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sábado, 3 de janeiro de 2009

Soneto (Ailton Maciel)
















Et le voyant pleurer, je m'écriai:
Jeunne, homme,
Porquoi venir si triste en ce joyeux séjour?
Dis-moi pour te calmer le nom dont on te nomme!
Il me dit doucement: Je m’appelle l’amour.
Maurice Rostand
Numa noite calma de algidez cortante,
de tétricas visagens a vagar,
passava assobiando um viandante
entre insetos noctívolos a voar!

De repente... parou por um instante
e, tácito, ficou a meditar:
“Pra onde irei em passo ofegante,
“Se não tenho um casebre onde pousar!?

“Pra onde irei? Todos me querem um dia,
“depois me deixam assim sem pousadia,
“à procura de um lar sempre a errar?”

...E saiu a correr o viajor.
O seu nome reluzente era amor,
meu coração, coitado, era o seu lar.

Fortaleza, 14/2/65
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quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Eu sou aquele que come as flores do aniversário (Túlio Monteiro)


Refratário aos mistérios e enigmas do encantado, em atração constante pelo mito, pela magia, pelo difuso, pela penumbra da inconsciência, possui a grande ciência do texto lírico, belo, inovador e ousado. Travestido de compadre do diabo, é, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis.
Finge regar os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar as graças de Deus.
(Juarez Leitão)


I
Sábado Cedo!
Como de costume, levanta-se esticando músculos e ossos já utilizados, amiúde, por mais oito décadas. Passara a noite nu, porque o nu nunca lhe fora mais que beleza, liberdade corpórea, utilização da carne em prol da satisfação mútua dos corpos que, um dia, acolheram o seu em alcovas muito ou nada corretas - o que definitivamente não lhe importava - já que sexo nunca nada lhe mais fora que o prata emanado das estrelas e luas do caleidoscópio estridente de gozos bramidos noites adentro, pois todo homem que não presta e se preza faz sua mulher perder a vergonha, gemer e voltar sempre aos seus braços e beijos. Pois como a Lua excita a mente dos loucos, desperta o ciúme e a paixão dos poetas, levanta o nomadismo dos ciganos e faz com que o assassino vislumbre de longe a sua vítima, assim as mulheres e os homens livres de dogmas puritanos conduzem seus pares à sublimação e ao clímax... a Eros e Tanatos.
Não se queixava mais da vida, apesar de já ter perdido todos os “bicos” que fazia nos jornais, andando agora doente, os nervos escangalhados, o coração dando arrancos, muitas vezes infligindo-lhe noites em insônias rebeldes que o levavam a pensar em crimes, suicídios e outras coisas absurdas, satânicas até.
Sim! A velhice havia-lhe chegado qual grades intransponíveis. Olhos mirados nos espelhos da escrita, enxergava-se agora espectro, um velho sem família, sem parentes ou amigos. Um trapo, um bicho indefeso atirado aos abutres amontoados em colinas pontiagudas e labirínticas que certamente ocultam dragões, herdeiros, talvez, daquele que habitou - e por lá ainda durma pesado sono - as profundezas do Alto dos Angicos, pedaço do Ceará que o Coronel-garanhão Antônio José Nunes, em século já ido, arrebatou das mãos dos Tremembés.
Trinca-se o espelho da imagem envelhecida. Que se fossem, malditamente, para o mais abissal dos Infernos de Dante as lembranças de tempos, felicidades, sofrimentos e corpos passados. Valia-lhe mais o ali e o presente.
Oito décadas e meia pelo setembro que se aproximava, já tantas vezes havia sentido a morte roçar-lhe sobre os ombros com seu carrilhão de plumas eriçadas como a cauda de um réptil venenoso, que no mundo nada mais o assustava. Preferia repetir Fernando Pessoa e “exigir de si mesmo o que sabe que não poderia fazer. Pois não é outro o caminho da beleza”. Ou Byron, “onde todas as coisas que nasceram, só nasceram para morrer. E a carne é uma erva que a morte ceifará”.

II
A manhã daquele sábado já deslizava para a tarde quando decidiu sair, deixando de lado o passado remoto que sempre teimava em aborrecer-lhe com coisas que só lhes serviam de entrave na vida. O dia estava quase pelo meio e flanar pelas ruas com ou sem saída da velha Gentilândia seria o remédio maior para o tédio que o invadia. Era o revelho dragão que mais uma vez deixava a Vila Cordeiro para serpentear os ares da cidade que escolhera para servi-lhe de caverna.
Vôos tranqüilos rumo ao centro da cidade, quase nunca repetia percursos, algo assim sem querer deixar pistas, rastros aéreos de seu Norte Verdadeiro: a Literatura! E como escrevia furiosamente bem aquele sábio dragão, riscando os céus da prosa e da poesia com a maestria pertinente apenas aos guardiães da literariedade de primeira linha.
Entretanto, no final daquela manhã de sábado, o monstro fabuloso resolveu parar seu bater de asas e mergulhar em direção ao chão. Seguiria andando, podendo, assim, ver e rever velhos conhecidos que lhe cumprimentavam quase em reverência sempre que seus pés e braços alados tocavam o solo infértil e relegado aos desprovidos de almas poéticas. Nessas horas, transmutava-se em humano, disfarçando-se para não dar na vista, nem ser perseguido pela legião de admiradores que arrebatara desde seus primeiros anos de escrita.
Entretanto, desistir de seu vôo e descer ao solo tornou-se erro fatal. Ao tentar mudar de calçada, não percebeu que em sua direção um outro dragão se aproximava impiedoso, alta velocidade, urrando em vôo rasante e nefasto.
Foi pego com a guarda baixa o maior dos dragões brasileiros.
A pancada sofrida por seu frágil disfarce humano lançou-lhe longe, o asfalto como campo de batalha recebendo gotas de seu sangue real. Sem lhe dar chances de defesa, seu algoz o atingira em cheio no tórax e cabeça, incapacitando-o de ruflar asas e voltar à sua toca, onde certamente curaria as feridas como tantas vezes já ocorrera em combates passados.
Estava ferido de morte, o monstro áleo de Santana do Acaraú.
Ainda transmudado em corpo de homem, foi levado a hospitais onde bravamente agonizou por mais quase um dia, sob os cuidados dos sinceros amigos que sabiam de sua secreta identidade. Outros de sua estirpe? De uma casta linhagem que atravessou os séculos misturando-se entre homens comuns para acalmá-los nas horas de mais angústia e ânsia por poesias e um pouco de paz? Nunca saberemos!
Foi sepultado, como era de seu desejo, em solos da Fazenda do Dragão, encravada nas terras de São Francisco do Estreito, onde, segundo narra certa lenda, ele nascera em forma de gente.
Naquela mesma tarde, dizem os que por lá estavam presentes, um vento Aracati insistentemente soprava aos ouvidos dos iniciados um poema há muito escrito pelo Dragão que se fora:

O menino jaz atropelado:
Nossa Senhora salve o menino!
Deixe que eu morra em seu lugar.
Deixe que eu morra por ti, menino.
Deixe que eu morra atropelado.
Nossa Senhora Salve o menino!... *


* Desastre às 13h e 30 min. In: As Tágides, (2001), de José Alcides Pinto.
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