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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Meus amigos desses brasis (Nilto Maciel)

(Mimeógrafo)


Após a publicação de Itinerário (1974), criei o jornal Intercâmbio. Há algum tempo, eu mantinha contatos com diversos “nanicos” (pequenos jornais, mimeografados) de todo o Brasil. Comunicavam-se uns com outros, formando uma cadeia. Cada um divulgava os demais. E, assim, todos os “editores” (jovens escritores) se conheciam: de Norte a Sul, de Leste a Oeste. E com eles me correspondia. Não lembro qual deles conheci primeiro. Havia também pequenos jornais impressos em tipografia, conhecidos como “independentes” ou “marginais”. Aqueles publicavam apenas poemas e contos curtos, estes também tomavam posições políticas ou adotavam determinadas diretrizes ideológicas, de oposição à ditadura militar, eram legalizados e vendidos em bancas: Pasquim, Movimento (nele saiu um conto meu, em 19/4/76), Opinião, Abertura Cultural, etc.

O Jornal de Letras, dos irmãos Elysio, João e José Condé, criado em 1949, no Rio de Janeiro, é um caso à parte. Nele sonhava me ver publicado. No entanto, não conhecia os editores e colaboradores, nomes muito importantes para mim. Para me aproximar, passei a mandar notícias do Ceará literário. A primeira delas saiu em maio de 75 e se intitulava “Semana de estudos”. Como não se tratava de matéria assinada, ousei falar também de mim. E eis como se manifestou a cabotinagem mais deslavada: “o contista Fernando Maciel, que estreou com Itinerário, de forma auspiciosa, mandou originais de dois livros, também de contos, para editoras do Rio: A vida íntima de Mozart e O último dia de Pompéia.” Quanta tolice! No aposto bajulador (no caso, autobajulador) “de forma auspiciosa” e na própria informação (como se fosse notícia ou tivesse importância mandar originais para editoras). Na edição de julho daquele ano, os editores do JL me concederam mais espaço e publicaram as notícias por mim enviadas no mesmo bloco em que aparece Pedro Lyra, com citação de nossos nomes como correspondentes, embora com erro no meu. De qualquer forma, eu me tornara correspondente do mais importante órgão literário do Brasil. Na edição de setembro, o espaço reservado ao Ceará é assinado por Nilto Fernando Maciel e na de dezembro retirei o primeiro nome (não me decidira, ainda, por um nome literário).

Reconhecido como jornalista, em 76 publiquei notícias, artigos e até editoriais no Unitário, de Fortaleza. Pelo menos, dois pequenos artigos assinados: “A literatura cearense hoje” e “Os novos tempos da literatura”. E duas reportagens, também assinadas: “Medo do Quinze: a simplicidade em Raquel de Queiroz” (4/7/76) e “Di Cavalcanti: o pintor das mulatas”. Divulguei também crônicas, algumas sem assinatura (“Praça do Ferreira”), outras assinadas (“O rádio e os outros”, “Comerciária: realidade e sonho” e “O marceneiro”). A seguir, colaborei em periódicos de outras cidades, como O Popular e Folha de Goiaz, de Goiânia; Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro; Correio Braziliense, de Brasília; e Diário do Comércio, do Recife.

É desse período minha amizade com diversos escritores novos de todo o Brasil. A maioria deles nunca sequer vi, excetuados os brasilienses (não de nascimento, pois todos vinham de outros Estados). São daquele período Glauco Mattoso, Enéas Athanázio, Francisco Miguel de Moura e poucos outros. Com o carioca tornado paulistano Glauco mantive intensa correspondência durante alguns anos, ele com suas folhas mimeografadas, como Dobrabil, repletas de poemas e contos satíricos. Admiro nele o seu panbrasileirismo. Pois se tornou íntimo do velho Gregório de Matos, sem esquecer Cego Aderaldo e os violeiros nordestinos. O catarinense Enéas é anterior ao Saco e posterior ao apocalipse. Imaginava-o um tipo corpulento, de estatura gigantesca. Mas isso não me preocupava. Sobretudo porque jamais o veria. Não precisaria quebrar o pescoço para olhar em seus olhos. E se o visse? Pois ele costuma andar pelas bandas do Norte e do Nordeste do Brasil. É um desses seres que pensam o Brasil como um conjunto harmônico de povos desarmonizados pelas elites políticas e financeiras. E eu o vi em Balneário Camboriú, num dia de chuva. Quando o vi, não acreditei estar diante dele, aquele homenzinho quase miúdo. Pois o piauiense Chico Miguel (não gosta de ser chamado de escritor piauiense, mas brasileiro) é também miudinho. De olhos azuis, branco como uma vela. E alegre como o goiano Salomão Sousa. Conhecemo-nos desde os tempos das revistas Ciranda e Cirandinha, Intercâmbio e O Saco. Entretanto, quiseram os deuses que só nos víssemos em Havana, já em 2000. Bebemos muito, contamos muitas piadas, passeamos de triciclo e carro modelo 1950, sem jamais falarmos na Revolução Cubana.

Com os brasilienses mantive boa amizade nos anos em que vivi na capital federal, como Salomão Sousa, Guido Heleno, Emanuel Medeiros Vieira, Adrino Aragão e outros. O primeiro vivia na minha casa, e eu na dele. Jornalista por profissão, devotava-se a ler o melhor da literatura e a escrever poemas. Além disso, se dedicava a rir. Ria quando nos víamos, de alegria. Ria quando conversávamos, mesmo que o assunto fossem as guerras, as misérias humanas, os males do mundo. Rir para ele era (e deve ainda ser) uma forma de dizer: apesar de tudo, estamos vivos. Indicou-me e apresentou-me escritores de quem eu nunca me aproximara, como Robert Musil, eu que só conhecia Hoffmann, os irmãos Grimm, Thomas Mann, Goethe, Hesse e outros poucos alemães. Comprava tudo de bom e emprestava, sem receios. Falava de Goiás sem parar, numa saudade sem fim de sua terra. Íamos com muita frequência a Goiânia, para encontros com escritores locais, como Valdivino Braz, Miguel Jorge, Aidenor Aires, Brasigóis Felício, Alaor Barbosa, Yêda Schmaltz, Antônio José de Moura e Dionísio Pereira Machado, quase todos vindos dos tempos dos jornais nanicos.

O mineiro Guido Heleno é outro amigo daquele tempo. Participava de tudo: discussões, encontros, seminários. Sempre a contar piadas. Outro amigo do riso. O catarinense Emanuel Medeiros eu também conhecia (seus livros) desde Fortaleza. Grandalhão e de voz potente, assustava os mais raquíticos e tímidos. Entretanto, sua exaltação não o tornava áspero. Só o vi perder o controle emocional uma vez, quando um amigo nosso o ofendeu com palavras, num bar. Adrino Aragão, amazonense, também se iniciava no palco das publicações, com a mesma euforia dos outros. Depois foi perdendo o ânimo, como acontece com todos.

Fortaleza, março de 2010.
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terça-feira, 6 de abril de 2010

Uma Viagem na época dos Descobrimentos (Pedro Silva*)



Um sonho de criança

- Bartolomeu! Bartolomeu! – grita uma donzela formosa, com pouco mais de trinta anos.

Por todo o lado procurava, mas o seu filho não aparecia em sítio algum.

De repente, um franzino jovem surge. Tinha um olhar simpático. O cabelo despenteado. Mas a sua maneira de ser era delicada:

- Desculpe, mãe. Estava a brincar no riacho.

- Outra vez, Bartolomeu? Mas tu só te sentes bem junto à água?

O jovem, envergonhado, encolhe os ombros e responde:

- Por acaso… sim! – e corre a abraçar a sua mãe.

Estávamos em 1465 e Bartolomeu Dias, nascido em Mirandela, uma belíssima localidade transmontana, dava os primeiros passos na sua futura vida de navegador. Apesar de ter apenas quinze anos, já o seu pai o incentivava a seguir as pisadas de Dinis Dias, seu parente e também famoso navegador.

Mas o nosso Bartolomeu iria ser ainda mais famoso. Porém, nesta altura, ainda o não sabia.

Ao jantar, o seu pai, conhecedor por ser de poucos sorrisos e de poucas falas, dirigiu-se ao filho:

- Bartolomeu, tua mãe contou-me que passaste o dia junto ao riacho. É verdade?

- Sim, pai, é verdade. Perdoe-me. – e o jovem baixou a cabeça, em tom triste.

- Sabes que a vida não é só brincadeira, não sabes?

- Eu sei, meu pai, mas…

- E olha que a nossa vida tem sido de trabalho. Os sonhos são apenas para quando dormimos. A realidade é bem diferente quando estamos acordados. – afirmou o pai de Bartolomeu Dias.

- Desculpe, pai. Mas isto não é um sonho, eu serei mesmo navegador!

O pai não deixou de esboçar um pequeno sorriso. O empenho do seu filho era de louvar. Dentro do seu coração, o pai de Bartolomeu desejava que este conseguisse ser o mais famoso dos navegadores portugueses. Mas também sabia as dificuldades que o filho teria de enfrentar. “Porém, sonhar não custa”, pensava de si para si.



Vivendo um sonho

Pouco anos depois, Bartolomeu Dias despediu-se dos pais e rumou a Sul. O destino era a capital de Portugal, Lisboa. Era lá que todos os sonhos seriam possíveis de conquistar. Até então, passara os seus dias numa pequena povoação do interior do país. Nunca vira o mar, mas sonhara com ele todos os dias de sua vida.

Deslocou-se para Lisboa. Ali estudaria matemática e astronomia na Universidade de Lisboa. Mas, ainda antes de começar a estudar, a primeira atitude que teve ao chegar à capital foi deslocar-se à zona de Belém. A razão? Queria ver o local de onde as caravelas partiam rumo ao desconhecido.

“Que local magnífico!”, pensava Bartolomeu, olhando para tanta agitação. Eram marinheiros que se despediam das suas famílias. Eram vendedores que apregoavam os seus produtos. E, por fim, eram crianças que choravam de saudades ao ver a chegada dos seus pais ou que brincavam indiferentes a tudo o mais.

Com tudo isto sonhara o jovem Bartolomeu Dias quando, pouco tempo antes, partira de Mirandela rumo a Lisboa. Na viagem não parara de fazer perguntas a Dinis Dias, o seu parente que ganhara alguma fama ao comando de caravelas. Queria saber tudo: como se preparava uma expedição; quantos marinheiros levava a embarcação; e, mais importante, quando ele poderia participar. A tudo respondia Dinis com a sua calma de sempre. À última pergunta, respondeu-lhe: “na altura certa, chegará o teu momento de embarcar”.

Os estudos passaram a correr. Tudo aprendia a um ritmo louco tal a ânsia de largar terra firme e aventurar-se no alto mar.

Quanto os estudos terminaram, e auxiliado pelo seu familiar Dinis Dias, entrou na corte portuguesa. À sua frente estava D. João II. Assim que o viu, Bartolomeu ajoelhou-se. Era o seu rei que ali se encontrava. Portanto, mandava a educação que lhe fizesse uma vénia.

- Levantai-te. – afirmou o soberano.

- Obrigado, senhor. É uma honra poder estar aqui na tua presença. – disse Bartolomeu.

- O que quereis de mim? – perguntou D. João II, o Príncipe Perfeito.

- Senhor, eu gostaria… - a voz parecia não sair, dada a sua timidez. – Eu gostaria de poder participar na próxima viagem a África.

O rei pensou um pouco e respondeu:

- Pois bem, embarcarás daqui a dois dias, rumo a São Jorge da Mina, a nossa mais importante feitoria.

E assim foi.

Cruzando mares pela primeira vez chegou em 1484 ao local estipulado pelo rei. Ali esteve algum tempo, aperfeiçoando os seus conhecimentos marítimos e aprendendo os costumes locais.


A viagem de uma vida

Tão rapidamente ganhou experiência que, dois anos depois, o rei João II confiou-lhe uma importante missão: descobrir o Preste João das Índias. Desde há alguns anos que em Portugal se contava a história da existência de um rei muito rico que vivia na Etiópia. Esse rei, ao contrário dos reis que o rodeavam, era cristão. Portanto, poderia ajudar D. João II na conquista de novos territórios na África e na Ásia.

No entanto, este era o plano secreto.

Oficialmente, Bartolomeu Dias tinha como missão investigar as costas do continente africano. Isto para se tentar perceber se seria possível chegar à Índia por mar.

Nessa altura, em 1486, ninguém acreditava que fosse possível ultrapassar a zona conhecida por Cabo das Tormentas. Este nome havia sido ganho pelo facto de o mar ser muito perigoso e de muitos barcos ali terem desaparecido.

Mas Bartolomeu Dias não tinha medo de nada. Se o rei lhe havia solicitado essa missão, assim seria cumprida.

Na verdade, o navegador, que comandava duas caravelas, não chegou a encontrar qualquer notícia do mítico rei das Índias, o famoso Preste João. Porém, trazia relatos muito entusiasmantes para D. João II.

Chegado à corte, Bartolomeu correu para junto do seu rei e declarou:

- Senhor, é possível dobrar o Cabo das Tormentas. Eu sei!

- Mas como tal será possível, Bartolomeu? – perguntou o monarca.

- Acreditai em mim.

Perante tamanha demonstração de optimismo, o rei decidiu, uma vez mais, confiar no seu navegador. Apesar de todos os projectos concretizados pelos portugueses, a cada momento sentia-se a necessidade de ir um pouco mais além. E, neste momento, dobrar o Cabo das Tormentas era o maior desafio da nação. O rei sabia-o, tal como Bartolomeu Dias.

O dia da partida foi igual a tantos outros naquela zona de Belém do século XV. Muita tristeza misturada com enorme dose de esperança.

Se, por um lado, já se chorava de saudades do que estava para vir, por outro, havia sorrisos de expectativa em regressarem como heróis. Apenas Bartolomeu Dias se mantinha sereno. As histórias do passado não o atemorizavam. Os muitos barcos e vidas perdidos algures no Cabo das Tormentas, onde um gigante Adamastor afundaria as naus, não intimidavam o nosso Bartolomeu Dias. Ele tinha, do seu lado, a força da experiência e o poder fornecido pela crença nas suas capacidades. Estudara a geografia marítima do local durante alguns anos. Preparara-se enquanto comandante e enquanto marinheiro. Faltava, apenas, concretizar o seu sonho: tornar-se famoso honrando a bandeira de Portugal.

O mês de Agosto de 1487 marcou a partida de Lisboa. O dia estava solarengo. As almas dos marinheiros estavam iluminadas, quiçá do sol ou da esperança de um fruto radioso. Em Dezembro, alguns meses após a partida, chegavam à Namíbia. Era o ponto mais a sul que havia sido registado pelos portugueses. A partir daí, apenas o desconhecido imperava.

É então que o tempo deixa de ajudar. Uma violenta tempestade abate-se sobre a expedição marítima. Bartolomeu Dias manteve-se calmo, apesar do temor da sua tripulação. Voltava a pairar o medo de um acidente fatal. Durante treze dias andaram à deriva, procurando a costa, mas não a encontrando. Na verdade, ainda que não o soubessem, andavam bem perto. Passado algum tempo, aproveitando o vento favorável, navegou para nordeste. Sem saber, tinha concretizado um feito histórico, dobrar o Cabo das Tormentas. Porém, apenas viria a aperceber-se do que fizera na viagem de regresso. Ao regresso fora obrigado pela tripulação que, supersticiosa, temia pelo súbito aparecimento do mítico Adamastor. Mas nada disso aconteceu e quando perceberam que haviam cruzado o ponto mais complicado de África, todos se sentiram muito felizes. Lançaram os braços ao Céu, em jeito de agradecimento e alívio da tensão acumulada.

Ao regressarem a Lisboa foram acolhidos como heróis. O rei veio recebê-los pessoalmente e dar-lhes outra boa novidade: a partir daí, em homenagem aos bravos marinheiros, o Cabo chamar-se-ia da Boa Esperança, pois permitiria chegar à Índia por mar.

- Obrigado Bartolomeu. – disse o rei, olhando para o navegador entretanto regressado do alto mar.

- Senhor, apenas cumpri o meu dever.

Tanta humildade encerrava no seu coração.

E tanta vontade de servir o seu país. Assim como de estar junto à água, tal como quando era criança.

Pouco depois, partiu na expedição de Vasco da Gama, que viria a tornar real o Caminho Marítimo para a Índia.

E, em 1500, fez igualmente parte da missão de descoberta do Brasil, liderada por Pedro Álvares Cabral.

Tudo o que se seguiu ao feito principal, ou seja, o agora chamado Cabo da Boa Esperança, foi, para Bartolomeu Dias, apenas um justo acréscimo ao seu currículo de navegador.

Bartolomeu Dias foi a Boa Esperança que necessitávamos para tornar Portugal um importante país de comércio e de navegação marítima. Sem ele, provavelmente, não haveria, hoje em dia, tanto interesse na História dos Descobrimentos Portugueses…

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* Com mais de quarenta livros publicados, em países tão díspares quanto Portugal, Brasil, Espanha ou Chile, o autor português Pedro Silva (1977) tem, igualmente, produzido títulos em diversas áreas temáticas, tais como o ensaio histórico, a ficção, o roteiro turístico ou mesmo os contos. Para além disso, o escrito, tem-se dedicado igualmente a colaborar com diversos jornais portugueses, assim como revistas de História em Portugal e Brasil, tais como “História Viva”, “Desvendando a História” ou “Aventuras na História”.

Contacto: ps77@aeiou.pt
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