Translate

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Romanceiro de Bárbara: Cantares de rebeldia (O Poeta de Meia-Tigela)

(Casa onde morou Bárbara de Alencar, na Praça da Sé, Município do Crato, Ceará).


Em homenagem aos duzentos e cinquenta anos de Bárbara de Alencar, nascida a 11 de fevereiro de 1860; e aos trinta anos do Romanceiro de Bárbara, de Caetano Ximenes Aragão (1927-1995).


Há trinta anos Caetano Ximenes Aragão publicava o seu Romanceiro de Bárbara, livro cujo título nos remete imediata e não casualmente ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. O autor parece querer estabelecer desde o princípio um paralelo entre os episódios da Conjuração Mineira tão magistralmente recriada em versos pela poetisa carioca, e a Confederação do Equador que, no concernente à participação do Ceará, teve na família Alencar alguns dos significativos protagonistas.
Movidos pelo descontentamento frente às medidas do então recente governo imperial de Dom Pedro I, camadas representativas de Pernambuco, da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará unem-se em oposição ao poder monárquico centralizador. Em nosso estado, depois de aguerridos combates, Tristão Araripe chega a empossar-se como Presidente da Província em 1824, no entanto pouco demorando como tal. A pronta e violenta reação das tropas legalistas leva-o à morte em combate, bem como instaura furiosa perseguição aos revoltosos, culminando com o fuzilamento, em 1825, dos mártires Azevedo Bolão, Ibiapina, Carapinima, Padre Mororó e Pessoa Anta — no antigo Campo da Pólvora, atual Passeio Público.
Se Bárbara de Alencar não esteve envolvida diretamente na intentona de 1824, foi figura emblemática em 1817. Não apenas “acobertara” as conspirações de seus filhos Tristão e José Martiniano (este, pai do autor de Iracema), mas alimentara o ideal revolucionário com sua força de — mais do que matrona — matriarca esclarecida do Crato. É o que atesta a carta-testamento do padre, médico e naturalista Manuel de Arruda Câmara: “A D. Bárbara de Crato, devem olhá-la como heroína”. Heroica seria realmente sua postura quando do fracasso, em apenas uma semana, dessa primeira experiência republicana cearense: assim como seus filhos, é presa e conduzida ao antigo Quartel de 1ª. Linha da capital, e encarcerada sem direito a regalia de qualquer espécie. Pelo contrário, viveria dias de extrema penúria até sua transferência por mar para a Fortaleza das Cinco Pontas em Recife e, dali para Salvador, onde finalmente fora libertada, após uma devassa que com seus respectivos sofrimentos e represálias, durara cerca de três anos. O retorno para casa não resultou, porém, exatamente numa alegria: com os bens tomados pelo Império, e o nome enxovalhado (os adversários políticos naturalmente aproveitando-se da ocasião para a disseminação de toda sorte de maledicência), tornaram-se uma espécie de “exílio domiciliar” seus últimos anos. Não se tem notícias do pertencimento de Bárbara de Alencar às insubordinações que se seguiram à sua soltura. Morre em 1832, a vinte e oito de agosto, aos setenta e dois anos.
Eis os fatos que servem de motivo à lírica de Caetano Ximenes Aragão e ao Romanceiro: escrito num período marcado pela agonia do regime militar e início da Abertura, o livro faz do canto a Bárbara um canto à liberdade. O que é simbolizado exemplarmente pela contínua aparição no poema da Ave da Madrugada que “canta de noite e de dia/ é sua maldição cantar/ cantares de rebeldia/ e aquele que ouvir seu canto/ nunca mais se concilia/ será sempre um encantado/ da ave da madrugada”. E que é revelado ainda pelo poeta no Posfácio à obra: “Este poema é uma metáfora sobre a liberdade. Nasceu em tempos de incertezas. Havia medo, exílio, prisões, torturas, homens e mulheres banidos. Bárbara Pereira de Alencar, primeira presa política do Brasil, na ordem do tempo, sofreu prisão, violência, maus tratos, exílio e teve seus bens confiscados. Mas resistiu e por isso e outras razões, é uma heroína marginalizada na História de nosso País”.
“Uma heroína marginalizada na História de nosso País”, diz-nos o poeta. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a diversos vultos tornados referências nacionais. Não deixa de ser verdade, se pensamos no espaço concedido a outros vultos tornados referências em nosso próprio estado. Não deixa de ser verdade se confrontamos o que representam as imagens de Bárbara de Alencar e seu filho Tristão Araripe, quando comparadas à imagem que atualmente exportamos como sendo a tradutora de nossa cearensidade: a de um Ceará não só Moleque, mas cuja molecagem vem identificando-se, gradualmente, com o baixo humorismo. Enaltecemos com orgulho a figura de um povo irreverente a ponto de vaiar o próprio sol. Mas diminuímos o valor dessa mesma irreverência quando a igualamos ao riso fácil resultante da piada mal-contada, reprodutora de preconceitos e estereótipos, incapazes de sugerir quaisquer maiores enfrentamentos do status quo. Forjamos cada vez mais a face de um povo que sabe rir (de si); porém, não será esse contentamento algo um tanto forçado, esgar ao invés de sorriso? Quando Caetano Ximenes elege Bárbara de Alencar motivo de sua poética, contribui para o resgate de outra fundamental expressão de nossa formação como povo: a expressão da luta, do confronto, do heroico e do trágico, igualmente cearenses.
Tomemos como simbólico o não nos ter chegado um registro, desenho, nenhum esboço sequer, dos rostos de Bárbara ou Tristão: e empreendamos o avivamento de suas feições, o avivamento de nossas feições, estimulando a presença de seu exemplo entre nós. Se Zenon Barreto soube representar a ausência de tal registro na estátua erigida em homenagem à “Guerreira do Brasil” (para lembrar a obra de Roberto Gaspar), soube também postá-la retilínea e altiva, conforme a vemos na Praça Bárbara de Alencar, na Avenida Heráclito Graça. Felizmente há sempre quem insista na representação de um Siriará combativo, e que sabe fazer da festividade, inclusive, um momento de exaltação dessa “outra face” de que falamos: é o caso de inúmeros anônimos. É o caso também de Maria do Amparo, que mantém um pequeno museu na Casa do Sítio Caiçara em que Bárbara de Alencar nasceu, no município de Exu, sem apoio governamental ou particular algum. É o caso de Oswald Barroso à frente do anual Cortejo dos Confederados; e agora do Maracatu Nação Fortaleza e seu tema “Bárbara Luz da Liberdade”.
Vejam que não é absolutamente necessário que tomemos a vida negativamente, por a assumirmos heroica e tragicamente: é condição maior do trágico, não a dor, mas a insubmissão ante um destino demarcado. Sorriamos, pois: não com escárnio, mas com a felicidade dos que se sabem encantados pela “ave da madrugada/ que canta de noite e de dia/ (...) cantares de rebeldia”.


“Bárbara era feita
de pedaços de brisa
certezas
e terra ensanguentada”

(Caetano Ximenes Aragão)
/////

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Labirinto de tramas em Inventário das sombras (Nilto Maciel)




Depois de estrear com o volume de contos Dulcinéia em Hollywood (2006), sob o nome Cherlanyo Barros, mostra-nos Renato Barros de Castro o romance Inventário das sombras (Fortaleza: Governo do Estado, Secretaria de Cultura, Expressão Gráfica Editora, 2009). A obra tem duas apresentações de peso: de Tércia Montenegro e Ana Miranda. Para a primeira, as personagens de Renato “transitam por uma Polônia antiga, com paisagens misteriosas e solenes”. Segundo a jovem e talentosa contista, o forte no romance de Renato é a fabulação. Ou as intrigas e aventuras. A maravilhosa Ana Miranda, que inventou Gregório de Matos, refere-se à urdidura do romance, aos momentos de intensidade dramática, às tramas que se entrelaçam, com suas semelhanças com o conto gótico. E Renato se espreme entre essas duas maravilhas do mundo literário, sem desaparecer.

Inventário das sombras se passa numa Polônia imaginária, com referência a algumas cidades, como Cracóvia, e localidades no campo. Três notas explicativas do autor ajudam o leitor a situar a história. Na primeira parte, os personagens Michal Nowak e Irena Kaminska se acham em Cracóvia. Ao tentar pagar o trabalho de pintora dela, que lhe havia feito um retrato, ela o deixa surpreso: “Em lugar dessas moedas, me mostre a cidade. Afinal, nada conheço aqui”. Não há muitas descrições de ambiente (“a velha igreja, cuja assimétrica e intrigante fachada”; “as arcadas de um velho prédio da Praça do Mercado, depois ao lado do soberbo Castelo de Wawel e até mesmo nos arredores, nas galerias esculpidas em sal de Wieliczka”). Há descrições, sim, do aspecto das pessoas fictícias. Pode-se ver até certa glamurização da figura feminina em Irena: “Sua boca era rosada, e seu olhar mais lembrava o das virgens e ninfas dos antigos quadros da pinacoteca da cidade”. E este parece ser o ponto de vista de Michal, enamorado.

Não há nenhuma alusão a fatos históricos ao longo da narrativa. Nenhuma data, nenhuma menção a acontecimentos políticos ou sociais. Assim, o leitor não sabe se a história se passa na Polônia de hoje, na Polônia socialista ou numa Polônia mais antiga. Talvez o romancista tenha querido se esquivar de tratar assunto tão polêmico como o das transformações sociais e políticas ocorridas naquele país e naquela parte do mundo após a aniquilação do regime dito comunista no leste europeu, tendo à frente a Igreja católica (cardeal Karol Wojtyla, depois papa, e o sindicalista Lech Walesa, depois presidente da república) na luta contra o comunismo. Personagens andam de trem, mas também de carruagens. Nenhuma referência a automóveis. Entretanto, em todo o romance o que mais sobressai é o empenho das pessoas por aquisição ou conservação de propriedades imóveis, causa dos principais conflitos da narrativa.

A princípio, o leitor se depara com apenas dois personagens (Michal e Irena) e tem a impressão de que a história se desenrolará em torno deles. Entretanto, já na página 17 ocorre uma brusca mudança de foco, com o surgimento de diversos personagens alheios a um e outro (para o leitor). Os primeiros são Elzbieta, Bozena e Stanislaw Fiodorini, pai de Elzbieta. A moça, a caminho de um casamento, “com o filho do mais rico proprietário de toda a cidade de Torun”. Bozena, enteada daquela, está interessada em salvar a propriedade onde moram. O narrador se refere a um jantar das duas na casa do tal homem rico, Jan Poznanscy, pai de Polak e Antoni. Este se interessa pela visitante jovem. Surge o primeiro conflito: e Alicja? Como se vê, em poucas páginas, uma chusma de personagens invade a história e toma o lugar dos supostos protagonistas. E se inicia uma intercalação de pequenos dramas: Michal volta à cena, numa gare, em busca de Irena, enquanto Bozena e Elzbieta (que não o conhecem) também viajam no mesmo trem. Dá-se, então, a aproximação deles, e os jovens dialogam.

Michal aparece como protagonista desde o início e pode-se até fazer uma conjectura: a de que ele fosse o narrador. O romancista teria mudado o foco narrativo, entregando a um narrador onisciente a missão de contar a história. Pois Michal volta ao papel principal logo no capítulo (ou parte) dois. A participação de Michal no entrecho, no entanto, vai, aos poucos, se desvanecendo. Até se tornar um personagem secundário, quase uma testemunha, ou um repórter.

Note-se a presença de servas na taverna de Piotr, onde Michal se hospedaria, na cidade de Zamosc. O que nos remeteria a uma sociedade pré-capitalista. Inicia-se mais um conflito. O dono da pousada se irrita com o viajante, ao perceber neste interesse em conhecer o “casarão da montanha de Zamosc”. E o expulsa. “Uma noite fria e tempestuosa o aguarda lá fora”. Sem saída, o hóspede pede desculpas e promete não mais tocar no assunto casarão. Entretanto, mais adiante, toca noutro assunto que irrita profundamente Piotr, ao perguntar por Irena. Mais uma vez consegue se livrar da frialdade da rua e termina acolhido. É quando surge outra personagem capital para o drama: a criada Jalanta. “Na primeira noite de chá, Jalanta chegou ao quarto trajando um longo vestido que lhe caía, vistoso, sobre as pernas roliças”. E o leitor se vê diante de ingredientes de um romance de aventura. Jalanta termina também narradora de alguns episódios, revelações e mistérios. Conta histórias ao visitante, como a da origem da família de Irena e a casa dos Sete Erros: “Há muito tempo, quando menos ainda construções e gente existiam em Zamosc, chegara aqui um forasteiro acompanhado de uma mulher, vindos de uma terra a qual todos desconheciam” (p. 43). Surge a figura de Cyprian Kaminski. O narrador faz um longo flashback. E o personagem Michal mais uma vez se mostra como estranho ao ambiente, um estrangeiro numa Polônia sombria, como se fosse mero espectador, testemunha de oitiva de histórias misteriosas, quase que alheias ao seu entendimento. A impressão que fica é de se trata apenas de testemunha ou de repórter perdido. Se narrador fosse (e poderia sê-lo), não passaria de narrador-testemunha.

Toda a narração é permeada de diálogos bem elaborados, com os tradicionais travessões e os verbos de elocução. Aqui e ali, uma descrição de ambiente ou de personagem, sempre necessários à composição do enredo. Renato aprendeu bem a lição dos mestres do romance, principalmente os europeus. Mas não se limitou a imitá-los. Um pouco de romantismo, um pouco de realismo, muito mistério, tramas bem urdidas, como num labirinto de ações, e temos um romance pleno de intrigas.

Fortaleza, janeiro de 2010.
/////