrados se satisfaziam em banhar-se do sangue alaranjado vertido dos cotos dilacerados.
Diante do clamor público, os órgãos do governo decidiram enterrá-lo com honras de herói.
Cerimônia concorrida sob olhares marejados. Sobre o caixão, em momento solene, a bandeira, a chave da cidade, a comenda maior e o título de cidadão.
O esquife solitário parecia repousar à cova. As coroas de flores amofinavam a despedida. A terra, porém, apropriou-se dele, se arraigou e passou a extrair-lhe os tecidos frágeis, cada célula, cada fleuma arterial, não lhe poupando, desta vez, nem os cabelos, numa guerra silenciosa que se passa despercebida debaixo da grama verde que viceja. Diante da quietude, um estertor ralo, quase como um pensamento, emergiu:— Meus remédios, onde estarão os meus remédios?
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