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sábado, 17 de maio de 2008

sobre o amargo do beijo (Jorge Mendes)



você não conhece meus óculos escuros o amor se não ofusca os olhos,
dilata a escuridão
- cioram

sabe, menina feia, o sol do meio dia sempre foi um palhaço assassino comigo. daí esse inverno rigoroso nos olhos, a fúria das esquinas, a solidão dos becos. daí os óculos escuros, menina feia.

então, menina feia, não chega ser completamente injusto dizer que você não será minha adorável putinha e nem eu o seu encantado sapinho.

o negócio, menina feia, é que busco uns sonhos da pesada daquele lado infernal da cabeça. um incêndio abrupto na garoa fria, um calor assim. portanto, menina feia, por pura perversidade, engano as estrelas da hora sublime. decepciono por prazer e fogo aflito deuses e demônios.

estas mãos cavam buracos escuros na claridade das manhãs, você sabe. tenho nada, menina feia. só desespero e horror. sim: pulo do alto pra sentir o gosto do sangue no céu da boca. você, porém, prefere brincar de esconde-esconde, cabra-cega. quer fazer da cidade em ruínas sua casa de bonecas. então foda-se, menina feia.

escuta, menina feia, tem tudo pra dar errado. tenho hábitos de vôos suicidas. meu poema de concreto voador grita na madrugada anêmica dos heróis acrilíricos e o inferno é o lugar mais próximo do paraíso onde posso chegar. estou dizendo, menina feia, que meu futuro não é brilhante. meus olhos não são brilhantes. meus dentes não são brilhantes. a cabeça do meu pau não é brilhante. nada em mim brilha ou quer estéril luz, menina feia.

entenda, menina feia, os cães me farejam o sangue porque desconhecem o nome do medo (e não é porque sou canceriano que a lua vai me fazer de otário, sem chances). ademais, caminho devagar pela escuridão porque tenho febre e dores que causam rupturas. meu amor, aliás, não é relâmpago insípido nem asséptico rosa. antes é azul cortante, nuvem selvagem, osso elétrico, verbo sangrando o ar.

não é pálida nem fóssil jardim minha palavra no vento voraz, menina feia. por outro lado, menina feia, você sabe que perdi na rodada do SEJA CANALHA SORRINDO (prometo ganhar na roleta russa, creia), meus navios e arco-íris naufragaram na tarde dos ratos e, contudo, menina feia, - e isso nem eu e nem você entendemos direito - entro no oxidável mundo das aparências de peito aberto e sigo respirando pássaros mortos nos ambientes neutros, na boa.

assim sendo, menina feia, sinceramente, era pra ter entrado de corpo e alma no fogo. era pra ter se aberto e se entregado e chupado gostoso. era pra ter caído em queda livre, ter virado ave do paraíso, menina feia. você não quis ou não conseguiu. fez cu doce. estacionou na beirinha do abismo e ficou ali olhando a paisagem cinza sem saber que a luz é indolor mas que a claridade cega, amor.

in http://aofimdanoite.zip.net/

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quinta-feira, 15 de maio de 2008

Flores de vidro à Primavera (Henrique Marques Samyn)




No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: colhia, cuidadoso, as várias flores, nunca ao acaso – escolhia-as cuidadoso, com silêncio e parcimônia. Com os dedos tangia as folhas, retia as pétalas, vagaroso: só depois de sentir-lhes a tez e medir-lhes inteiras, cores e cheiros, podia colher as flores de exata medida para o seu intento – e ao fim da longa procura, sentava-se num banco, solitário, e punha-se a armar os ramalhetes: com vão esforço os tecia, fazendo-os ásperos e assimétricos. Suas mãos, cinzentas e grossas, sempre feriam as frágeis flores; rompia os caules ao entrançá-los – mas portava-se, ainda assim, como o mais severo ourives. Ao fim, erguia o corpo e retomava a caminhada – e como era hilária a figura: medido cada passo, crispadas ambas as mãos, agindo qual levasse vítreas flores nos seus braços. Pisadas dolorosas coxeavam sobre o asfalto; claudicante, a seca sombra oscilava sob o sol – repetia, todos os dias, um mesmo ritual. Quedo, achegava-se à amada; enquanto a fitava em silêncio, deitava aos seus pés as flores. Ela, inerte e fria, impávida e rija pedra: estátua que, como estátua, não podia vê-lo ou ouvi-lo – e que, em sua indiferença, permanecia a fitar o horizonte, lábios e olhos opacos, eterna distância do amor. Inércia que ele não via – não via ou queria não ver: todos os dias, voltava aos gestos, num afeto inabalável. E fiel se conservava, pois mantinha-se em vigília: quando chegava à amada, nos braços as flores de vidro, e via os pássaros a cercá-la, lançava-se ao combate – em meio aos curiosos, nunca poucos, que o fitavam: ingentes gargalhadas, inaudíveis, pois tão altas –, cumpria o seu dever: brandindo um pedaço de pau, gritava, pulava e lutava, valente em defesa da dama, com seus golpes, afoitos, equívocos; pombos, pardais revoavam, deixando uma chuva de penas; raramente algum era atingido. Quando enfim não restavam mais pássaros, seus braços pendiam, exaustos; a espada que achara em improviso tombava, esquecida, no asfalto. Então, com o olhar embaçado, deixava-se estar, cabisbaixo – ao redor, entre risos, fitavam-no os muitos rostos, em turvo suspense – limpava o suor do pescoço com as costas da mão enrugada, a barba cinzenta e rançosa, e corria de encontro à estátua – e a abraçava, a chorar, aos soluços, aos soluços, aos soluços; e, em meio aos alegres aplausos, gargalhadas, risos e estrépitos, chegava aos pés da estátua, claudicante andar solene, e ali deitava as flores, assimétricos buquês, frágeis flores de vidro.

No Campo de Santana fazia sempre o mesmo percurso: todos os dias, a mesma batalha, a animada platéia a seguir-lhe os passos. As crianças que o imitavam na escolha das flores, colhendo-as falsas: misturavam os ramalhetes, profanavam o exato gesto – e ele, a resmungar, retirava-os dos pés da amada: falsos buquês, falsos presentes, trançados com pérfida perfeição. Desfazia-os e, resmungando, os jogava em pedaços – sórdidas pétalas, vis, os canalhas! Porque ele, só ele, a amava – ele, apenas ele, o mais fiel dos servidores –
e um dia eles chegaram.

Pivetes, não mais que pivetes. Ficavam pelas redondezas, pedra e cachaça, cola e cerveja. Quando Anelísia foi morta, foram vistos andando por perto: Anelísia, travesti, vivia na Central, tinha ali seu ponto. Pobre e negra, não deixava desaforo sem revide: eles, em bando, a cercaram – entre os risos, doze facadas: no dia em que ela foi morta, foram vistos andando por perto; no entanto, era só Anelísia. Travestido, o cadáver à noite – a essas mortes, só resta o silêncio.

Eis que um dia eles chegaram e o viram fazer o seu percurso; e o viram colher as flores, e andar, canhestro e zeloso; e viram seu amor, torvo e austero, pedra e rito. E porque tudo viram, não tardaram a, entre risos, partir também ao combate: armaram-se, paus e pedras, puseram-se ao lado da estátua – e ele, ao longe, em cuidado, a colher as flores de vidro. Teceu seus tortos buquês, como pedia o ritual, e pôs-se a caminhar: sua amada o esperava.
Dolorosos passos curtos, caminhava, claudicante, e solene qual levasse vítreas flores nos seus braços. Enfim, chegou à estátua, e viu o bando ao seu redor: não pássaros, mas pivetes – armados com paus e pedras, e ao redor a multidão: estudantes e aposentados, camelôs e policiais, mulheres e vagabundos – olhares ansiosos entre os risos sussurrados.

Ele não hesitou: avançou de encontro aos muitos, em riste o pedaço de pau – e avançaram de encontro a ele. Em meio ao Campo de Santana, teve lugar o combate: ele lutava em silêncio, eles batiam-lhe aos risos – ao longe as vozes gritavam, porque o sangue lhe cobria: sob as rotas, velhas vestes, eclodiam manchas rubras, o corpo tombava aos poucos,
cercavam-lhe os paus e as pedras – cinco ou seis policiais saíram do meio da multidão e puseram um fim à algazarra. Correram os muitos pivetes; no chão um mendigo caído, flores de vidro estraçalhadas. Levaram-no, e para sempre: se vive, ninguém mais sabe.

No Campo de Santana permanece, inerte, a estátua. Seminua, celebra a primavera – solitária: quem passa não a vê. Ainda assim, visitam-na, por vezes, parcos pássaros.

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