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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Machado de Assis, segundo Jean-Michel Massa (Adelto Gonçalves*)


A dois anos do centenário de sua morte, nunca Machado de Assis (1839-1908) teve a sua obra tão estudada como agora. Uma das melhores coletâneas de estudos sobre a obra machadiana acaba de sair em volume duplo de 511 páginas referente aos nºs. 6-7 da Teresa — Revista de Literatura Brasileira, publicada pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), em co-edição com a Editora 34 e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

Coordenado pelo professor Hélio Seixas de Guimarães, autor de Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (São Paulo, Nankin/Edusp, 2004), este número especial de Teresa traz não só ensaios de estudiosos da própria USP como de universidades de fora, como Abel Barros Baptista, professor de Literatura Brasileira da Universidade Nova de Lisboa e autor de dois livros dedicados à obra machadiana, Paulo Dixon, da Pardue University, nos Estados Unidos, e Pablo Rocca, da Universidad de la República, no Uruguai, entre outros.

Na primeira parte, 13 ensaios discutem os contos de Machado de Assis, desde os mais conhecidos, como “O caso da vara” (1899) e “Missa do Galo” (1889) aos menos citados. Um dos melhores ensaios, sem dúvida, é de autoria do próprio coordenador, “Pobres-diabos num beco”, que trata da representação do artista e dos seus conflitos, concentrando-se na análise de “O machete” (1878), “Cantiga de esponsais” (1883) e “Habilidoso” (1885).

A partir desses contos e, especialmente, de “Habilidoso”, Seixas de Guimarães observa que muitas das questões introduzidas no romance machadiano a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) já faziam parte do universo daquelas histórias. “São questões relativas à dificuldade de relação com o público não apenas por causa do gosto anacrônico deste, mas também pela sua exigüidade e pelas condições precárias da comunicação do escritor com esse público”, observa o ensaísta.

Como diz o ensaísta em Os leitores de Machado de Assis, o romancista, na segunda metade do século XIX, sabia muito bem que escrevia para bem pouca gente, se levarmos em conta que, ao redor de 1900, os alfabetizados correspondiam a apenas 18% da população brasileira, dos quais apenas 2% eram capazes de comprar e ler livros. Como artista, vivia, portanto, num beco sem saída, talvez às voltas com a inutilidade de seu ofício, pois não existe nada pior para um escritor do que não ser lido. Tal qual o personagem principal de “Habilidoso”.

Outro grande ensaio deste livro é “Que reino é esse?”, de Eugênio Vinci de Moraes, doutorando em Literatura Brasileira na USP, que aponta para os ainda escassos trabalhos sobre as fontes italianas na obra de Machado de Assis. O autor procura reparar um pouco essa escassez com uma análise do conto “As academias de Sião”, cuja fonte é O príncipe, de Maquiavel, embora não referido explicitamente pelo contista. Para Moraes, a história, a exemplo de outros contos machadianos como “A igreja do Diabo”, de Histórias sem Data (1884) e “Um apólogo”, também conhecido como “A agulha e a linha”, de Várias Histórias (1896), pode ser lida como uma fábula, neste caso a respeito da natureza do poder e da luta para alcançá-lo.

Sem menosprezar, porém, os ensaios e resenhas que traz a revista — todos de qualidade superior —, o melhor mesmo da edição é a entrevista que o professor francês Jean-Michel Massa concedeu a Maria Claudete de Souza Oliveira no dia 13 de janeiro de 2006, em Paris, a partir de perguntas formuladas pelo professor Gilberto Pinheiro Passos. Massa, professor da Faculdade de Letras de Rennes, na França, é um dos principais pesquisadores da vida e da obra do escritor brasileiro e autor de Dispersos de Machado de Assis e de A juventude de Machado de Assis 1839-1870: ensaio de biografia intelectual.

Este ensaio, que constitui a tese de doutoramento de Massa defendida em 1968 na França, foi publicado em 1971 pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, mas nunca mais ganhou nova edição. É uma raridade só encontrada em grandes bibliotecas e constitui leitura obrigatória para a compreensão dos anos de formação de Machado de Assis. Tal é a procura por este livro em cursos de Letras das faculdades brasileiras que não há explicação para o fato de que nenhuma editora tenha tido, até agora, a perspicácia de reeditá-lo.

Na entrevista, o professor lamenta que Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, não tenha uma edição de sua obra completa até hoje. A melhor edição é a da editora Jackson dos anos 30, mas não reúne tudo do autor. A de Afrânio Coutinho, publicada pela editora Aguilar, diz Massa, tem centenas de erros e limita-se a três volumes, quando a edição completa deveria reunir de sete a oito.

Depois de provar que Machado de Assis não pertencia a um meio tão humilde como sempre pretendeu a crítica brasileira nem tampouco era gago ou epilético quando jovem, Massa descobriu, em Portugal, que sua mulher Carolina pertencia a uma família burguesa do Porto e foi namorada e cortejada por três poetas portuenses — Augusto Morais, Nogueira Lima e J. Cândido Furtado, que lhe dedicaram versos —, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro. Era irmã de Faustino Xavier de Novais, igualmente poeta, muito amigo de Machado de Assis, por intermédio de quem o escritor a conheceu.

Machado de Assis era filho de uma açoriana, que morreu quando ele tinha dez anos de idade, e de um pintor de paredes, que sabia ler e assinava o Almanaque Laemmert, mas vivia na casa de uma família rica, de fazendeiros cujas terras iam do Morro do Livramento até bem depois da atual Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Teve a proteção da proprietária, sua “madrinha”, que, provavelmente, financiou seus estudos, pois, com menos de 20 anos, escreveu um poema em francês, republicado por Massa em Dispersos de Machado de Assis (Rio de Janeiro, Ministério da Educação/Instituto Nacional do Livro, 1965).

Recentemente, saíram pela Editora Crisálida, de Belo Horizonte, dois livros de Massa. O primeiro, Três traduções por Machado de Assis, reúne textos inéditos de três peças francesas do teatro realista que nunca foram apresentadas no Brasil. O segundo, Machado de Assis tradutor, é um ensaio em que o professor retoma estudos nunca traduzidos no Brasil e produzidos há mais de dez anos. Segundo ele, Machado de Assis fez cerca de 50 traduções, das quais 15 estavam perdidas.

Massa contesta também um crítico brasileiro, Eugênio Gomes, segundo o qual Machado de Assis conhecia o idioma inglês ainda muito jovem. Para ele, essa afirmação precisa ser examinada. Machado de Assis conhecia bem o francês, como seria natural num intelectual do século XIX. Segundo Massa, o crítico, para afirmar isso, baseou-se numa tradução que o romancista fez de Oliver Twist, de Dickens, em 1870. Mas o professor francês provou que o tradutor utilizou totalmente uma das quatro traduções em francês de Oliver Twist que àquela altura estavam disponíveis no mercado. Como se vê, a entrevista de Jean-Michel Massa é imperdível para quem admira a obra de Machado de Assis.

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TERESA, REVISTA DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo/Editora 34/Imprensa Oficial do Estado de S.Paulo, nºs. 6-7, 2006, 511 págs. E-mail: teresalb@usp.br

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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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sábado, 21 de novembro de 2009

Carlos Emílio e as órbitas celestes (Nilto Maciel)

(Nilto, Carlos e Edson Cruz, num restaurante em Fortaleza)

Havia mais de dez anos eu tentava escrever contos. Não sabia a quem mostrá-los. Meus irmãos Ailton e Edinardo – bons leitores – não faziam restrições a meus escritos. Coisa de irmãos. Eu fazia. Ensaiava outras peças. Parecia-me muito difícil aquela tarefa. Depois de centenas de tentativas, selecionei os melhores. Apenas quatorze. O restante virou lixo. Pronto o livro, Itinerário, onde apresentá-lo ao público? Nas livrarias – aconselharam-me. Não, os livreiros não aceitariam expor um livrinho pobre, quarenta páginas, de autor desconhecido. Conversei com o dono de um bar, no térreo do edifício onde eu trabalhava, nas proximidades do riacho Pajeú. O que é lançamento? Não sei também, mas quero lançar meu livro no seu bar. Garanto boa despesa, cerveja e tira-gosto. E assim se deu, num sábado, meio-dia, de 1974.

No fim da festa, todos bêbados, diversos exemplares vendidos, apareceu-me uma figura estranha, cabeluda, roupas frouxas, livro debaixo do braço. Quem é? Uma escritora inglesa. Deixe-me ver: Mrs. Dalloway. Folhei o volume. Em inglês? Sim; você não lê inglês? Não respondi, encabulado. Nunca leu Virginia Woolf? Mudei de assunto. E assim conheci o jovem Carlos Emílio.

A partir daquele dia, iniciou-se nossa amizade. Ele me mostrava (ou lia) seus contos enormes, pedia opinião (não aceitava ser contrariado; só admitia elogios). Andava, para cima e para baixo, com seus manuscritos, seus contos mais novos, que lia com eloquência, onde quer que encontrasse um amigo ou um ouvinte: no saguão do cinema, no ponto de ônibus, num bar, numa esquina. Esses maus entendedores fugiam dele, mal o viam. Meia palavra do menino representava uma eternidade. Alguns desistiam do filme, outros pegavam ônibus errados, espavoridos. Diversos bares de Fortaleza se fecharam, aos poucos. Pois, se neles se sentava o futuro escritor, logo se esvaziavam. Eu não fugia dele, porque, embora obrigado a ouvir suas leituras demoradas, terminava ganhando um bom livro. Assim conheci Faulkner, Joyce, Proust e tantos outros.

Ele não lia apenas os próprios escritos. Lia também seus autores favoritos. Abria um ensebado The Sound and the Fury e se punha a ler: “In the midst of the voices and the hands Ben sat, rapt in his sweet blue gaze. Dilsey sat bolt upright beside, crying rigidly and quietly in the annealment and the blood of the remembered Lamb”. E parecia saber de cor uns e outros. Pois muitas vezes baixava a mão com a papelada ou o livro e continuava a falar. Olhos nos olhos, os lábios quase a tocar a face do ouvinte, como se quisesse se unir ao outro, penetrá-lo, possuí-lo. E respingava de saliva o rosto à sua frente, com seu hálito bom de criança sadia.

Percebida, logo no primeiro dia, minha indigência intelectual, não passava dia sem me emprestar ou presentear livros. Conhecia todo mundo: escritores jovens e velhos, jornalistas, artistas plásticos, músicos, compositores, atores. Apresentou-me todos os grandes nomes da literatura brasileira e estrangeira. Andava sempre com uma novidade debaixo do braço: em inglês, francês, italiano, espanhol. Falava-me de escritores europeus, ibero-americanos e brasileiros que eu não conhecia nem pelo nome. Você precisa ler D. H. Laurence. Sim. Cortázar. Claro. Lucio Cardoso. Perfeitamente. E ele mos apresentava e eu os lia. E conversávamos. Precisamos sacudir a literatura do Ceará. Como? Uma revista literária.

Carlos Emílio é o verdadeiro criador de O Saco. Organizou as primeiras reuniões de escritores, em 1975, com o objetivo de se fazer algo novo no Ceará. Escreveu e publicou em jornal a “chamada geral”, convite público a todos os que se dedicavam às artes. Marcou encontros em sua casa (de seus pais). Deu as diretrizes da publicação, embora eu me opusesse a quase todas elas. Convenceu Raposo e Jackson a participarem do empreendimento. Viajou por todo o Brasil à cata de reportagens, entrevistas, colaborações.

É um romântico, embora saiba tudo o que acontece aqui, ali, nos confins do mundo de ontem, hoje e amanhã. Muita gente não o leva a sério, por não ser um cidadão comum, não ser casado com mulher, não ter filhos, não frequentar igrejas e estádios, não cortar cabelo em cabeleireiro, não andar bem vestido. Às vezes parece mendigo; outras vezes, louco. Não cumpre horários e compromissos. Pode almoçar à meia-noite, tomar café-da-manhã no meio da tarde. Comparece às reuniões após seu encerramento. Telefona a amigos, de madrugada, para ler contos quilométricos. E acha tudo normal. Tão romântico é que dois de seus sonhos mais parecem alucinações: a volta dos suplementos literários em todos os grandes jornais brasileiros e a contratação de escritores para cargos públicos. Os periódicos fariam a publicação semanal (ou diária) de contos, poemas, romances. Para ele, os donos dos jornais só têm a ganhar com isso. Digo-lhe que literatura não interessa a esses empresários, leitores de jornais não querem saber de literatura, etc. Ele olha para mim, perplexo, horrorizado, como se eu fosse um inimigo dele. No outro sonho, os governos deveriam dar aos escritores emprego público. Com bons salários, para que os escritores não precisassem mendigar empregos em empresas privadas. Nada de assinar ponto, nada de chefe. Só uma mesa, o tempo inteiro para ler e escrever. Digo-lhe que isto é imoral, ilegal e impossível. Ele fala dos mecenas. E me chama de realista. Em duplo sentido: amigo do rei e ...

Fortaleza, setembro de2009.
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