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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Flores de vidro à Primavera (Henrique Marques Samyn)




No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: colhia, cuidadoso, as várias flores, nunca ao acaso – escolhia-as cuidadoso, com silêncio e parcimônia. Com os dedos tangia as folhas, retia as pétalas, vagaroso: só depois de sentir-lhes a tez e medir-lhes inteiras, cores e cheiros, podia colher as flores de exata medida para o seu intento – e ao fim da longa procura, sentava-se num banco, solitário, e punha-se a armar os ramalhetes: com vão esforço os tecia, fazendo-os ásperos e assimétricos. Suas mãos, cinzentas e grossas, sempre feriam as frágeis flores; rompia os caules ao entrançá-los – mas portava-se, ainda assim, como o mais severo ourives. Ao fim, erguia o corpo e retomava a caminhada – e como era hilária a figura: medido cada passo, crispadas ambas as mãos, agindo qual levasse vítreas flores nos seus braços. Pisadas dolorosas coxeavam sobre o asfalto; claudicante, a seca sombra oscilava sob o sol – repetia, todos os dias, um mesmo ritual. Quedo, achegava-se à amada; enquanto a fitava em silêncio, deitava aos seus pés as flores. Ela, inerte e fria, impávida e rija pedra: estátua que, como estátua, não podia vê-lo ou ouvi-lo – e que, em sua indiferença, permanecia a fitar o horizonte, lábios e olhos opacos, eterna distância do amor. Inércia que ele não via – não via ou queria não ver: todos os dias, voltava aos gestos, num afeto inabalável. E fiel se conservava, pois mantinha-se em vigília: quando chegava à amada, nos braços as flores de vidro, e via os pássaros a cercá-la, lançava-se ao combate – em meio aos curiosos, nunca poucos, que o fitavam: ingentes gargalhadas, inaudíveis, pois tão altas –, cumpria o seu dever: brandindo um pedaço de pau, gritava, pulava e lutava, valente em defesa da dama, com seus golpes, afoitos, equívocos; pombos, pardais revoavam, deixando uma chuva de penas; raramente algum era atingido. Quando enfim não restavam mais pássaros, seus braços pendiam, exaustos; a espada que achara em improviso tombava, esquecida, no asfalto. Então, com o olhar embaçado, deixava-se estar, cabisbaixo – ao redor, entre risos, fitavam-no os muitos rostos, em turvo suspense – limpava o suor do pescoço com as costas da mão enrugada, a barba cinzenta e rançosa, e corria de encontro à estátua – e a abraçava, a chorar, aos soluços, aos soluços, aos soluços; e, em meio aos alegres aplausos, gargalhadas, risos e estrépitos, chegava aos pés da estátua, claudicante andar solene, e ali deitava as flores, assimétricos buquês, frágeis flores de vidro.

No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: todos os dias, a mesma batalha, a animada platéia a seguir-lhe os passos. As crianças que o imitavam na escolha das flores, colhendo-as falsas: misturavam os ramalhetes, profanavam o exato gesto – e ele, a resmungar, retirava-os dos pés da amada: falsos buquês, falsos presentes, trançados com pérfida perfeição. Desfazia-os e, resmungando, os jogava em pedaços – sórdidas pétalas, vis, os canalhas! Porque ele, só ele, a amava – ele, apenas ele, o mais fiel dos servidores –
e um dia eles chegaram.

Pivetes, não mais que pivetes. Ficavam pelas redondezas, pedra e cachaça, cola e cerveja. Quando Anelísia foi morta, foram vistos andando por perto: Anelísia, travesti, vivia na Central, tinha ali seu ponto. Pobre e negra, não deixava desaforo sem revide: eles, em bando, a cercaram – entre os risos, doze facadas: no dia em que ela foi morta, foram vistos andando por perto; no entanto, era só Anelísia. Travestido, o cadáver à noite – a essas mortes, só resta o silêncio.

Eis que um dia eles chegaram e o viram fazer o seu percurso; e o viram colher as flores, e andar, canhestro e zeloso; e viram seu amor, torvo e austero, pedra e rito. E porque tudo viram, não tardaram a, entre risos, partir também ao combate: armaram-se, paus e pedras, puseram-se ao lado da estátua – e ele, ao longe, em cuidado, a colher as flores de vidro. Teceu seus tortos buquês, como pedia o ritual, e pôs-se a caminhar: sua amada o esperava.
Dolorosos passos curtos, caminhava, claudicante, e solene qual levasse vítreas flores nos seus braços. Enfim, chegou à estátua, e viu o bando ao seu redor: não pássaros, mas pivetes – armados com paus e pedras, e ao redor a multidão: estudantes e aposentados, camelôs e policiais, mulheres e vagabundos – olhares ansiosos entre os risos sussurrados.

Ele não hesitou: avançou de encontro aos muitos, em riste o pedaço de pau – e avançaram de encontro a ele. Em meio ao Campo de Santana, teve lugar o combate: ele lutava em silêncio, eles batiam-lhe aos risos – ao longe as vozes gritavam, porque o sangue lhe cobria: sob as rotas, velhas vestes, eclodiam manchas rubras, o corpo tombava aos poucos,
cercavam-lhe os paus e as pedras – cinco ou seis policiais saíram do meio da multidão e puseram um fim à algazarra. Correram os muitos pivetes; no chão um mendigo caído, flores de vidro estraçalhadas. Levaram-no, e para sempre: se vive, ninguém mais sabe.

No Campo de Santana permanece, inerte, a estátua. Seminua, celebra a primavera – solitária: quem passa não a vê. Ainda assim, visitam-na, por vezes, parcos pássaros.

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sábado, 10 de maio de 2008

Fortaleza antiga, uma cidade em prosa e verso (Batista de Lima)


(Fortaleza antiga)

Pacheco Espinoza é autor do mais antigo texto literário de exaltação a Fortaleza. Data de 1813 o seu soneto decassilábico e neoclássico, “Para o chafariz da cidade de Fortaleza”, em que é exaltada a figura do Governador Sampaio por criar aquele benefício para a vila. Ao mesmo tempo a cidade é enaltecida pelo seu desenvolvimento que já se estampa em algumas ruas. “Este manancial de água, o primeiro,/ Que fez surgir na Vila arte prestante,/ Para a sede saciar o caminhante,/O sábio, o nobre, o rico, o jornaleiro.”

Em 1856 Juvenal Galeno inaugurou o romantismo no Ceará com a publicação de seu livro de poemas Prelúdios poéticos. Juvenal Galeno era um apaixonado por Fortaleza e pelo Ceará. Centrou sua literatura na sua terra natal. Cantou as coisas da terra, o cajueiro e a jangada, principalmente. “Minha jangada de vela,/ Que vento queres levar?/ Tu queres vento da terra,/ Ou queres vento do mar?”

Na prosa é importante destacar escritores que encararam Fortaleza de forma diversa: Adolfo Caminha, Oliveira Paiva, Gustavo Barroso e Jáder de Carvalho. Adolfo Caminha, no seu romance A normalista, faz uma literatura de catarse, uma obra de maldizer da cidade. É um livro de crítica ao preconceito social existente na cidade de Alencar. Oliveira Paiva na sua novela A afilhada, não se envolve na narrativa. Destaca-se nessa obra, sua descrição da cidade de Fortaleza na última década do século XIX. As ruas da cidade são bem apresentadas, mostrando a importância do plano de urbanização de autoria do Dr. Silva Paulet. Gustavo Barroso em Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China revisita Fortaleza com um certo tom nostálgico. São três livros de memórias suas e da cidade.

É também de Gustavo Barroso um dos mais belos cantos de louvor a Fortaleza, no caso, o "Hino de Fortaleza", com letra sua e música de Antônio Gondim. É uma letra que fala em "virente coqueiro", em "Iracema lembrando o guerreiro", no "mar nas areias ardentes", fala ainda de jangadeiros e chama Fortaleza de "a flor do Brasil". É por demais repetido seu estribilho: “Fortaleza! Fortaleza!/ Irmã do sol e do mar:/ Fortaleza! Fortaleza!/ Sempre havemos de te amar”.

Jáder de Carvalho, no seu livro Aldeota, apresenta de forma romanceada, a trajetória de um personagem de nome Chicó, que originado do sertão do Ceará, na região de Cariús, transfere-se para a Amazônia onde se torna arigó e depois volta para o nosso Estado, fixando residência em Fortaleza, onde enrica através de métodos fraudulentos. Chicó é uma figura picaresca que passa pelas mais variadas funções, até se tornar habitante da Aldeota, bairro nobre de Fortaleza, composto de bangalôs de importantes famílias, entre as quais algumas que enriqueceram com a sonegação de impostos, com o contrabando, com todo tipo de espertezas que se possa fazer para auferir riquezas.

Entretanto, não foi só o cearense que cantou Fortaleza. Há aqueles que se encantaram com essa terra e cantaram-na de alguma forma. É o caso do poeta pernambucano Manuel Bandeira que por aqui passando quando se dirigia à Serra do Estêvão, em Quixadá, em busca de saúde, cantou os verdes mares fortalezenses: “Clama uma voz amiga: – "Aí tem o Ceará"./ E eu, que nas ondas punha a vista deslumbrada,/ Olho a cidade. Ao sol chispa a areia doirada.”

Um dos elementos lembrados por Manuel Bandeira em seu poema é o sol, o mesmo sol que Paula Ney fez desposar a cidade, no seu célebre poema "Fortaleza", cujo primeiro quarteto assim se apresenta: “Ao longe, em brancas praias, embalada/ Pelas ondas azuis dos verdes mares,/ A Fortaleza – a loura desposada/ Do sol – dormita, à sombra dos palmares.”

Não é um poema primoroso, inclusive com algumas achegas apontadas por Sânzio de Azevedo em seu livro A Literatura Cearense, mas imortalizou a expressão "Fortaleza- a loura desposada do sol", a ponto de outros escritores também referirem-se a essa loirice, como é o caso de Francisco Carvalho quando canta: “Ó loira e bela Fortaleza amada,/ Vem escutar meu sonoroso canto/ Que agora mesmo, para o céu levanto,/ A fim de honrar-te a gleba benfalada/”.

Assim como Francisco Carvalho, outro poeta que saudou poeticamente Fortaleza foi Otacílio Colares através do poema "Descante à cidade amada", onde apresenta tipos populares como: Chagas dos Carneiros, Jararaca, Zé Levi, Cheira-Dedos, Mimosa, Zé Lapada, Cabeção e a Siri. Nesse descante de Otacílio Colares poder-se-ia acrescentar o bode iôiô, Canoa Doida, Manezinho do Bispo, Burra Preta, Roberto Carlos, Vassoura, Zé Tatá etc. Esse é um dos 173 poemas que fazem parte do Cancioneiro da Cidade de Fortaleza, organizado por Artur Eduardo Benevides.

O próprio Artur Eduardo Benevides aparece como autor de um dos melhores poemas da coletânea, no caso, "Canto de amor a Fortaleza", onde ele diz: “(...) ó grande flor atlântica/ plantada mais em nós do que no chão.” Caracteriza-se esse cancioneiro por encerrar em suas páginas quase todos os poemas sobre nossa cidade. Isso levou à veiculação de muitos textos que se querem poemas mas que muitas vezes são apenas aglomerados verbais de encômios à cidade amada. Daí que dentre os poucos e belos textos sobre nossa metrópole, pode-se dizer que o melhor momento é exatamente a presença do único texto em prosa do volume, no caso, “Terna louvação”, de autoria do organizador. No texto, Artur Eduardo Benevides trata a cidade de “musa” e apela para seu “claro rosto e graça delicada”, chamando-a de “menina e mulher, ave e canção”, “cidade de ruas tão alinhadas como os versos de um soneto”, refere-se por fim ao “rosto hermoso” que Pinzon avistou quando aqui chegou. Esse cancioneiro constitui uma homenagem da Prefeitura Municipal ao sesquicentenário de Fortaleza, na administração do Prefeito Vicente Fialho em 1973. No seu canto de apresentação, Artur Eduardo Benevides não esqueceu de citar os folguedos que marcaram época na cidade: serenatas, cirandas, pastorinhas, retretas, fandangos, modinhas, minuetos, quadrilhas, varsovianas, a prenda, o anel, o santo, o solo inglês, a cabra cega, congos, lapinhas, pastorinhas e o boi surubim.

Cita ainda as valsas, as canções, as polcas, os dobrados, os hinos patrióticos. O Cancioneiro da cidade de Fortaleza é uma comprovação de que o fortalezense transmite seu amor à cidade quase sempre em forma de canção, não importa como. É o caso de Otacílio de Azevedo com seu livro Fortaleza descalça; Herman Lima, com Poesia do Tempo; Monsenhor Quinderé, com Reminiscências; Mozart Soriano Aderaldo, com História abreviada de Fortaleza; Raimundo Girão, com Fortaleza e a crônica histórica; Juarez Leitão, com Sábado: estação de viver; Sebastião Rogério Ponte, com Fortaleza belle-époque e Blanchard Girão, com O Liceu e o bonde, Narcélio Limaverde, Eduardo Campos com as peças teatrais Morro do Ouro e Rosa do Lagamar, Ciro Colares, Faria Guilherme e outros.

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