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terça-feira, 8 de julho de 2008

A peleja de Dom Zé Alcides e o dragão de Sobral (Raymundo Netto)



Dados os últimos acontecimentos fenomenológicos e sísmicos que vêm, literalmente, abalando o Ceará, ouço, todas as manhãs, falas sobre “vórtice ciclônico de ar superior”, “diminuição da temperatura no oceano Pacífico”, “zona de convergência intertropical” entre outros palavrórios pouco convincentes, principalmente após a famigerada noite pirotécnica de relâmpagos que despertou a cidade de Fortaleza. Digo despertou, para os outros, pois eu mesmo nem dormia, e descobri in loco a razão de tudo isso.
Era tarde. Vinha passando ao lado da catedral que, à solidão da noite, de tão sombria, chegava a dar calafrios. Na barra da saia da Matriz, demônios com unhas maiores que os dedos, entre cusparadas, invadiam as virilhas de meretrizes, sugando a alma das jovens criaturas. À ladeira do Forte, homens e mulheres seminus surgiam embriagados com garrafas na mão e olhos perdidos.
Pressenti ter que sair logo dali. Contudo, rompeu a chuva e me abriguei embaixo de uma lona velha da feira. Sons, que mais pareciam os de latas caindo nos telhados, emouqueciam. “Que trovões!”, pensava, pois relampejava tanto a ponto da noite quase parecer o dia. Nisso, baratas, escorpiões e os pombos do Palácio do Bispo se dirigiam a caminho da praia. Morcegos campeavam a praça dos Leões, enquanto na igreja do Rosário dos Pretos, ossadas esquecidas, intuindo a presença do mal, se arrastavam pela escadaria. Gatos de cemitério saltavam de todos os lados, como numa peste. Mesmo diante da chuva, o calor era tão grande que estalavam as paredes e vitrais. No ar, talhos de galhos secos e linhas comidas por cupins dos telhados históricos. Os bêbados, os drogados, as prostitutas, os passantes noturnos do centro da cidade clamavam ao deus do Ceará: “É o fim do mundo, o fim do mundo!”
Sentindo meus pés úmidos, constatei que as águas do Acaraú, diante da epigênese epifânica da vida, subverteram em trombas d’água na Fortaleza impassiva, enquanto que, na colina do Marajaik, os verdes abutres voavam a grasnar ameaçadores.
Do horizonte, uma imensa nuvem de poeira deitou-se sobre a praça da Sé sufocando a todos, inclusive os comerciantes da feirinha despejada.
Logo correu a notícia de que outros homens, a entupir os corredores dos hospitais da aldeia, apareceram com manchas vermelhas, dores no corpo e olhos injetados em sangue, vítimas de um vírus latente trazido na poeira da destruição. Foi então que vi, em meio à negra nuvem, a imagem grotesca de um dragão voador. Lembrei a profecia: “Reza a lenda que o mundo vai se acabar pelo Ceará. Um dragão monstruoso dormiria silencioso em sua morada sob uma cidade que, embora tenha muitas igrejas e santos padres, estaria condenada à destruição. Esta cidade é Sobral!”
Sim, leitor amigo, os tremores de terra em Sobral foram causados pelo monstro desperto, a cumprir a sentença de pavor e morte, mandando às favas as placas tectônicas e os vulcões submarinos. Da mesma forma, aqueles “trovões” eram frutos da inexperiência aeronáutica da criatura que tombava nas torres da catedral e nas casas velhas da Justiniano de Serpa. Aliás, não sei se vocês souberam, mas elas desabaram!
Pasmo, assisti à romaria de sobralenses descambando, e até assumindo cargos públicos, em Fortaleza. Viriam os vivos, viriam todos e tudo, até o eclipse.
Foi quando chegou um homem magro, pele marcada de sinais e nariz quase tombando sobre o bigode alvo. Reconheci: era o poeta José Alcides Pinto.
— Ainda por aqui, Zé? — estranhei.
— Mundico, quem pode afirmar com absoluta certeza se o morto não está vivo, embora morto esteja? — respondeu, arregaçando as mangas e puxando o cinto da calça.
O cego curandeiro, João da Mata, e os tremembés de Almofala partiram em luta contra os demônios, e muitos, inclusive os filhos de Janica, foram abatidos.
— Maldição, maldição, maldição! — gritou, aborrecido, Alcides ao dragão que, ao reconhecê-lo, pôs-se a vomitar chicotes de fogo que mais pareciam relâmpagos revelando uma cidade que já não mais dormia.
Zé Alcides corria e saltava, de um lado para outro, fugindo do dragão. Num momento, arrancou um pedaço de raio fincado no asfalto que derretia, ostentando-o como lança diante da fuçalha daquele que o encarava. Eram criador e criatura num embate final. Foi quando ele abriu a braguilha e, para fúria do lagartão, mijou em suas patas. Humilhado, o monstro lançou o poeta contra a parede da catedral, coiçeou, mas ele resistia. Mesmo enfraquecido, Zé Alcides conseguiu lançar, na venta do dragão, uma garrafa com uma mosca presa, fazendo com que ele se dobrasse em dor:
— Ainda vai, filho de uma égua? Lascou-se! — comemorava, alquebrado.
O dragão, como mágica, transformou-se em constelação e seus demônios renderam-se em cinzas; o sol nasceu brilhante e a esperança despontou. Aos pés da calçada, em meio à lama do Acaraú, meninos de rua passaram a catar siris, enquanto as pessoas chegavam desenterrando a cidade. Em pouco, na falta do que dizer de uma vida monótona, só se falava na noite chuvosa, nos trovões incomodantes, nas fagulhas dos céus, nos tremores de terra, na peste da dengue. No centro da praça, entre palhaços, pervertidos e meretrizes, o poeta, prostrado ao colo da jovem Berenice — senão não seria o Zé Alcides —, esgotava:
— Não tenho mais nada a fazer no mundo. Vou conviver com os peixes e as sereias, os corais e as algas, afinal, tudo o que vive se acaba, tudo que foi criado terá fim!
— Morreu o poeta maldito; bendito seja o poeta! — gritava um louco, enquanto Santana do Acaraú fechava os olhos, deixando os moradores às escuras...

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José Alcides Pinto (1923-2008), o poeta maldito, nasceu no povoado de São Francisco do Estreito, Santana do Acaraú, Ceará. Abandonou empregos públicos para se dedicar à literatura. Autor de O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e Diário de Berenice, dentre outros. Alguns dos trechos do texto foram adaptados da obra de Zé Alcides.

(Especial para O Povo - www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/796778.html)

Raymundo Netto. Só. Contato: http://mail-b.uol.com.br/cgi-bin/webmail?Act_V_Compo=1&mailto=raymundo.netto@uol.com.br&ID=IxkP56wNWz8cUQFvZGgVsY5jwYRGR6MZ0cDvJ6sr&R_Folder=aW5ib3g=&msgID=9081&Body=0
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domingo, 6 de julho de 2008

Poeta do Altiplano (Reynaldo Domingos Ferreira)


(Anderson Braga Horta)

Na poesia de Anderson Braga Horta, que agora estréia em livro, editando-se em Brasília, há, antes de tudo, uma inquietação pela forma.
Parece que a arquitetura e o traçado urbanístico desta cidade – que inspira o primeiro poema do livro – aprofundaram ainda mais, no poeta, a preocupação pela técnica e pelo apuro estilístico, já evidente em obras anteriores, que se conservam, porém, inéditas.
As palavras, na poesia de Braga Horta, procuram ser exatas, tão exatas que, em alguns poemas, se ressentem de uma abertura, um deslize, que o poeta não lhes permite jamais. Sente-se que ele as obriga a se ajustarem ao seu tom, procurando extrair delas tudo o que pode e tudo o que quer, na medida adequada ao seu ritmo lento, pausado e comedido. Dir-se-ia que, por vezes, faz falta, em tanto apuro técnico, aquele “desregramento de sentido” de que falava Rimbaud, em uma de suas cartas, sobre o jogo poético. O aprimoramento, entretanto, que Anderson dá à estrutura do verso, nos proporciona composições perfeitas como aquele poema retilíneo, que se intitula “Mão”:

Clara amanhece
Natura e canta,
liricamente
dilucular.

Crótalos clamam,
clarins ressoam,
sobre as cabeças
lírios revoam.

Nas veigas nuas
de ensolarar
incautas notas
tremulam no ar.

Langue, Natura
suspira, expira
no meio-dia
plenissolar. (...)

Nota-se, neste poema, a felicidade com que o poeta transmite as imagens que seleciona, dando-lhes, diríamos, uma fulguração, que permanece fácil em nossa memória:

Crótalos clamam,
clarins ressoam,
sobre as cabeças
lírios revoam.

Efeito mais ou menos semelhante, porém mais dinâmico e bem mais atuante, é o que Braga Horta extrai da primeira estrofe do poema dedicado à fundação de Brasília:

Antes do começo,
era o sertão, só e ríspido.
Vegetais cheios de ódio fitando os céus impossíveis
e apontando a terra sáfara.
Dedos torcidos de séculos.
Bênçãos dissimuladas sob a raiva.
Natureza virgem à espera da posse.

É uma “intensidade de expressão”, como disse Carlos Drummond de Andrade, através da qual o leitor não só vislumbra a imagem deste planalto esquecido, que antes era, como participa também de sua milagrosa transformação, feita por “mãos nodosas / magras mãos / mãos rudes / mãos férreas / mãos”. E vem ainda do poema o cheiro forte de terra, quando do preparo do terreno, que daria nascimento à cidade:

Cresce uma pétala na rosa-dos-ventos.
Desviam-se para Oeste os rios do orvalho,
de que o asfalto, o aço, o concreto,
o abstrato,
tudo é resíduo.
Cruz resumindo sacrifícios,
avião demandando o futuro.
Símbolos.
Reais são os mortos, alicerces nossos;
real é o presente, imenso,
bruto
canteiro de obras.

O que dizer de um poema como este?
Anderson Braga Horta, a nosso ver, reconstruiu Brasília, em termos de poesia, numa forma insuperável. Seu poema, como esta cidade, tem cheiro, tem cor, tem luz, tem sons de eternidade. E, depois do altiplano, ele também inventou a noite, fez quatro sonetos em lá e falou assim do cordeiro e da nuvem:

Os homens plantaram no deserto ásperas maravilhas
Cogumelos de vidro abrem chapéus
de sol
Invertidas funções
chove
embaixo
uma fórmula nova
Os homens semearam medo e morte
de instantânea colheita

Mas no deserto onde só
mineral flora enseiva os caules
e umbelíferas cospem
na boca dos ventos
letal pólen
nasce um cordeiro
sob a nuvem atômica
(...)


(Publicado no Correio Braziliense, 30-7-71.)
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