Translate

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Breve Crônica da Brevíssima... (Anderson Braga Horta)

Breve Crônica da Brevíssima Estada do Eoreano Ozévop na Capital do Reino do Zirb-Al (Conforme Relato dele Mesmo Adaptado do Original Eóreo por Árot Gáharb e Traduzido do Zirbalês por Anderson Braga Horta)






* Manuscrito encontrado, com dicionários, cartas celestes e outros livros, junto aos destroços de um disco-voador, nalgum ponto do cerrado, entre Luziânia e o Distrito Federal. Seu inestimável valor reside em ser o único manuscrito, em meio a razoável abundância de textos impressos; não, por certo, nas qualidades de estilo, inexistentes; nem nas informações que veicula, óbvias aqui, evidentemente fantasiosas acolá. Os caracteres zirbaleses foram decifrados com um tanto de sorte e outro de inspiração, do que, a par de notícias daquela terra e seu sistema solar, dará conta comunicação em preparo. (N. do T.)


Era a primeira vez que Ozévop visitava Ai-Zirb-Al, a jovem e bela capital do Reino do Zirb-Al, e sua pequenina alma provinciana se estarrecia e se amedrontava ante as maravilhosíssimas conquistas do Progresso. Ozévop nascera e vivia em Aul, no interior do vizinho Reino de Eórea, e por nada deste mundo abandonaria, um minuto que fosse, a pureza natural de sua vida. Nada, exceto um pedido de Érbop, velho amigo, confiante em seus préstimos para não morrer sem ter resolvido uns negócios pendentes no Zirb-Al.
Os eoreanos orgulhavam-se de ter desenvolvido a mais refinada tecnologia sem destruir a natureza; a mais bela ciência sem se destruírem; as mais puras artes sem se xingarem; a mais alta filosofia sem epígonos besteiros; enfim, de, por uma lacuna, serem os mais bem aquinhoados dentre os homens: jamais conheceram a burocracia.
Eram, decerto, praticamente ignorados — Eórea nem figurava nos mapas do resto do planeta. Procuravam mesmo isolar-se, pois sabiam quem perde no encontro do Canto com o Ruído. Por isso, mal se importavam quando um de seus raros viajantes regressava com a notícia de que, para o mundo, o Reino de Eórea era apenas uma lenda gerada na cabeça de algum trêfego poeta.
Não obstante, ao chegar, de avião, a Ai-Zirb-Al, após curta passagem por pequenas cidades, começou Ozévop a pensar se tudo o que ouvira dizer sobre ele não seriam injúrias ao vizinho e tão distante país; se o germe —aliás estrangeiro— da xenofobia não estaria contaminando Eórea; ou, pior ainda, se os governantes não teriam razões ocultas para ocultar do povo as maravilhas de outras civilizações. Porque a cidade era linda e bem traçada, os edifícios magníficos, e seus verdes contrastavam alegres com a paisagem agreste do entorno. E a Ozévop afigurava-se lícito concluir que um povo capaz de tal poema urbano viveria, necessariamente, em plano evolutivo maior. Intrigavam-no, é verdade, uns pontos obscuros aqui e ali, de modo especial os grandes depósitos de madeira e detritos que formigavam em diversas partes não muito distantes do núcleo. Mas não sabia o que eram — como, simplesmente, reconhecer o nunca visto?
No aeroporto, alugou um carrinho e, como fosse muito cedo, se dispôs a um passeio pela cidade. Teve sua primeira decepção no posto de combustível, que supôs de propriedade duma estatal: o funcionário, nem bem o atendera, teve o descaramento de reclamar "gorjeta" (algo assim como um pagamento extra merecido por certos atendentes por terem cumprido sua obrigação), e Ozévop, perplexo ante as explicações fornecidas pelo não menos perplexo servidor do público, deu-lhe uma moeda, saindo com a estranha sensação de tê-lo humilhado. O que mais o assombrou foi aprender que em determinadas repartições tal prática chegava a ser oficiosa. Enfim, cada terra com seu uso, diz o ditado universal. (Em pouco aperfeiçoaria esses novos conhecimentos, e aprenderia palavras novas ou renovadas, a eles referíveis, como propinoduto, mensalão, cuecodólar, sanguessuga...)
Mas muitas maravilhas viu Ozévop. E mil outras veria, com certeza, não fora o seu lamentável despreparo psíquico...
Assim foi que, passeando no carrinho alugado, pôde admirar o zelo de funcionários a escorraçar crianças dos gramados — feitos para o retempero de embotadas vistas adultas, não para as bolas e os pés de pirralhos endiabrados. Examinando requintadas vitrinas de lojas, viu televisores numa festa colorida de programas infantis, e eram filmes de guerra e desavenças familiares ou acerca de heróis violentos e tolos; donde colheu a evidente e pedagógica intenção de preparar a infância para a verdade da vida, e contra a insidiosa, suprema inteligência do mal. Não precisou caminhar muito para anotar pelo menos três conquistas sociais ainda não conhecidas em sua pátria: mulheres ofertando-se em locação, o que lhe pareceu genial, como fórmula proponível para a solução do desemprego feminino em Eórea, se o houvesse (mas, que estranho! algumas dessas mulheres pareciam homens); maltrapilhos de todas as cores, idades e sexos, pedindo "gorjeta" sem a contraparte do serviço, o que também lhe pareceu genial, por maioria de razão; e forasteiros em busca de trabalho sendo recambiados, de graça! às cidades de origem.
No decorrer de suas andanças Ozévop fez duas observações importantes que, se não serviram para fortalecer sua primeira e aérea impressão de Ai-Zirb-Al, pelo menos terão contribuído para sublinhar o caráter extremamente original da cidade: a de que é este, sem dúvida nenhuma, o único lugar do mundo em que a repartição encarregada de controlar o trânsito atrapalha o trânsito; e a de que é também, provavelmente, o único estado em que os órgãos governamentais não aceitam títulos emitidos pelo Estado, autorizado por lei nacional, marchando mesmo para a recusa do dinheiro fabricado pelo governo, pois já se fala na possibilidade de os pagamentos serem feitos obrigatoriamente em ouro.
O que, porém, subverteu os miolos do outrora tranqüilo eoreano foi a visita a duas repartições ditas públicas, onde, ao fim de algumas peripécias, liqüidou simultaneamente os negócios do amigo Érbop e a vontade de permanecer no Zirb-Al ou em qualquer ponto da esfera que não sua querida Eórea. Na primeira, foi liminarmente expulso pela guarda devido à inescrupulosa ausência, em seu pescoço, da espécie de pequena forca a que chamam "gravata". Comprou uma a um vendedor ambulante, pendurou-se nela e foi afinal atendido. Na outra o caso foi mais grave.
Entrava Ozévop filosoficamente no belo edifício que a duras penas localizara, e quase é mesmo enforcado, por um grupo de guardiães, com outro e ainda mais curioso:tipo de "gravata". Detido e arrastado sob suspeita de espionagem, muito lhe custou recuperar a voz e convencê-los de que só por ignorância —de todo injustificável— tentara alcançar o elevador privativo das Autoridades, perfeitamente identificável como tal pelo fato singularíssimo de estar vinte centímetros mais longe do mais próximo que os demais. Em seguida, por pouco não o fuzilam, ao verificar-se que não passara antes pela Identificação na Portaria — tudo com gritadas maiúsculas. Desfeito o equivoco, foi gentilmente empurrado àquela extraordinária Instituição, onde o obrigaram a trocar sua carteira de identidade por um cartão vermelho plastificado, cuja posse, a essa altura, lhe redobrava as apreensões. Exibido o cartão, conseguiu viajar de elevador até o pavimento F, onde saltou. Ia entrando na ante-sala que parecia convidá-lo, quando outro guarda o interpelou: já conferira seu cartão? Súbito, arrebatando-o de sua mão, o homem passou a examinar um quadro fixado numa parede de vidro e em que se encaixavam fitas plásticas de várias cores. Azul, amarelo, verde, cor-de-rosa... faltando o vermelho; sinto muito, não confere. Estava para ser despachado de torna-viagem; por sorte, nesse momento chegou um funcionário e afixou no quadro uma fita vermelha, o que —deduziu Ozévop com afoiteza— o autorizava a entrar sem mais delongas. Muito polidamente, o guarda lhe fez ver que não raciocinara bem: tinha de preencher uma ficha com o nome, procedência, pessoa com quem desejava falar e assunto. (Enquanto o fazia, viu um senhor, que se identificara como o Visconde de Não-Sei-Onde, ser desenganado por declarar a pretensão de tratar, ali, assunto de seu singular interesse. Explicaram-lhe mais tarde que o figurão caíra em desgraça por ter-se recusado a molhar a mão —mas o que seria isso?— de alguns graúdos num processo de licitação.) Satisfeita a ficha, foi conduzido à sala de espera por uma bela jovem uniformizada. O homem na escrivaninha solicitou-lhe, com os melhores modos, a carteira de identidade que fora persuadido a deixar na Portaria. Ozévop, presa de não sabia que misteriosa inibição, tartamudeava, e teria perdido a peregrinação, com toda a segurança, não se tomasse o homem de filial carinho por suas sereníssimas cãs. Grato à providência pelo iminente fim do atribulado périplo, descobriu, ao tentar o elevador, que faltava força, e que a grade da escadaria era trancada a cadeado. E em caso de incêndio? perguntou ao guarda, recebendo em troca um sorriso de conforto. Nas onze horas e quarenta minutos que teve de esperar, conversou com esse funcionário, que bondosamente lhe explicou, pedindo sigilo, pormenores secretos do funcionamento da repartição. Foi-lhe informado, por exemplo, que nem mesmo aos servidores era permitido entrar no prédio um minuto antes da hora do ponto ou permanecer um minuto além do expediente. Não quis indagar por quê (ficou sabendo, entretanto, que os furtos motivadores da proibição continuaram depois dela e passaram a ser debitados a uns “fantasmas” que assombravam aquelas salas e corredores). Ao sair, voava, e tão afobado que novamente quase o estrangulam: esquecia-se de devolver o cartão e retomar seu documento.
Já fora do edifício, respirando aliviado, olhou para trás e leu: Palácio da Comunicação. E como (sempre se soube em Eórea) quem não comunica se trumbica, começou imediatamente a difícil viagem de volta.
///

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Sem duelos (Valéria Nogueira Eik)




















Desisti dos duelos quando compreendi a relatividade dos fatos e a finitude da vida.
Enterrei as armas antes de ser sepultada por elas.
Guardei as minhas verdades na alma para não perder meu coração.
Não me agrada ditar verdades. Mesmo porque, contrariando o nosso Einstein, elas são relativas.
Não me agradam os grupos. Prefiro a solidão dos pensamentos.
Também não me agradam as palavras ditas em altos brados. Gosto dos sussurros.
Não me agradam os finais de tardes. Aprecio a noite, o luar, o surrealismo das estrelas.
Também não me agradam conceitos. Prefiro a loucura que, por um triz, não se transforma em lucidez.
Acostumei-me a andar na corda bamba e sentir o fio teso da vida prestes a arrebentar.
Quando menos se espera ela termina. E todas as verdades caem no esquecimento.
Restarão as mentiras, intactas, pairando no ar, num renascimento incessante.

6/abril/2008
Maringá/PR
/////