Não me perguntem por que fui cursar História. Não saberei responder. Bem como não saberei dizer por que, certo dia, pus na cabeça idéia fixa de escrever, publicar livro. Já lecionar, lembro-me, veio naquele sonho sonhado no sótão em que morava meu quarto, na casa dos meus avós, agora dilapidada pela cobiça familiar. Sonhei-me lecionando, coisa inconcebível na minha puberdade, aluno medíocre que era, e por isso não prestei muita atenção. Mas aconteceu sem programação: certo dia uma feira de profissões, a oferta do curso de magistério e um adolescente convencendo a família de que seria professor. Estamos aí. Quanto à História, não sei; literatura então, muito menos. Simplesmente aconteceu, como acontecem as coisas realmente importantes: uma lufada de vento, o pólen no infinito e a pedra no rio, petardo certeiro moldando um destino. Tchibum! E assim foi! Não cometerei o erro do dom.
O erro do dom... Sim, recordo-me de um artigo de Pierre Bourdieu onde este questionava o mito da predestinação. Aquela história de que “desde criança fulano já demonstrava suas inclinações para ser isto ou aquilo”. Nem isto, muito menos aquilo: em criança desejava apenas brincar e olhar o que se escondia sob as saias das vizinhas – tão bonitas! Nada mais. Mas conta a Dona Anneli - minha mãe - que eu era uma criança chorona e que, para aplacar lágrimas e berros, entregava-me exemplares da sua revista Pais & Filhos. Não os rasgava, como precipitadamente o amigo leitor, a amiga leitora, já deve estar supondo. Os dedinhos gordinhos da criança de então pegavam exemplar por exemplar e folheavam as páginas de trás para frente, com cuidado, os olhos se demorando nas ilustrações e nas fotos de outros bebês. Dona Anneli pendurando roupa no varal, olhar de soslaio, meu sorriso e meus olhos espantados, os dedinhos gordinhos tocando o papel. É certo, assim começou o desejo pelo impresso, este poder erótico que livros e revistas sempre exerceram sobre mim, tanto que os namoro na estante, nas pilhas sobre a mesa, nas vitrines das livrarias. Mas daí a dizer que estive destinado, desde zigoto, a plantar palavras, vai uma grande distância; que o digam meus professores de português, verdadeiros heróis.
Hoje, escrevo porque a vida dói, parafraseando o artista plástico Iberê Camargo, e é tudo! Quanto ao resto, construí-me leitor, palavra a palavra, livro a livro, como a máxima da galinha que enche seu papo comendo de grão a grão o milho. A vida dói, pois é! Talvez também isto tenha me empurrado à historiografia, da literatura a outra face da moeda, pois como escrevia, em crônica de 1877, Machado de Assis, “um contador de histórias é justamente o contrário de historiador, não sendo um historiador, afinal de contas, mais do que um contador de histórias”, e explica: “o historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio, e entende que contar o que se passou é só fantasiar”. Entender a cartografia da dor, talvez, e dialogar com o mundo, quem sabe? Novamente a lembrança do velho sótão onde morava meu quarto; a casa, uma mansarda que abrigava nos cantos do telhado pequenos depósitos de coisas velhas dos tempos de juventude dos meus avós e tios. Quartinhos quentes e escuros, teto baixo e inclinado, onde investia horas e horas das minhas adolescentes tardes de ócio fuçando naquelas malas...
Sim, aquelas malas de madeira, enormes, empilhadas no fundo do quartinho. Afastava as telhas para que o dia pudesse clarear os seus segredos: antigas cartilhas e cadernos escolares, as revistas Cruzeiro, as primeiras edições das Seleções e o número um da Manchete, traças, muitas traças, e os enormes negativos das fotos tiradas na antiga “América Box” – quem seriam os personagens nas imagens desbotadas e nunca mais reveladas? Então... também as cartas, de amor, de paixão, escritas em alemão e péssima caligrafia de homem do campo - meu avô - semi-alfabetizado , empilhadas a um canto, ao lado dos postais, das revistas em quadrinhos e dos almanaques de farmácia com suas propagandas de xaropes e laxantes. Ah... os almanaques! Neles descobri: como sofriam de sífilis os castos homens de antanho! Sífilis e prisão de ventre, que o digam os tantos anúncios! Mas como a casa, também este tesouro particular que escavavam meus olhos e mãos em segredo – proibida que era esta arqueologia pelo zelo de um passado desejado morto que cultivava minha avó – foi perdido na rapinagem familiar. Muito acabou no lixo reciclável, o que sobrou, sumiu. Ficaram mesmo foram estas lembranças de um arqueólogo mirim escavando o passado da família e o sentimento de sacrilégio: o devassar dos segredos esquecidos, das vergonhas escondidas. Naqueles quartinhos descobri o fascínio que o antigo exercia sobre mim, e me deixei seguir atrás dos ácaros, traças e manchas de mofo. E também nisto aqui estamos. Quixotescamente, sim, também nisto aqui estamos!
Afinal, eis onde me encontro, sobre o pangaré dos tempos que trota além das suas patas, os cascos soltos e perdidos em alguma curva lá atrás. Lecionar, historiar ou escrevinhar, todas faces deste mesmo Quixote montado nas utopias brotadas das sementes que o vento nos trouxe.
Pangaré sem viseiras, sem cascos, por isso aprender a pisar diferente. Não me arrependo.
Blumenau, 25 de junho de 2005
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* Viegas Fernandes da Costa, autor de "Sob a luz do farol" (2005), "De espantalhos e pedras também se faz um poema" (2008) e "Pequeno Álbum" (2009). Mantém o blog Saiba mais. >http://viegasdacosta.blogspot.com . Permitida a reprodução, desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra.
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