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sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Três (Viegas Fernandes da Costa)



I - O cheiro do poema

Deixar assim correr o tempo em meus dedos. Que quer este pássaro em meu quarto? Como ancorar este navio? Tecer de rendas ao som da vida, em uma tarde de verão. Por onde andarão as camponesas que um dia vi em meus sonhos de adolescente? Planger de violões no alto do morro, as redes arrastando os peixes de amanhã. Não conheço, porém, o cheiro do leito nascido dos úberes para meus lábios... sei apenas da cidade, da pequena cidade onde nasci, e deste gosto pasteurizado. Meus pés nunca me levaram ao alto da serra, e aquela estrada de terra que se perdia na mata, e que sempre desejei conhecer por completo, já não encontro mais. Assim, tamborilo duras falanges sobre o peito, esperando aquilo que deixei escapar, e sinto em meu rosto o azul de um céu empurrado pelo vento. Quero tocar aquele velho piano esquecido no canto escuro do teatro, o corpo tangido pelo espírito, e nu sair à rua, rodopiar de braços abertos em meio ao asfalto. O mundo secou, afinal, e cactos brotam dos olhos. Ainda é possível chorar... Assim ressuscitar a criança que corria descalça sobre a orla do mar, os bolsos cheios de areia. Compor a sinfonia do desejo do eterno. O feto embrulhado em seu próprio abraço. Na praça, o velho que grita, o Livro sob os braços. E há tantos fatos neste espaço! Há de se amarrar o bode à trave ali postada, as luzes cintilando em nossos medos. Vou correr, mas as pernas amputadas não se moveram e assim vejo fugir meus órgãos por entre os lábios: vísceras, veias, pulmões. Sou apenas este saco vazio pendurado sobre o cabide de ossos. Ainda assim, reconheço o cheiro do poema.


II - “Años de soledad”

Há tanto o som que ecoa escapa aos meus sentidos. Piazzolla toca em qualquer lugar distante, e faz-se sangue em minhas veias, por hora. Deixo seguir meus passos, meus pés adormecidos, e falanges cansam sobre as letras de um teclado. Que dizer? Há tanto mundo em meus ouvidos, tantos desejos, e tão pouco meu tempo: como Carmosina que suspira sobre as páginas dos seus livros, em espera e prece a Jorge que lhe devolva seu Amado. Ouço assim um saxofone que se anuncia baixinho, e cresce, como crescem as vontades ou a tela nas paredes da cidade no Cinema Paradiso. Saudade dos filmes proibidos que preenchiam minhas adolescentes madrugadas. Sinto-os como doce agonia acalentando minha memória. Caminhar é isto. No fim somos aquele personagem de Tarkovsky, em Nostalgia, que atravessa o leito seco da piscina com a chama de uma vela em suas mãos, afrontando o vento que insiste em nos fazer retornar ao princípio, os mesmos passos, o mesmo caminho, a mesma chama frágil em nossas mãos. Quando chegarmos, é porque terminou, e caímos. O que sobra? Somos, assim, sempre este milagre! Deus? Deus é um caso à parte! O mundo que nasce sob a sombra de uma Lua na alvorada de um tonitruante bandoneon. Talvez um tango, um tango a me levar tantas mágoas, mas danço apenas com as mãos. Meus pés engessados há muito silenciaram passos; amarrados, sabem que as maiores viagens independem deles. Assim, insisto no eterno epílogo, sempre uma vírgula e o desfiar de nova frase, o par de olhos sobre a nudez amante, uma promessa, uma saudade. Simples assim, como crer no credo que se desfia no mosteiro, como saber o texto um templo.

III – Pietá

N’“O Carteiro e o Poeta”, de Michael Radford, faz-se verso o som do vento nos rochedos, “as tristes redes do meu pai”. Em “Powaqqatsi”, Godfrey Reggio nos mostra a Pietá de carne e lama escalando a mina, a cabeça rachada pela pedra. A vida corre assim, entre bestas e amantes, como entender? A mão que planta a terra verga a planta, ceifa o caule, suga o sumo: há uma bandeira no alto do Himalaia, tremula onde ninguém vê, por agora; amanhã tremula um farrapo. Ouço, no entanto, os sinos na torre, os gritos da feira, os uivos dos cães. 10.02.1960 – 23.03.2008: está resumida uma vida, e o rosto na fotografia me sorri a sentença de que fujo. Gravo a eternidade em papel, em placas de bronze, em suportes digitais, e descanso para reler a fábula de La Fontaine: a cigarra, as formigas, e a promessa da fome no inverno; com que direito traumatizam crianças com La Fontaine? Hás de ser formiga, e assim não passas fome! Mentira, porque a função da formiga é dar de comer à rainha, e morrer! Mas esta noite não é cáustica não: retorno à velha poltrona que reinava no sótão do meu avô, às mãos o livro de Lobato e sua Emília. Como seria uma vida de sítio? – matutava. Trepar em árvores, banhos de rio, um Barnabé habitando as margens. O doce torpor de rememorar as noites de livros no sótão do meu avô, o adulto que não chegava em mim. Era o tempo em que ainda havia pés dispostos a correr, a chutar uma bola, a embrenhar-se nos matos da vizinhança. Hoje não há mais pés, tampouco há muita mão, desta resta muito pouco: uma sombra de dedos, uma palma sem alma. Suspiro! O medo de ser abandonado criança à porta da escola, no morrer da tarde: tic tac tic tac tuntum tuntum, e de repente a figura do pai que despontava na curva, o sorriso no rosto. Assim faz-se verso o tempo no sótão, o passeio entre os mortos, as lápides, os epitáfios. Faz-se verso o medo dos tantos trovões que preenchiam os verões e suas tempestades nas férias escolares. E isto que agora se faz verso, era então emoção e idílio. Mas cresceram-me os olhos, e por isso sei da Pietá de carne e lama, sei também de outras Pietás: as de carne e chama, as de fome e ossos, as de pedra vulgar. Sei das Pietás que se arrastam nas sarjetas e pedem esmolas, das Pietás que preenchem de buracos seus peitos tão parcos, e de tantas Pietás que o cinzel e o formão não cansam de compor. Mas no mosteiro persistem as rezas, e nos terreiros e nas capelas. Melhor assim. Ao fim estamos todos parindo um grande poema, um grande e único poema que dirá do vento nos rochedos, do eclipse lunar. É só o que nos resta.
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* Viegas Fernandes da Costa é historiador e escritor, autor de Sob a Luz do Farol (2005) e De Espantalhos e Pedras Também se Faz Um Poema (2008). Escreve no blog http://viegasdacosta.blogspot.com/ . Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.
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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Viagem ao universo africano (Adelto Gonçalves)

Para quem quer conhecer as literaturas africanas de expressão portuguesa Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários, de Rita Chaves, é um caminho seguro.




Reunindo textos que abrangem um esforço iniciado ao final da década de 1980, quando o interesse no Brasil pelas culturas africanas ganhou maior intensidade, e chegam até o começo do novo século, o volume é, porém, o resultado de um trabalho de três décadas de paixão pela literatura africana de Língua Portuguesa, pois foi em 1978, sob a orientação de Vilma Arêas, na Universidade Federal Fluminense, que a autora descobriu o seu caminho para o continente africano. Desde então, não se limitou apenas àquelas viagens interiores que se costuma fazer através dos livros, mas percorreu in loco a África do Atlântico ao Índico, tendo sido professora visitante na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, entre os anos de 1998 e 2000.