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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Realismo carnavalizado (Fernando Py)



O livro de Nilto Maciel é bem curioso. A cidadezinha de Palma, no interior do Ceará, recebe a visita de jovens estudantes brasilienses, justo durante o carnaval. É grande a balbúrdia: animais e homens se misturam, quase todos os homens estão fantasiados de bichos, e o bêbado Zuza se confunde todo ao olhá-los. É o começo da história, e o clima permissivo do carnaval reforça a estranheza da narrativa. O leitor se vê apresentado a um ambiente de luxúria, violência, humor e nonsense, descrito em cores realistas, mas de um realismo muito sujeito a ser atingido por uma sátira que o desqualifica, um realismo carnavalizado (no sentido definido por Bakhtin), onde nada do que ocorre pode ser como é descrito: por exemplo, a matança de cães, no início da quarta parte, não é para ser tomada ao pé da letra, pois os cães sacrificados voltam a aparecer no fim da história. Assim, verdade, invento, realidade e mentira podem ser vistos como sinônimos, duas faces da mesma moeda, tão iguais e legítimas que seria difícil, senão impossível, distingui-las. Servindo de pano de fundo ao desenrolar do entrecho, o próprio carnaval permite e alimenta os equívocos, sobretudo na quinta parte, onde uma coruja espia o sono de diversos personagens que sonham as coisas mais doidas e extravagantes. O romance termina com o capítulo único da oitava parte, passado num baile de “frenesi contagiante”, com danças, rebolados, mãos dos homens nas nádegas femininas, etc. o romance de Nilto Maciel pode ser encarado como uma sátira... a quê? Aos destemperos das pessoas durante o carnaval, quando se julgam livres para fazer o que quiserem, principalmente seguindo suas fantasias sexuais? À vida monótona dos povoados do interior – não só no Ceará? Ao próprio gênero romance, que aqui sofre desarticulações em uma narrativa até certo ponto desconexa? A tudo isto, nos parece. Nilto Maciel é um escritor de larga experiência na criação de tipos e ambientes. Carnavalha, com seu sentido alusivo, desde o título (que pode se decompor em carne, carnaval e navalha), fornece o possível aproveitamento de palavras isoladas, como faz o bêbado Zuza no último parágrafo, e previne o leitor para o lado puramente humorístico da trama. Vale a pena ler e reler com atenção.
(Tribuna de Petrópolis, 23/1/2009, caderno “Lazer”, p. 5)
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sábado, 7 de fevereiro de 2009

Madrugada (Clauder Arcanjo)





















O sol, ao beijar os lábios da alvorada, lhe açoitava as carnes, a rasgar sua coragem, a matar-lhe o ânimo. E José Madrugada, oprimido e sem forças, recolhia-se no fundão dos seus despojos. O dia custava a passar. Se José se arvorasse dono de si, pondo os pés fora de casa, por sobre o mosaico de calor e luz, o látego zunia forte sobre as suas costas magras, uma dor habitava o seu corpo, e um grito pungente ganhava os ares da pequena vila. E a noite, então, era ansiosamente esperada. De olhos fechados, um rosário de prece a quebrar o silêncio dos seus lábios, antes exclusiva morada do rito da dor. Mas quando o ocaso chegava, Madrugada ganhava ares de ressurrecto, e um sorriso trigueiro assoviava dentro do seu peito.
— Salve, bendita noite. Salve, salve! — espalhava aos quatro ventos.
Quando a escuridão reinava, toda a pequena Licânia dormia, ao tempo em que ruas e vielas eram palco de ganidos lascivos, de luxúrias inomináveis. No adro da Matriz, uma jovem senhora era vista a rasgar as vestes, queimada pela insana vontade de ser possuída por José, carinhosamente saudado como Lobo da Madrugada. As mães oravam por suas filhas, tampando-lhes os ouvidos para que elas não ouvissem os uivos licenciosos na noite. E toda a madrugada era invadida pelo odor de um coito louco, fragrância que deixava os jovens entregues aos próprios desejos, e os velhos a rememorar libertinagens de outrora. Quando o sol beijava as nuvens da manhã seguinte, e o campanário convocava os fiéis para a missa das seis, os casais voltavam às ruas com ares sérios e circunspectos. Era chegada a hora de José Madrugada voltar para a sua sina, recolhido a um infecto quartinho escuro, até o império da nova madrugada.
clauder@pedagogiadagestao.com.br
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