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quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Eu sou aquele que come as flores do aniversário (Túlio Monteiro)


Refratário aos mistérios e enigmas do encantado, em atração constante pelo mito, pela magia, pelo difuso, pela penumbra da inconsciência, possui a grande ciência do texto lírico, belo, inovador e ousado. Travestido de compadre do diabo, é, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis.
Finge regar os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar as graças de Deus.
(Juarez Leitão)


I
Sábado Cedo!
Como de costume, levanta-se esticando músculos e ossos já utilizados, amiúde, por mais oito décadas. Passara a noite nu, porque o nu nunca lhe fora mais que beleza, liberdade corpórea, utilização da carne em prol da satisfação mútua dos corpos que, um dia, acolheram o seu em alcovas muito ou nada corretas - o que definitivamente não lhe importava - já que sexo nunca nada lhe mais fora que o prata emanado das estrelas e luas do caleidoscópio estridente de gozos bramidos noites adentro, pois todo homem que não presta e se preza faz sua mulher perder a vergonha, gemer e voltar sempre aos seus braços e beijos. Pois como a Lua excita a mente dos loucos, desperta o ciúme e a paixão dos poetas, levanta o nomadismo dos ciganos e faz com que o assassino vislumbre de longe a sua vítima, assim as mulheres e os homens livres de dogmas puritanos conduzem seus pares à sublimação e ao clímax... a Eros e Tanatos.
Não se queixava mais da vida, apesar de já ter perdido todos os “bicos” que fazia nos jornais, andando agora doente, os nervos escangalhados, o coração dando arrancos, muitas vezes infligindo-lhe noites em insônias rebeldes que o levavam a pensar em crimes, suicídios e outras coisas absurdas, satânicas até.
Sim! A velhice havia-lhe chegado qual grades intransponíveis. Olhos mirados nos espelhos da escrita, enxergava-se agora espectro, um velho sem família, sem parentes ou amigos. Um trapo, um bicho indefeso atirado aos abutres amontoados em colinas pontiagudas e labirínticas que certamente ocultam dragões, herdeiros, talvez, daquele que habitou - e por lá ainda durma pesado sono - as profundezas do Alto dos Angicos, pedaço do Ceará que o Coronel-garanhão Antônio José Nunes, em século já ido, arrebatou das mãos dos Tremembés.
Trinca-se o espelho da imagem envelhecida. Que se fossem, malditamente, para o mais abissal dos Infernos de Dante as lembranças de tempos, felicidades, sofrimentos e corpos passados. Valia-lhe mais o ali e o presente.
Oito décadas e meia pelo setembro que se aproximava, já tantas vezes havia sentido a morte roçar-lhe sobre os ombros com seu carrilhão de plumas eriçadas como a cauda de um réptil venenoso, que no mundo nada mais o assustava. Preferia repetir Fernando Pessoa e “exigir de si mesmo o que sabe que não poderia fazer. Pois não é outro o caminho da beleza”. Ou Byron, “onde todas as coisas que nasceram, só nasceram para morrer. E a carne é uma erva que a morte ceifará”.

II
A manhã daquele sábado já deslizava para a tarde quando decidiu sair, deixando de lado o passado remoto que sempre teimava em aborrecer-lhe com coisas que só lhes serviam de entrave na vida. O dia estava quase pelo meio e flanar pelas ruas com ou sem saída da velha Gentilândia seria o remédio maior para o tédio que o invadia. Era o revelho dragão que mais uma vez deixava a Vila Cordeiro para serpentear os ares da cidade que escolhera para servi-lhe de caverna.
Vôos tranqüilos rumo ao centro da cidade, quase nunca repetia percursos, algo assim sem querer deixar pistas, rastros aéreos de seu Norte Verdadeiro: a Literatura! E como escrevia furiosamente bem aquele sábio dragão, riscando os céus da prosa e da poesia com a maestria pertinente apenas aos guardiães da literariedade de primeira linha.
Entretanto, no final daquela manhã de sábado, o monstro fabuloso resolveu parar seu bater de asas e mergulhar em direção ao chão. Seguiria andando, podendo, assim, ver e rever velhos conhecidos que lhe cumprimentavam quase em reverência sempre que seus pés e braços alados tocavam o solo infértil e relegado aos desprovidos de almas poéticas. Nessas horas, transmutava-se em humano, disfarçando-se para não dar na vista, nem ser perseguido pela legião de admiradores que arrebatara desde seus primeiros anos de escrita.
Entretanto, desistir de seu vôo e descer ao solo tornou-se erro fatal. Ao tentar mudar de calçada, não percebeu que em sua direção um outro dragão se aproximava impiedoso, alta velocidade, urrando em vôo rasante e nefasto.
Foi pego com a guarda baixa o maior dos dragões brasileiros.
A pancada sofrida por seu frágil disfarce humano lançou-lhe longe, o asfalto como campo de batalha recebendo gotas de seu sangue real. Sem lhe dar chances de defesa, seu algoz o atingira em cheio no tórax e cabeça, incapacitando-o de ruflar asas e voltar à sua toca, onde certamente curaria as feridas como tantas vezes já ocorrera em combates passados.
Estava ferido de morte, o monstro áleo de Santana do Acaraú.
Ainda transmudado em corpo de homem, foi levado a hospitais onde bravamente agonizou por mais quase um dia, sob os cuidados dos sinceros amigos que sabiam de sua secreta identidade. Outros de sua estirpe? De uma casta linhagem que atravessou os séculos misturando-se entre homens comuns para acalmá-los nas horas de mais angústia e ânsia por poesias e um pouco de paz? Nunca saberemos!
Foi sepultado, como era de seu desejo, em solos da Fazenda do Dragão, encravada nas terras de São Francisco do Estreito, onde, segundo narra certa lenda, ele nascera em forma de gente.
Naquela mesma tarde, dizem os que por lá estavam presentes, um vento Aracati insistentemente soprava aos ouvidos dos iniciados um poema há muito escrito pelo Dragão que se fora:

O menino jaz atropelado:
Nossa Senhora salve o menino!
Deixe que eu morra em seu lugar.
Deixe que eu morra por ti, menino.
Deixe que eu morra atropelado.
Nossa Senhora Salve o menino!... *


* Desastre às 13h e 30 min. In: As Tágides, (2001), de José Alcides Pinto.
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Belíssima Cangalha (Reynaldo Domingos Ferreira)



É difícil ficar indiferente ante o lirismo da prosa de José Humberto Henriques, em CANGALHA, romance dedicado ao varal dos ventos ou das ventanias, que narra a saga familiar dos Assunção, desde seu patriarca – Major Fernão Zulião – bandeirante deixado no caminho, porque atacado de febres, em terras confluentes de Minas e Goiás, até Jerome da Cangalha. Este narrou ao autor como foi que o pai, Prospério Coladino Assunção, deixou-lhe a vida de certa forma madrasta, de certa forma até que doce, de certa forma nada.
Escrito, como se vê, em estilo barroco, com fortes inclinações para o fantástico, CANGALHA mostra nosso homem do interior, dotado do furor ingenii - de acordo com alguns mestres do barroquismo - pelo qual desenvolve o egocentrismo, que o leva à melancolia, à solidão e à falta de atrativos para continuar vivendo. Nessa perspectiva, pela linha narrativa, vê-se então um universo de temas opostos, que se confrontam entre o sublime e a realidade às vezes mais repulsiva do homem, como é do espírito barroco.
Não é de se estranhar, portanto, como advirto, que alguém, furtando-se à força do lirismo da narrativa e de seu propósito religioso, considere o livro grosseiro e de passagens asquerosas. Tem-se de estar preparado para tudo diante de uma obra desse porte, dessa envergadura, em que autor joga com a ambigüidade, admitindo influência do escritor inglês, Laurence Sterne (1713-1768), um dos criadores do romance moderno, que não só explorava o jogo de palavras, como também usava pontuação de ordem muito pessoal.
O autor revela, à guisa de prólogo, que a história da família Assunção lhe foi narrada por Jerome da Cangalha, filho bastardo, mas depois legitimado em cartório, de Prospério Coladino Assunção, de quem não só herdara semelhança física – o que se podia comprovar por um retrato que trazia no bolso – mas também as possessões de terras situadas às beiras do Arapuá, chamadas inicialmente de Fazenda Patativa, mudadas mais tarde para Maracangalha e, finalmente, para Cangalha, que passou a ser assim alcunha de Jerome.
E o que era a Cangalha? Pode-se dizer na maneira arrevesada do autor, que tirante os arredores muito juntos do Arapuá, era uma palma de mão, um estirão de planície muito comportado de declives, sendo preciso esclarecer-se, entretanto, que ia além dos dois mil hectares, quando inteira, nos tempos de Jerome, situada pelos lados de Abaeté, Patos e Paracatu, próxima, portanto, à atual Brasília. Era, na verdade, uma imitação de planície que podia ser chamado de brinco de terra. Gema. Por sua vez, os acidentes - morrotes e murundus, pirambeiras e esbarrancados, tabocais de brejo, lasca de cascabulho, corte de lajedo, faixas sem água, outras com sobra, as veredas vertenciais, os capões de mato e capoeira, os espigões espichados e pesados de capim gordura – eram todos muito sinceros de tamanho, como o autor descreve.
Confesso que, ao conhecer pela prosa vibrante e poética de José Humberto Henriques a belíssima Cangalha, com seus incríveis personagens, não tive como deixar de lembrar da Jacuba, fazenda entregue à decadência, ao marasmo, que eu costumava visitar a cavalo, ao final dos anos cinqüenta, pra lá do Capão da Onça, no Triângulo Mineiro. A sede era um casarão antigo, ao estilo colonial português, de alicerces de pedra tapiocanga, esteios de aroeira e adobe, com grandes portas e janelas, estas distribuídas tanto para o nascente como para o poente.
À entrada da fazenda, havia uma grande e secular gameleira, sob cuja sombra amarrávamos – eu e meu cunhado - os animais, ao lado dos carros de bois sempre encostados. No topo da escada de pedra do casarão, à soleira da porta de entrada, nos aguardava Zé Onofre, herdeiro das terras da Jacuba, homem de rompante, tipo viril, queimado do sol que, pela constituição física, magra, esguia, dava mostra de não ser um acomodado, mas afeito ao trabalho duro do campo.
Não se compreendia, portanto, pela compleição do proprietário, por que as terras da Jacuba, de massapé bruto, se mostravam tão abandonadas. Ante minha indagação, meio que fechando o olho esquerdo para espantar a fumaça do cigarro de palha, Zé Onofre se queixava da eterna falta de crédito para tocar a lavoura, de dívidas que se acumulavam, de ano para ano, junto ao Banco do Brasil e, com a lerdeza da prosa dos mineiros, debulhava uma série de outros reveses que o impediam de tornar as terras produtivas, como teriam sido no passado, segundo notícias trazidas ao presente pelas fotos colocadas nas paredes e sobre alguns móveis de seus bem situados antepassados.
A mulher de Zé Onofre, tímida, medrosa, acuada, raramente aparecia na sala para nos cumprimentar ou dar boas-vindas. A água e o café ralo, de sobra da borra adormecida no coador, como desconfio, eram servidos pela criada sobre a qual o proprietário parecia ter também completo domínio. Pois a prosa de José Humberto Henriques me traz de repente senão a reconstituição da arenga do Zé Onofre – destituída certamente dos ornamentos literários da do escritor – pelo menos o ambiente tradicionalista, reacionário, da Jacuba, que, ao que suponho, ao longo desses anos, em nada deve ter mudado.
Além disso, percebo que, como Zé Onofre, com quem eu costumava ficar horas conversando, o autor de CANGALHA, embora afirme que não deve um homem de pronto demonstrar um prazer, pois lhe fica a alma superficial, não consegue dissimular a nostalgia que também sente de seus tempos de infância, que guarda como se fora uma de suas mais secretas obsessões. Haverá por sinal, acredito, um dia, estudiosos da obra de José Humberto Henriques que se deterão especificamente na questão do relacionamento dele com os seus personagens. Pois, ao que se observa, existe um conflito latente entre eles, não se sabendo delimitar, com precisão, qual é o território de um e o dos outros, gente com seis dedos nas mãos, de pregas entre os dedos, um testículo, três testículos, duas cabeças no desavergonhado, papos, manchas nos rostos, mamas sob as axilas e outros aleijões de metafórico alcance, como observa Hélio Pólvora, na boa apresentação do livro.
É bem possível que neste caso específico as palavras do escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), em um de seus textos autobiográficos, encontrem algum sentido, quando o autor de “O Lobo da Estepe” diz: Quase todas as obras em prosa que escrevi são biografias da alma e nenhuma delas se ocupa de histórias, de complicações, nem de tensões. Pelo contrário, todas elas são basicamente um discurso no qual uma pessoa singular – aquela figura mítica – é observada em suas relações com o mundo e com o seu próprio eu.
De fato CANGALHA é basicamente um discurso em que o autor, essa pessoa singular, como diria Hesse, utiliza personagens fictícios - meras peças funcionais - para expor suas relações com o mundo e com o seu próprio eu, extremamente carente, a meu ver, de complementação, seguindo a linha existencialista, que acolho, do filósofo dinamarquês, Sören Kierkegaard (1813-1855).
Essa complementação - como é preciso observar - é de ordem metafísica, essencialmente mística, mas, na contemporaneidade, assume um tipo de inconformismo gerado pelo fato de o indivíduo se sentir como homem-fração, sem importância e sem propósito para si mesmo, senão como elemento constitutivo do corpo social. O que conta, como explica James Collins, em “El Pensamiento de Kierkegaard”, não é a qualidade do juízo e do caráter individual, mas da opinião pública, da pressão que ela exerce sobre cada um de nós.
Isso explica de algum modo, a meu ver, a opção de artistas contemporâneos, deístas e ateístas, pelo estilo barroco, tendo em vista o princípio de que as formas de expressão estão ligadas às formas de recepção. Esse poder da opinião pública atual fez ressurgir, portanto, o barroco, que já prevaleceu, na Península Ibérica, nos séculos XVII e XVIII, quando o poder despótico era exercido pela autoridade (Igreja, Estado, Sociedade). Como explica Ana Hatherly, em “A Experiência do Prodígio”, numa sociedade em que os desníveis de toda sorte eram enormes, e em que os detentores do poder eram praticamente onipotentes, seria preciso a todos (e proporcionalmente aos interesses em jogo) conquistar o favor dos poderosos, inclusive os do além, os do outro mundo.
As complicadas obras daquele período – como as de hoje, de leituras cifradas – se destinavam, portanto, a um público de “especialistas”, que se compraziam e se deleitavam ante suas formas originais, como atualmente o fazem alguns professores, mestres universitários, que se exercitam no esnobismo, isto é, em estéreis e prolixos comentários a fim de tentar explicar vazios simbolismos por eles sugeridos, inventados, extraídos dos mais corriqueiros procedimentos de inexpressivos personagens.
“CANGALHA”, de José Humberto Henriques, que tem registro das oberabas, é pois autêntico romance de estilo barroco, assim como o é “MEMORIAL DO CONVENTO”, de José Saramago, que, a propósito de narrar a história da construção de um convento em Mafra, no século XVIII, faz a crônica também da humilde e pobre família Mau-Tempo, lavradores do Alentejo, desde épocas muito distantes até a chamada “Revolução dos Cravos”, de 1974, sem esquecer a de outras duas famílias, a dos Sete Sóis e a das Sete-Luas.
Ambos os escritores não só retomam formas do passado - o barroco é pródigo em opções - como também inventam outras de cunho mais moderno, algumas abeberadas de cineastas que, no afã de épater les bourgeois – como dizem os franceses -, fragmentam histórias, personagens e subvertem por completo a linha cronológica das narrativas, que, de tanto uso, já se tornaram pouco originais. No caso do romance de José Humberto Henriques, por exemplo, há congelamento de seqüências, que são mais adiante retomadas, no desenrolar dos acontecimentos. É o que acontece, por exemplo, com a chegada do negrinho Miquilino, que tinha jeito especial de dizer o já dito, conduzindo um cego à fazenda do Major Fernão Zulião, pego defecando de cima de uma árvore, como é um quase costume dos mineiros do interior, insanos ou não.
Esse negrinho Miquilino é uma personagem especial, que atravessa três gerações dos Assunção, sofre as dores da família e por isso suporta de certa forma a estrutura da narrativa, muito bem arquitetada por sinal pelo autor. Foi testemunha do nascimento de Prospério em meio ao barro e à sujeira dos porcos, tendo prestado ajuda à mãe, Dona Oniça, a sair daquela imundície, levando-a, com a criança, para dentro de casa a fim de se lavarem, num episódio que, pela natureza do relato, lembra um pouco “SALÓ”, de Píer Paolo Pasolini (1922-1975). Miquilino se tornaria padrinho de batismo e de crisma de Prospério, que, por sua vez, se afeiçoaria muito a ele desde a infância. E com o padrinho, ao que se dizia, passaria a guardar semelhança, tanta, que os próprios pais, Joaquim Zodoaldo e Oniça, diziam, rindo a mais não poder, que parecia que o filho mamara em Miquilino. Foi ele, antenado nas novidades de fora, como assíduo ouvinte de rádio, quem escolheu o nome do caçula da família, Ueston Regildo, e acabou assumindo as rédeas da família depois da morte de Zodoaldo, primogênito do Major Fernão Zulião – figura dominadora do romance - cuja morte também ajudou a concluir.
É evidente que a impressão que causa uma obra, como CANGALHA, de característica muito própria – ao que ficou mais ou menos evidenciado, espero, neste breve comentário - é de ordem particular. É preciso reconhecer, porém, que se trata de amplo inventário dos costumes, das tradições, das crendices e superstições da gente do Triângulo Mineiro, desde os tempos da colonização portuguesa, como nunca, ao que me consta, se ousou fazer antes. Por isso é obra valiosa que coloca seu autor, José Humberto Henriques, entre os mais importantes escritores brasileiros da atualidade, embora, até o momento, pouco se saiba disso porque, neste país, pouco se lê. E menos ainda se divulgam obras desse nível, dessa qualidade. BELISSIMA CANGALHA!...
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