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domingo, 8 de junho de 2008

Dois pontos (Aníbal Beça)



No meu caminho
dou de encontro
com :
tisnados em paralelas
à espera da sentença
dialogando
com o chão


Essa conversa de pés
claudicante
tartamuda
gagueja
em tropeções
naquele que vem embaixo
rebatendo em eco
para o que está acima
pássaro preto
no telhado azul


Pelo vão desses :
de cabeça me arremesso
aventura em travessão
no sonho que não se quer
linha reta
horizontal
O . de cima leva sonhos
Epifania
O . de baixo lavra a pedra
Epitáfio
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sexta-feira, 6 de junho de 2008

Moacir Amâncio: um poeta multilíngue (Adelto Gonçalves*)




I
Um poeta que expressa seus sentimentos em vários idiomas – esse é Moacir Amâncio (1949), que acaba de reunir vários livros num só, Ata, que vem acrescido de vários poemas inéditos, com o excelente ensaio “Poesia nômade”, de Berta Waldman, que permite ao leitor acompanhar a trajetória incomum de uma obra provavelmente única na poesia brasileira, como assinala na apresentação Odile Cisneros.
Ata inclui os livros Do objeto útil, Figuras na sala, O olho do canário, Colores siguientes, Contar a romã, Óbvio, At e Abrolhos. Seu título corresponde aos múltiplos sentidos que o poeta quis dar ao livro, muito bem desvendados por Berta Waldman, desde a ata em português (registro ou registo escritural) até a preposição at em inglês, passando pelo atá em hebraico (pronome pessoal masculino e advérbio de tempo correspondente a agora em português).
É preciso que se diga que Amâncio, embora tenha surgido para a literatura nos anos de chumbo (1964-1985) e circulasse nos ambientes de esquerda da imprensa paulista na década de 70, não teve de viver obrigatoriamente no exílio por causa de suas idéias ou atos. A sua ausência no solo brasileiro, se houve, geograficamente, foi durante o tempo em que ganhou uma bolsa para estudar na Universidade Hebraica em Jerusalém já nos anos 80. Como observa Berta Waldman, o exílio de Amâncio nunca foi geográfico, mas na alma, a partir da necessidade de construir territórios de enunciação, como diz George Steiner em Extraterritorial: ensaios sobre literatura e revolução lingüística (Barcelona, Barral, 1973). E ocorreu de maneira consciente na ânsia de encontrar em línguas estrangeiras o que já não achava disponível no idioma português.
II
Amâncio estreou na literatura com a novela O saco plástico, de 1973, e, depois, surpreendeu a crítica com a prosa fragmentária e experimental de Estação dos confundidos (São Paulo, Símbolo, 1977), romance que trata da vida de Joaquim Chapeta Arruda, um deserdado da terra perdido na desumana e impessoal cidade de São Paulo.
Redator de texto conciso e preciso, Amâncio, que passou a maior parte de sua vida profissional nas redações dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, publicou ainda o livro de contos O riso do dragão (São Paulo, Ática, 1981), em que parecia já disposto a extravasar as fronteiras do gênero, deixando de lado um certo convencionalismo dos primeiros livros, embora o fragmentarismo e as quebras de frase já indicassem o caminho futuro.
Esse procedimento se acentuou em Súcia de mafagafos (São Paulo, TA Queiroz Editor, 1982), que reúne duas histórias bastante fragmentadas e com a linguagem da prosa já se misturando com a poesia, num tom meio juvenil.
O autor não renega sua obra anterior, mas, aparentemente, prefere deixá-la esquecida, pois não consta dos dados bibliográficos que aparecem em seus livros mais recentes. O que se conhece é que se rendeu à poesia a partir de 1992, quando lançou Do objeto útil (São Paulo, Iluminuras), disposto a oferecer uma nova proposta ao gênero, como se tivesse por meta escapar de uma certa linguagem exaurida pelo uso ao longo de todo um século de experimentação, repetição e diluições, para se assumir aqui o que o romancista Eustáquio Gomes escreveu na apresentação de Contar a romã (São Paulo, Record, 2001).
Essa virada, por coincidência ou não, deu-se depois que Amâncio imergiu na cultura judaica, a partir da temporada que passou em Jerusalém, que não só lhe inspirou parte dos poemas de Do objeto útil como o fez há poucos anos reencaminhar a sua vida como professor de Literatura Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ao deixar para trás o cotidiano da redação de O Estado de S. Paulo, passando a atuar apenas como colaborador de seu caderno de variedades.
Também aqui fez carreira inversa: preparou-se muito bem antes de entrar numa sala de aula como professor numa altura da vida em que a maioria dos docentes já sonha com a aposentadoria. Doutorou-se na área de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo com a tese Dois palhaços e uma alcachofra (São Paulo, Editora Nankin, 2001) em que discute as diferentes formas de se ver o Holocausto. Em poemas recentes, tem buscado um diálogo com a Ibéria hebraica de Sevilha e Córdoba.
III
Em Do objeto útil (Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, 1992), como um autêntico poeta pós-croncreto, mostra-se decididamente preocupado com a síntese, talvez como reflexo de sua atividade profissional, pois, à época dedicava-se a escrever as chamadas de primeira página de O Estado de S.Paulo, que sempre exigiram do redator um alto poder de síntetização. Veja-se este poema a título de exemplo: A lembrança da cinza/ destrói a porta./ O vento invade tudo,/ varre cantos, as frestas,/ assoalho, teto, ossos./ Deixa apenas metáforas.
Em Figuras na sala, de 1996, o autor faz uma homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), mas também paga um tributo ao poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que se valia de símbolos para expressar seus sentimentos através da sugestão, mais que da narração.
Em 1997, publica um livro de reportagens e artigos, Os bons samaritanos e outros filhos de Israel (São Paulo, Editora Musa), interrompendo a seqüência de livros dedicados à poesia. Mas logo volta com O olho do canário (São Paulo, Musa Editora, 1998), que, aliás, diferencia-se de seus livros anteriores de poesia na alternância e variedade dos ritmos, como observou Carlos Vogt na apresentação, e na linguagem elíptica que emprega.
Como gosta de jogar com a idéia de que as línguas latinas são, na verdade, um só idioma, defendendo o argumento de que determinadas emoções e idéias só caberiam adequadamente em italiano, outras em francês, em português, romeno, catalão ou espanhol, Amâncio publica Colores siguientes (São Paulo, Musa Editora, 1999) em que reuniu poemas escritos em castelhano. É o livro que marca o início de uma série de peregrinações poliglotas, que vão atingir o seu auge com Abrolhos em que várias composições estão escritas em hebraico. Esses poemas em hebraico formam um conjunto, na verdade, um livro, que foi inteiramente publicado pela revista Etc., de Curitiba.
Antes, o poeta já havia experimentado no parcialmente inédito At a construção em inglês de um universo paralelo ao português. Já em Contar a romã (São Paulo, Record, 2001) presta homenagem ao idioma de Góngora, Quevedo e Cervantes, especialmente em "Duelo de la nariz y la cara" em que transita do espanhol para o português e igualmente da poesia para a prosa poética (e vice-versa) sem perder o sentido.
IV
Professora do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Berta Waldman destaca para análise o poema “Àlef”, de Contar a romã, que dialoga em primeira instância com a Cabalá, mas que remete também para o conto “El Aleph”, de Jorge Luís Borges (1899-1986), em que a primeira letra do alfabeto é apresentada como um ponto no espaço que contém todos os pontos, ou seja, um ponto que agrega todos os sentidos.
A partir daí, a estudiosa sugere que o idioma hebraico tenha passado a ser, durante essa trajetória, uma das bases que sustentam a poesia polivalente de Amâncio, ele mesmo um estudioso dessa língua e também do Talmud. “Amâncio incorpora a estrutura de ambos, lançando-os como o ponto zero de sua poesia”, explica. Eis um trecho de “Álef”: Segundo Spinoza,/ lentes fabricante/ a vogal permite/ o fazer a fala/ sendo a alma dela./ Ou como entender/ a matéria simples,/ LF só rocha.
V
Antes de Ata, Amâncio lançou pela Travessa dos Editores, de Curitiba, Óbvio, em que radicaliza as preocupações estéticas de livros anteriores, desta vez, compondo um poema, "Arghvan", em inglês, a exemplo do que fizera em espanhol em Colores siguientes, quem sabe inconformado com as amarras lingüísticas e possíveis limitações do português. Esse longo poema, que melhor seria definido como um conto em versos, constitui a segunda parte do livro, mas se entrecruza com as duas outras partes.
A primeira parte, "Óbvio", que ocupa a maior parte do livro, é também um longo poema, outra vez em decassílabos. Ao largo desse poema, sente-se a presença da tradição judaica, nunca descrita, mas sugerida, de que Amâncio, hoje, no Brasil, é um dos maiores conhecedores.
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ATA, de Moacir Amâncio. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, 584 págs. E-mail: record@record.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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