Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
(Carlos Pena Filho, em Soneto do Desmantelo Azul)
Das roseiras que pouco plantei, gostaria de ficar tão-somente com as pétalas das rosas mais simples, daquelas que, caídas ao chão, são relegadas pelos enamorados, ou nunca atraentes para compor os buquês das vitrinas. Ou, quem sabe, com o perfume mais ocasional das begônias, e com os espinhos das flores mais murchas, a fim de espicaçar a tristeza das horas infindas. Das amizades as quais muito insisti, queria ter hoje o bálsamo das risadas loucas, folgança despretensiosa da conversa franca, e pouco, mas muito pouco mesmo, do atrito das querelas insípidas, do ciúme injustificável pela ventura de um amigo.
Das manhãs de inverno — gotejantes no telhado dos anos, raros momentos onde o destino me brindava com a lassidão da preguiça, junto com a dádiva de permanecer, quieto e mudo, na rede aquecida e cheirosa dos lençóis de Djanira —, me honraria muito o mero prêmio dessas lembranças, augustos momentos que eu, infelizmente, não fui digno de eternizá-los.
Dos banhos de rio — mergulhos no Acaraú da minha província, no olho do remanso da Licânia dos meus fantasmas —, ousaria pretender, pela última vez, a falta de fôlego da ousadia maior de infante. Era quando pulava, de ponta-cabeça, do alto da ponte nova, orando para que o batismo da água me encobrisse o corpo, protegendo-me do possível perigo de uma pedra, temida, mas, graças a Deus, nunca encontrada.
Das viagens que pouco fiz, ficou, cá dentro de mim, a marca da primeira. Era o tempo do êxodo do garoto para a capital. A engenharia sonhada fazia-me necessariamente optar pelo desterro. No ônibus de linha, um halo de lágrima, e um gosto amargo nos lábios. Nos olhos dos meus pais, o silêncio da bênção trêmula. E, desde tal dia, carrego a pecha do degredo.
Das fantasias, aspiro à máscara de um pierrô teimoso, solitário e gauche, amigo do passe hesitante, adorador do gracejo de picadeiro, a arrancar o riso das faces por demais doridas. Rasgando as máscaras que vem encobrindo, há tempo, os rostos de velhos abandonados, de crianças envelhecidas, de namoros malogrados, de casais a fingir felicidade, ao tempo em que vivem mergulhados no vinho negro do rancor.
Da poesia, eu ficaria com o soneto de pé quebrado, escandido por um vate bissexto e desatento, que busca a melopéia inaudita na forja das lágrimas, na incandescência da impossibilidade, e sob o fole da pertinácia. Ao cabo, um poema a ferir o rigor da métrica, mas a trescalar a sândalo dos puros de coração.
Das utopias, eu, pelo menos agora, abriria mão. Ficaria tão-só com a fome que habita os olhos dos desesperados, dos incansáveis sonhadores, dos ditos e havidos como fazedores celerados. Há sementes de utopia por demais sobre a face da Terra, a tal semeadura é que vem sendo sobremaneira adiada.
Das aulas, dos colégios, das universidades, dos doutos do conhecimento, eu solicitaria a lição dos humildes, daqueles que soem fazer o que é entendido e decifrado na prática dos dias, no laborar da vida; e pouco, ou quase nada, entendem da teoria que não se eterniza em flores e frutos.
Dos jovens, queria apropriar-me da crença na imortalidade, aliás, melhor diria, do nem sequer imaginar a existência da Indesejada da gente. E, ao assim proceder, fazer, de cada ínfimo instante, uma celebração maior ao hoje, um tributo ao infinito que habita o nosso íntimo.
Das simpatias, eu evocaria a do primado da singeleza; singeleza que, para mim, só vejo existir, na sua forma pura, nos lábios dos que sabem emitir um riso de esguelha, mesmo ao serem trucidados pelo ferrão dos poderosos, ou sob a égide da (in)justiça oficializada.
Das borboletas, eu tenciono o vôo branco das menores e por deveras tímidas; das que não precisam da completa primavera para transmudar-se no milagre do vôo, nem muito menos abrem mão da cadência da lagarta na curta viagem no rumo da furtiva luz.
Dos desejos, eu pleitearia ficar com todos. Minha única herança. Em especial, o desejo mais azul, anseio dos que colorem de azul a quem nunca seria azul por jamais ter o azul nas pupilas. E se, mesmo assim, algum dia me encontrarem sem nada, que, pelo menos, me julguem louco, no entanto um louco que sonhou com o azul, quando outros, funéreos, morriam abraçados com a cor vazia do nada.
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clauder@pedagogiadagestao.com.br
Texto publicado no jornal
Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 25/03/2007.
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