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quarta-feira, 2 de abril de 2008

Eça de Queirós redescoberto (Adelto Gonçalves*)




I
Por que ler Eça de Queirós (1844-1900), mais de um século depois de sua morte? Essa pergunta continua a ser feita hoje em dia nas escolas de ensino fundamental e médio por adeptos de um método pedagógico que se propõe a estimular os jovens à leitura. E não só Eça, mas boa parte dos autores clássicos portugueses e brasileiros. Esse método, que, ao que parece, faz muito sucesso, defende que se dêem livros de fácil leitura às crianças e aos adolescentes para que se habituem a ter um exemplar na mão por alguns minutos ou horas.
O argumento é o mais risível possível: imaginam que, se a criança acabar por pensar que a literatura é algo divertido, pode se afeiçoar ao livro, embora o que as pesquisas têm constatado é que, hoje, os jovens passam muito mais tempo diante da Internet do que de um livro. É possível que sejam mais bem informados do que éramos há 40 ou 50 anos, mas, com certeza, são bem menos capazes de escrever um texto com coerência, objetividade e clareza do que éramos naquele tempo. Também é preciso avaliar a qualidade da informação que recebem pelo meio eletrônico.
É provável que este articulista venha a ser considerado um dinossauro da imprensa ou das letras, mas nem por isso vai deixar de escrever aqui que, em vez de leitura fácil, o que se deveria fazer é ensinar aos jovens a ler livros difíceis. Porque, afinal, os fáceis lerão sem que ninguém os estimule. E, se não os lerem, também não vão perder nada. Em outras palavras: é preciso ensiná-los a se interessar pela dificuldade, não pela facilidade. Portanto, em vez da leitura tosca de um desses esotéricos da vida, que leiam Eça de Queirós ou Machado de Assis (1839-1908). Ainda que por obrigação.
Com certeza, hão de argumentar que ler os clássicos pode ser tarefa muito aborrecida, pois, às vezes, é preciso ter um pesado dicionário à mão. Mas é aqui que entra em ação o bom professor. Se não for para explicar os clássicos ou estimular a leitura, enfim, ensinar, para que servirá o professor?
Foi para facilitar o trabalho do bom professor – porque, certamente, o mau professor o que menos faz é ensinar, embora quase sempre se esconda atrás de uma personalidade extrovertida e espalhafatosa – que Paulo Franchetti, professor titular do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Campinas (Unicamp), e Leila Guenther, graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), prepararam uma nova edição de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, que a Ateliê Editorial acaba de publicar.
Na apresentação que escreveu para esta obra, além de apresentar a história da produção e recepção da obra, Franchetti faz uma análise minuciosa e inovadora do romance. Já Leila Guenther procedeu a um extenso trabalho de anotação, relacionando preciosas indicações sobre os muitos instrumentos e inventos citados pelas personagens e incorporados ao dia-a-dia do nouveau reach Jacinto ao final do século XIX, bem como esclarecendo alguns vocábulos já em desuso no português falado hoje no Brasil, além de fornecer indicações sobre autores, pintores e personagens de livros que aparecem ao longo do romance.
II
Quando escreveu A Cidade e as Serras, Eça de Queirós já estava no fim de sua breve vida e, praticamente, consagrado como romancista, reconhecido e louvado por seus pares de Portugal e do Brasil, ainda que vivesse distante numa pequena casa dos Champs-Élysées em Paris, a uma época em que a Torre Eiffel já dominava amplamente o cenário da cidade-luz. Cuidava da revisão das provas tipográficas, mas não teve tempo de executar um trabalho que não se limitava a apurar frases ou eliminar hipotéticos erros de linguagem, mas sim fazer importantes ajustes, o que sempre o levava a modificar o manuscrito original. Àquela época, só diante do texto impresso é que o autor tinha uma visão mais completa de sua obra, o que o levava sempre a esses ajustes e, não raro, a acrescentar até capítulos inteiros.
No caso de A Cidade e as Serras, Eça de Queirós havia deixado o livro pronto até o capítulo IX. Com a morte repentina do autor, quem fez uma revisão radical na obra, a pedido da viúva, foi seu amigo Ramalho Ortigão (1836-1915), com quem colaborara em As Farpas, opúsculos de capa alaranjada que começaram a aparecer nas bancas e quiosques de Lisboa a 17 de junho de 1871.
Também o editor meteu-se a fazer cortes e adaptações, até que decidiu mandar de vez o livro à gráfica e colocá-lo, finalmente, nas livrarias, o que se deu em abril de 1901. Foi essa a versão que os contemporâneos de Eça conheceram, até que, em 1960, Helena Cidade Moura (1924), trabalhando com um autógrafo do autor, eliminou as contribuições de Ramalho Ortigão e as arbitrariedades cometidas por um editor nada ético.
Como observa Paulo Franchetti na apresentação, o trabalho de restauração preservaria até algumas inconsistências do manuscrito, como a troca de nomes de personagens e a falta de algumas palavras, esquecidas pelo autor no momento de passar para o papel o que lhe aflorava à mente.
Para Franchetti, que se deu ao trabalho de comparar as duas versões, a intervenção de Ramalho Ortigão também se mostrou desastrosa na medida em que tornou algumas frases menos precisas e o estilo menos coerente com a parte significativa do romance que havia sido revista pelo autor.
III
Portanto, esta não é a versão corrente do romance que ainda encontramos em livrarias. Nem é tampouco, claro, o livro que poderia ter sido se Eça tivesse tido tempo de revê-lo até o final. Mas é a versão que mais se aproxima dessa que teria sido a ideal.
Para quem ainda não o leu em nenhuma das duas versões, é preciso que se diga que o romance conta a história de Jacinto, jovem muito rico, de pais portugueses, que, nascido e vivendo em Paris, rodeia-se de tudo o que a civilização tinha de mais recente e promissor em termos de tecnologia e conhecimento. Enfim, um bon vivant, que não perdia uma festa de grã-finos e acompanhava durante o dia os seus muitos negócios espalhados pelo mundo.
Até que, um dia, entediado com tanto conforto, decide-se mudar para a zona rural, em busca de suas raízes, nas serras portuguesas. Surpreendido por um incidente de viagem, vê-se de repente sem o conforto e o aparato tecnológico a que se acostumara no berço da civilização. O resultado disso é um choque na vida de Jacinto: obrigado a colocar a mão na massa, como se diria hoje, acaba por descobrir a energia que tinha dentro de si. E vira Jacinto de Tormes.
Em outras palavras: o que Eça quis mostrar neste romance foi a supremacia da vida no campo em relação à vida na zona urbana, ainda que na principal cidade do mundo à época. Teria Eça, portanto, escrito um romance de tese que, segundo Massaud Moisés, constitui “uma narrativa que veicula uma doutrina, geralmente, explícita, tomada de empréstimo a uma forma de conhecimento não-estético, que o escritor encampa e luta por divulgar ou corporificar por meio de uma fabulação que lhe seja compatível” (São Paulo, Dicionário de Termos Literários, 14ª ed., Cultrix, 2004, pp. 405-406).
De certa maneira, em A Cidade e as Serras, Eça retoma, com a ambigüidade e a ironia que marcam sua obra, um tema recorrente em seus romances: a oposição entre metrópole e província, entre tradição e modernidade, entre o tédio da vida moderna (ou do “excesso de civilização”) e as “vantagens” da vida simples do campo, o que, aliás, já era uma idéia comum entre os antigos (locus amoenus).
Em sua apresentação, o professor Franchetti, porém, expõe vários argumentos para rebater a idéia de que A Cidade e as Serras seja um romance de tese, embora a história que seu narrador (Zé Fernandes) apresenta seja uma exposição e comprovação de uma tese. Ou melhor: a tese exposta no romance não é defendida nem pelo narrador nem pelo autor.
Portanto, diz o crítico, o que dá graça ao livro é exatamente a dificuldade do narrador em sustentar a sua tese, “já que ele mesmo não se mostra, na maior parte do livro, convencido de que o percurso de Jacinto seja de fato um exemplo digno de imitação”. Aliás, como observa, Zé Fernandes até a sua última viagem a Paris não parece convencido de que o amigo teria feito a melhor opção, ao isolar-se no mundo rural.
Mais: Zé Fernandes, diz Franchetti, não é apenas uma testemunha da história e da mudança de hábitos de Jacinto, mas também uma personagem que se transforma sob o efeito da evolução que narra e acompanha de perto.
IV
Visto assim, este romance adquire novas nuances para quem já o leu em outros tempos e indica outros caminhos a quem vai percorrê-lo pela primeira vez. Até porque, como o leitor já deve ter percebido por experiência própria, cada obra tem um impacto sobre nós em função da época em que a lemos. Quantos livros que nos encantaram na juventude que, hoje, relidos, já não parecem carregar o mesmo fascínio?
Lembra Franchetti que, durante a ditadura salazarista, A Cidade e as Serras foi elevado à condição de obra-prima de Eça, com certeza porque fazia loas à vida saudável no campo, enquanto o Eça incômodo, socialista e revolucionário de As Farpas era deixado prudentemente de lado. Hoje, sabemos que há livros em que o autor se saiu melhor. Mas, de qualquer modo, vale a pena reler este romance que, entre outras coisas, induz o leitor a imaginar como seria a vida de Jacinto na casa de número 202 da Avenida Champs-Élysées neste começo de século XXI, cercado por tudo o que a tecnologia poder-lhe-ia oferecer.

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A CIDADE E AS SERRAS, de Eça de Queirós, com apresentação de Paulo Franchetti, notas de Leila Guenther e ilustrações de Hélio Vinci. Cotia-SP; Ateliê Editorial, 334 págs., 2007, R$ 27,00. Site: www.atelie.com.br E-mail: atelie@atelie.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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terça-feira, 1 de abril de 2008

O boi santo (Nilto Maciel)




1.ª PARTE

JOSÉ (falando a outros romeiros):
Meus amigos, vejam só
que belo novilho vem
se aproximando de nós,
com jeito de boi mansinho.

Deve ser propriedade
do Coronel Costa Lobo,
se não vier do curral
do padre velho do Crato.

Reparem bem nos seus chifres,
como se fossem adornos
em sua cabeça postos
por mãos de mulher bonita.

Seu couro parece feito
de pano muito bordado,
com paciência de mãe,
esmero de bordadeira.

Meus amigos, vejam só
como ele é diferente
de quantos se vêem cá,
nas terras de minha gente.

É manso, de paz, ordeiro,
como boi de manjedoura,
e até parece um cordeiro
que comesse em nossas mãos.

(O boi aproxima-se mais dos romeiros.)

Que queres aqui, garrote,
a rondar os nossos ranchos?
Por que te chegas a nós,
comes de nossas migalhas?

Por acaso somos bois,
a ruminar como tu?
Por acaso és humano
e foges da solidão?

No lombo não trazes marca,
não sabemos de quem és.
Ninguém te reclama o couro,
nem o berro, bem a baba.

Terás nascido de um touro
e de uma vaca perdidos,
desses que andam ao léu,
cujo dono nunca os vê?

Ou teu dono é doutras terras,
de reinos desconhecidos
e não sabe que estás
no país do Juazeiro?

Este boi é diferente
de todos quantos já vimos,
não quer comida bovina,
de bicho de quatro pés.

Só come batata doce,
jerimum e macaxeira,
tudo cozido e salgado,
como se fosse cristão.

Terá sempre ele comido
alimento de cozinha?
Por acaso desconhece
o capim dos seus iguais?

Este boi é diferente
de todos quantos já vimos,
pois não tem medo dos homens,
antes nos tem amizade.

ROMEIROS (em coro):
Nosso Senhor Jesus Cristo,
afastai deste recinto
este boi aparecido
por acaso e maldição.

Cheia de graça Maria,
protegei o nosso povo
deste garrote sem dono
que come do nosso pão.

JOSÉ:
Não adianta rezar,
que castigo Deus dará;
vejam como se comporta
o danado do novilho.

Mal começamos a reza,
nem bem as mãos levantamos,
ele mesmo ajoelhou
aos pés de Nosso Senhor.

ROMEIROS:
Te esconjuro, boi perdido,
de Satanás enviado,
vai embora para longe,
para o inferno regressa.

Afasta-te deste chão
de sofrimento e milagre,
deixa as terras do Padrinho,
vai em busca do teu Cão.

JOSÉ:
Calem todos suas bocas,
acabem com os esconjuros,
este boi não tem maldade
nem nos chifres, nem nas patas.

Já seja ele acredito
do Divino um enviado,
pra dizer que até os bichos
no Padre Ciço têm fé.

PADRE CÍCERO (chegando):
Que se passa aqui, romeiros,
que tanta zoada fazem?
Mais parece feira livre,
onde todo mundo grita.

Quem mais vendeu e ganhou,
quem mais comprou e perdeu?
Quem vendeu este boizinho,
quem ganhou este garrote?

JOSÉ:
Meu Padrinho, meu Padrinho,
“eu não sei mais o que faça!
Quero a vossa proteção
com sua divina graça!”

Trago aqui este garrote,
sem marca, sem dono certo,
que talvez queira falar
em nome do Criador.

Peço perdão se blasfemo,
se digo alguma heresia:
ocorre que esta pessoa
parece vinda do céu.

Pois, sendo boi, se alimenta
da mesma comida nossa
e rezou ainda há pouco
junto com vossos devotos.

PADRE CÍCERO:
Meu bom beato Lourenço,
este aqui é um boi manso,
ainda sem nome dado,
pertencente ao meu rebanho.

Cuide dele como cuida
das almas dos sertanejos,
não o deixe escapulir
das terras de nosso reino.
(Retira-se)

BEATO LOURENÇO:
Este boi abençoado
por nosso Padrinho Ciço
eu não sei se faz milagre,
que é tarefa só de santo.

Meus irmãos, eu vos garanto
que este boi é diferente
de boi de pasto e repasto,
daquele de matadouro.

MANUEL:
Eu lhe faço, meu boizinho,
um pedido nunca feito:
interceda junto ao Padre
para graça eu alcançar.

Se você me atender,
eu prometo e até juro
dar-lhe um feixe de capim
do melhor que aqui houver.

BEATO LOURENÇO:
Preciso logo levar
o bichinho pro curral,
um lugar especial,
distante dos outros bois.

Vosmicês fiquem rezando
e fazendo penitências,
que o pecado anda solto
pelo mundo de meu Deus.
(Retira-se, conduzindo o boi. No meio do caminho, encontram Padre Cícero.)

BOI:
Meu protetor e meu santo,
venho aqui interceder
por um pobre penitente
precisado de favores.

O que deseja o coitado
é coisa de pouca monta
e nem milagre precisa
ser feito agora ou depois.

PADRE CÍCERO:
Eu já lhe disse, beato,
que este boi é um animal,
muito embora bem mais manso
do que muito ser humano.

Cuide dele como cuida
do rebanho falador.
Dê-lhe pasto, sombra e água
para a ceia do Senhor.
(Lourenço conduz o boi ao curral.)

MANUEL:
Muito obrigado, garrote,
pela graça que obtive,
eis seu feixe de capim,
conforme lhe prometi.

Pode comer à vontade,
matar a fome que exista
em sua barriga santa,
sem qualquer constrangimento.

Não aceita o pagamento?
Vire esse olhar para longe,
pare de tanto mugir,
como se me acusasse.

JOSÉ:
Cabra de peia, safado,
se o boi não quer teu capim
é porque sabe decerto
do roubo que praticaste.

Agora pede perdão
do pecado cometido,
ajoelha-te aos pés
do garrote justiceiro.

MANUEL:
Eu me ajoelho a teus pés,
teus pés de santo bezerro,
para pedir teu perdão
por roubo que cometi.

BEATO LOURENÇO:
Agora pega o chicote
e açoita teu corpo sujo,
derrama teu sangue imundo,
paga com dor teu pecado.

JOSÉ:
Milagroso e santo boi,
mostre-me cá seu pescoço:
com uma guirlanda de flores
queremos ornamentá-lo.

E nos seus chifres pequenos,
flores dos nossos sertões,
fitas as mais coloridas,
mil beijos dos penitentes.

A mim me dai o amor
da cabocla Bastiana,
um jumento ensinado
e terra para plantar.

PRIMEIRO ROMEIRO:
Quero uma cama de pau,
forrada de algodão,
e as noites todas do mundo,
repletas de quatro pernas.

SEGUNDO ROMEIRO:
Como não tenho coragem
de pedir ao Padre Ciço
a cabra que nos dá leite,
socorro-me do senhor.

TERCEIRO ROMEIRO:
Dou minha filha Vicença
a vosmicê, se a quiser,
caso a graça alcance
de ter a mulher de Pedro.

2.ª PARTE

LOURENÇO (com outros beatos, à certa distância do boi.)
Meus irmãos, me escutem cá
o que tenho pra dizer:
uma semana não faz
que o Boi Santo apareceu,

e centenas de milagres
por aqui se deram já.
E eu não sei o que fazer
diante das novidades.

Muita gente me pediu
um pouquinho da urina
do nosso garrote santo,
para evitar a cegueira.

Outra gente me rogou
uma raspinha do casco
do novilho milagroso,
pra se livrar de quebranto.

E eu não sei onde arranjar
tanto mijo e tanto chifre,
tanto casco e tanto boi,
pra tanta meizinha dar.

PRIMEIRO BEATO:
É preciso controlar
a ganância desta gente,
pois nem todos são doentes:
tem mais cego do que olho.

SEGUNDO BEATO:
É preciso vigiar
o sossego do garrote
e evitar que todo mundo
retire um pedaço dele.

TERCEIRO BEATO:
Pela minha sugestão,
nós devemos recolher
tudo o que dele vier,
seja mijo, seja bosta.

E depois distribuir,
conforme as necessidades
dos doentes, aleijados,
e também conforme a fé.

(Os quatro aproximam-se do boi e dos romeiros.)

PADRE CÍCERO (chegando, às escondidas, e falando para si mesmo):
Esse boi que acolhi
já não quer mais macaxeira,
agora só come papa,
bolo de milho e mingau.

Só quer comida salgada,
como se fosse cristão
e soubesse ser o sal
a marca de nossa crença.

E os romeiros nem sequer
vêm beijar a minha mão;
só me saúdam de longe,
sedentos de ver o boi.

Correm todos para o pasto,
do animal adoradores.
Comida farta lhe dão,
pagamento de promessas.

Da sapiranga se curam,
do tracoma e outros males
com o mijo do danado
– água benta e milagrosa.

Não se vê mais com quebranto,
bouba ou espinhela ninguém
– salva-os pedaços dos chifres
e dos cascos desse boi.

(Retira-se.)

PRIMEIRO ROMEIRO:
Não se aflija, meu garrote,
que seu mijo não tem fim,
nem seus chifres vão morrer,
nem seus cascos se acabar.

SEGUNDO ROMEIRO:
Por mais cegos que tenhamos,
por mais fracos que aqui venham,
nem um dia sem milagres
o senhor há de passar.

JOSÉ:
Este boi que aqui chegou
vem fugido do Sertão,
espantado pelo índio,
qual se fora assombração.

Desgarrado da boiada,
se perdeu na caatinga,
quebrou a peia que o tinha
amarrado ao capelão.

Veio ter aos pés do povo
que acredita em salvação,
mas, não sendo São Garrote,
faz de conta que é Boi Santo.

ROMEIROS (ajoelhados diante do boi, cantam, em coro):
Divino e sagrado boi,
nós te rogamos, contritos,
um milagre no Sertão:
água, comida e sossego.

Em troca te oferecemos
nossas rezas mais compridas,
nossa fé mais arraigada,
todas nossas penitências.

Santo, santo, santo boi,
irmão de Cristo Jesus,
do Divino Esprito Santo,
do Padre Ciço Romão.

Tu és a Quinta pessoa
da Santíssima Trindade,
filho bendito de Deus,
Boi da Terra, Boi do Céu.
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