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domingo, 10 de agosto de 2008

Sobrosso (Clauder Arcanjo)





















Ninguém me falou nada. Apenas imaginei tudo. Pelos olhos, pelas sobrancelhas arqueadas de todos ao entrarem. Minha mãe, coitada, parecia em pânico. O vestido escuro e as orelhas deabano mais se lhe ressaltavam o estado de temor. Meu pai, já dentro dos setenta, carregava nas costas o medo vetusto. Sem grandes esgares, sem maiores rompantes, mas tudo muito sólido, cristalino, presente em cada ruga do seu rosto. No entanto, Josefina Maria, nossa empregada, segunda mãe de todos nós, esta, pela mãe de Deus!, era um pote de pavor. Daqueles transbordantes. Digo pelas mãos trêmulas, pelos lábios roxos presos aos dentes, pela cabeça inquieta, nervosa, como se em busca de algo. Entraram e sentaram; ninguém dava por mim. De repente, levantaram-se, e passaram, em passos pesados, rumo aos quartos. Cabisbaixos, macambúzios, desligados do tempo, como se com as mentes a léguas. Na certa, presos na casa de Alzira, da pequena Alzira, afilhada dos meus pais. A morte prematura da prima pusera um receio incomum em cada canto da nossa morada; e, naquela noite, eu dormi sozinho, a sonhar com fantasmas. Ao acordar, a cidade ainda dormia, e pude perceber que urinara na rede, como há anos não o fazia. O sobrosso levara-me de volta à infância, em passos céleres, e numa longa mijada, naturalmente.

clauder@pedagogiadagestao.com.br
Publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 3 de agosto de 2008.
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terça-feira, 5 de agosto de 2008

O retorno (Belvedere Bruno)


















Aguardava, mais uma vez, seu retorno. Sabia que, num dado momento, ouviria sua voz, a princípio, fingindo indignação para, aos poucos, amaciar, tocando de mansinho todo meu ser. Por meses, acalentei o desejo do reencontro, mas me afligia o passar dos dias. Seria um teste para meus limites? Nada havia ocorrido fora do normal, em se tratando de brigas de casais. As mesmíssimas discussões, por vezes tolas e sem sentido. Fato corriqueiro nesses quinze anos de relacionamento. Ela voltaria. Claro que sim! Estava cheio de certezas, mas, mesmo assim, decidi procurá-la. Sim, eu nunca tivera orgulho, pois meu amor ultrapassava quaisquer barreiras imaginárias.Tracei estratégias e, embora mantendo a esperança, sentia que alguma coisa estava fora dos eixos. Não sabia exatamente o que. Como era difícil viver sem sua presença! Era como se fosse parte de mim. Por onde ela andaria?
Sentado à mesa de um bar, cercado por amigos e alheio à conversa ao redor, eu olhava para o vazio, refletindo sobre os descaminhos da vida, quando, subitamente, alguém me tirou daquele estado. Era ela, sentada sozinha a uma das mesas. Aproximei-me, colocando as mãos sobre seus ombros e, com decisão, levantei meu rosto, como se perguntasse: "o que está havendo?" Poucos segundos bastaram para sentir que empreendia uma viagem que não me levaria a lugar nenhum. Um homem chegava, abraçando-a ternamente. Senti-me invisível. Ele parecia ocupar, de forma definitiva, aquele lugar, que hoje vejo, a despeito do tempo, nunca fora meu.Virei-me, sem que nenhum de nós pronunciasse palavra, mas seu semblante, ao lado daquele homem, resplandecia, como nunca havia visto no decorrer de nossos dias... Senti o baque e, com ele, a doída e nunca pressentida certeza do nunca mais.
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