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sábado, 19 de abril de 2008

Notas poéticas: Um audaz flâneur (Henrique Marques Samyn)



Todos os ventos (Nova Fronteira, 2002), volume que reúne a obra poética de Antonio Carlos Secchin, de fato demonstra o que, em seu prefácio, observa Eduardo Portella: se houvesse alguma dúvida sobre a qualidade da obra deste poeta – que é, ao mesmo tempo, um dos mais renomados ensaístas e professores de literatura do Brasil –, esta seria dissipada pela riqueza da obra reunida neste livro. Na verdade, podem guardar tais dúvidas apenas os que desconhecem a instigante trajetória poética secchiniana – na qual ressalta, sobretudo, a ousadia do poeta que peregrina entre líricas paragens (“Um sol sagrado afronta meu sossego / e faz do medo sua dor e dote”), irônicas instâncias (“A poesia está morta. / Discretamente, / A. de Oliveira volta ao local do crime.”) e horizontes reflexivos (“Poemas são palavras e presságios,/ pardais perdidos sem direito a ninho.”).
Antonio Carlos Secchin não hesita em explorar a miríade de potencialidades da poesia, e é precisamente este gosto pela experimentação o que determina sua fartura, tanto de temas quanto de registros. A lira soa como o poeta a faz soar: pode tanto ser afinada pelo diapasão simbolista (veja-se “Cisne”, à maneira – e à memória – de Cruz e Sousa) quanto assumir uma dicção próxima do coloquial (veja-se “Três toques”); tal unidade plural (o oximoro vem bem a calhar) é característica da poesia secchiniana – poesia que atravessa “escolas” e dilacera categorias.
Diga-se de passagem que é justamente neste ponto que suposta oposição se resolve: o Antonio Carlos poeta e o ensaísta Secchin, na verdade, caminham juntos e na mesma direção – o poeta alimentando-se dos múltiplos caminhos que a poesia percorreu ao longo de sua história, tão bem conhecidos pelo ensaísta; e este, por sua vez, levando para seus textos a precisão e a elegância da palavra poética. Audaz flâneur, é assim que Antonio Carlos Secchin caminha pelas avenidas da poesia: recolhendo o que lhe interessa e perfazendo o que lhe apetece.
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quinta-feira, 17 de abril de 2008

Na soleira da porta (Manoel Hygino dos Santos)



Emanuel Medeiros Vieira acaba de lançar, pela Thesaurus, "Cerrado Desterro", primeiro volume de suas memórias, com orelhas de Victor Alegria. A primeira consideração é de que me parece muito cedo para ingressar nesse gênero.
Emanuel nasceu em Florianópolis no ano em que Vargas desceu as escadas do Catete, em 1945, sem descer à sepultura, como na segunda vez, em 1954. O período de vida do autor é relativamente curto para cogitar de reunir lembranças.Mas o escritor de Santa Catarina achou que a hora era chegada, e ele mais do que ninguém sabe de si e de seu cronograma e perspectivas. O primeiro volume soma quase quatrocentas páginas, e há mais três temas nos trilhos.A primeira idéia é de memórias serem elaboradas ou organizadas quando a marcha etária ultrapassa a casa dos 70 anos. Assim fez Pedro Nava, e acertou plenamente. O seu legado para as letras e a história brasileira é fantástico.
Mas Emanuel Medeiros Vieira encontrou motivos para deslanchar antes o projeto. Com o primeiro volume se constata que ele tem razão. Viveu momentos difíceis, duros, até horripilantes da crônica brasileira no século passado. Esteve junto aos acontecimentos, sofreu-os, teria o que revelar.
Andou por estes Brasis que não são tanto mais de meu Deus, para passar aos numerosos demônios que o habitam. Mudou de acampamento com diploma da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul e sentou praça em Brasília, o centro do poder. Escreveu muito, vários livros, alguns com títulos cinematográficos. Escreve bem, conhece-se e reconhece-se. O primeiro volume de suas memórias traz uma amostra do que será a obra, como um todo. Reúne lembranças, depoimentos em jornais, pensamentos alheios que o impressionaram, fragmentos, que dão testemunho de uma época.
A "revolução" de 1964, com tantos erros cometidos, com crimes e torturas, o pegou em suas malhas. Esteve preso, por motivos em que incorreriam e incorreram homens de bem, jornalistas, escritores, artistas, intelectuais.De uma hora para outra, descobriu que álcool não faz bem. Todo mundo sabe que assim é, mas somente a experiência pessoal, traumática às vezes, convence. Parou de vez. Nem por isso deixou de ter padecimentos. No início de seu livro, afirma: "E a Morte, encostada na soleira da porta, quis dançar comigo um tango argentino. Fingi, disfarcei. Cínica, ela abanou. Fechei os olhos, cama de hospital, botei o cobertor na cabeça. Fui baixando, olhei, ela ainda me contemplava, o sorriso desaparecera, olhar mais grave – alguma compaixão?" À indesejada proposta do tango, disse: "Sou muito desajeitado, não sei dançar, esbarro em todo mundo. Há parceiros melhores". Mas ela não abria mão de sua preferência. Uma grave enfermidade cardiológica quase o tirou do meio do salão da vida. Encontrou médicos excelentes, enfermagem de alto nível, carinho e apoio da família. A cirurgia foi plena de êxito, recuperou-se. Agora, verifico que as memórias de Emanuel Medeiros Vieira eram inadiáveis, devem e precisam ser lidas.

(Publicado no jornal Hoje em Dia, 1º/4/2008)

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