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segunda-feira, 12 de abril de 2010

O mundo sob o olhar feminino (Adelto Gonçalves*)



Neste começo de século XXI, a literatura produzida por homens encontra-se num beco sem saída. É difícil encontrar um não só entre brasileiros como entre estrangeiros que não faça imagens já conhecidas, o que não significa dizer que não existam grandes escritores. Não é isso. É que, como sabe quem já leu Virginia Woolf (1882-1941), Clarice Lispector (1920-1977), Nélida Piñon (1937), Marina Colasanti (1938), Agustina Bessa-Luís (1922) e outras tantas, as mulheres escrevem de uma maneira distinta. Costumam recorrer a imagens próprias, muitas vezes completamente novas, porque têm, naturalmente, outra maneira de olhar para o mundo, outra sensibilidade. É caso de Leila Guenther (1976), nascida em Blumenau, Santa Catarina, que acaba de estrear na literatura com o livro O voo noturno das galinhas, em que reúne 33 contos. Na maioria, são contos curtos — um, inclusive, dedicado à memória da poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983), quase um poema, que, de tão curto, pode ser reproduzido aqui:
"Eu também me mato todos os dias, às três horas da tarde. Depois volto às mesmas coisas de sempre até pensar de novo na minha próxima morte".
São contos escritos num estilo seco, de frases enxutas, diretas, que equivalem a retratos do cotidiano. Mas não são flagrantes fixados com essas modernas máquinas digitais em que toda a realidade é captada nos mínimos detalhes. É que, como diria Jaime Rest (1927-1979) em El laberinto del universo (Buenos Aires, Ediciones Librerías Fausto, 1976), a propósito dos contos de Jorge Luís Borges (1899-1986), vivemos em dois universos, que são análogos e co-extensivos, mas que ao mesmo tempo se opõem como a imagem refletida num espelho. Um é este mundo em que vivemos; o outro é o sistema de símbolos que utilizamos para interpretar o anterior. Um é real, o outro é fictício. Na definição de Rest, o fictício é a imagem registrada no espelho de nossa reflexão sistematizadora. O real, na medida em que o enunciamos e sistematizamos com palavras, converte-se imediatamente em ficção. Homens e mulheres, porém, o fazem de maneira diversa, como prova a literatura feminina, essencialmente introspectiva, deste último século em que as escritoras se assumiram e conquistaram seu lugar num mundo dominado amplamente por escritores, como se pode comprovar com o simples correr dos olhos por qualquer biblioteca acadêmica. Se homens e mulheres são diferentes no agir e no pensar, fatalmente, teriam de ser diversos nas estratégias retóricas a que recorrem para colocar no papel o que lhes corre no íntimo.
Quem duvidar que leia estes contos de Leila Guenther, que nada têm de uma autora estreante. Seus contos são produto de uma sensibilidade extremamente feminina, delicada, introspectiva, que recorre ao tom confessional para oferecer não uma história completa, mas apenas um momento dessa história, como se ao leitor fosse dada a oportunidade de completá-la com a experiência que os anos já lhe deram. Não é só. O estilo da autora, de repente, oferece preciosidades como esta frase que abre o conto “Passagem”: “Ajuntou suas coisas como se recolhesse as folhas caídas de uma árvore no outono”. Ou como a abertura do conto que dá título à coletânea em que o leitor surpreende a solidão de uma mulher enquanto seu homem não chega: “Passo bastante tempo examinando meus seios e como eles inflam quando inspiro. Desenvolveram-se quando eu já não crescia mais. Não há semente alguma no meu ventre para eles terem tomado essa forma quando já é tarde. É tarde e é bom que seja, penso.Assim, no tempo de minha cabeça, dividido entre peitos e pequenas coisas do cotidiano, apresso a volta de Lúcio (...)”.
Não se pense, porém, que este livro fica circunscrito ao universo feminino. Em “A fera”, um dos raros contos mais longos que ocupa quatro páginas, a contista entra no âmago de um homem solitário, austero, pouco sociável, “talvez até louco”, que convive com um ser estranho em sua própria casa, que lhe dá o mesmo trabalho que um animalzinho de estimação daria. Quem seria? Talvez um dos fantasmas que obcecam os ficcionistas e que, enquanto não passam da mente para o papel, não lhes dão paz. Em “Morfina”, outro raro conto mais longo, é de novo um personagem masculino que encontramos, um tipo fora do normal, louco manso, que lembra alguns personagens de Murilo Rubião (1916-1991). Em “Vinte anos depois”, uma mulher dentro de um ônibus remete para o conto “Amor”, de Clarice Lispector, em que uma dona-de-casa tem a sua rotina interrompida, ao ter de dentro de um bonde a visão de um cego mascando chicletes. A proposta, porém, é diferente: a personagem surpreende-se, ao ver a si mesma pela janela de vidro duas décadas mais tarde, “com o rosto mais murcho, os sulcos ao redor da boca mais vincados”.
Por falar em influências, a própria autora, no “Epílogo”, deixa suas pistas, ao compor um texto com frases extraídas de obras de Machado de Assis (1839-1908), Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Luis Borges, Albert Camus (1913-1960), Hermann Hesse (1887-1962), Salman Rushdie (1947), Clarice Lispector, Dante Alighieri (1265-1321), Raduan Nassar (1935) e Samuel Beckett (1906-1989). Uma lista para ninguém pôr defeito. Influências que só poderiam resultar numa contista já madura, consciente de sua arte, que estréia como se já fosse uma veterana no ofício.
Formada em Letras pela Universidade de São Paulo, Leila Guenther trabalha como revisora de textos na cidade de Campinas, interior de São Paulo, onde reside. Antes deste seu livro de estréia, só havia publicado contos em revistas, jornais de literatura e sites. Atualmente, faz mestrado em teoria literária na Universidade de São Paulo, estudando a obra da escritora russa Nina Berbérova.

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O VOO NOTURNO DAS GALINHAS, de Leila Guenther. São Paulo: Ateliê Editorial, 103 págs., 2006. E-mail: atelieeditorial@terra.com.br

* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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quarta-feira, 7 de abril de 2010

Meus amigos desses brasis (Nilto Maciel)

(Mimeógrafo)


Após a publicação de Itinerário (1974), criei o jornal Intercâmbio. Há algum tempo, eu mantinha contatos com diversos “nanicos” (pequenos jornais, mimeografados) de todo o Brasil. Comunicavam-se uns com outros, formando uma cadeia. Cada um divulgava os demais. E, assim, todos os “editores” (jovens escritores) se conheciam: de Norte a Sul, de Leste a Oeste. E com eles me correspondia. Não lembro qual deles conheci primeiro. Havia também pequenos jornais impressos em tipografia, conhecidos como “independentes” ou “marginais”. Aqueles publicavam apenas poemas e contos curtos, estes também tomavam posições políticas ou adotavam determinadas diretrizes ideológicas, de oposição à ditadura militar, eram legalizados e vendidos em bancas: Pasquim, Movimento (nele saiu um conto meu, em 19/4/76), Opinião, Abertura Cultural, etc.

O Jornal de Letras, dos irmãos Elysio, João e José Condé, criado em 1949, no Rio de Janeiro, é um caso à parte. Nele sonhava me ver publicado. No entanto, não conhecia os editores e colaboradores, nomes muito importantes para mim. Para me aproximar, passei a mandar notícias do Ceará literário. A primeira delas saiu em maio de 75 e se intitulava “Semana de estudos”. Como não se tratava de matéria assinada, ousei falar também de mim. E eis como se manifestou a cabotinagem mais deslavada: “o contista Fernando Maciel, que estreou com Itinerário, de forma auspiciosa, mandou originais de dois livros, também de contos, para editoras do Rio: A vida íntima de Mozart e O último dia de Pompéia.” Quanta tolice! No aposto bajulador (no caso, autobajulador) “de forma auspiciosa” e na própria informação (como se fosse notícia ou tivesse importância mandar originais para editoras). Na edição de julho daquele ano, os editores do JL me concederam mais espaço e publicaram as notícias por mim enviadas no mesmo bloco em que aparece Pedro Lyra, com citação de nossos nomes como correspondentes, embora com erro no meu. De qualquer forma, eu me tornara correspondente do mais importante órgão literário do Brasil. Na edição de setembro, o espaço reservado ao Ceará é assinado por Nilto Fernando Maciel e na de dezembro retirei o primeiro nome (não me decidira, ainda, por um nome literário).

Reconhecido como jornalista, em 76 publiquei notícias, artigos e até editoriais no Unitário, de Fortaleza. Pelo menos, dois pequenos artigos assinados: “A literatura cearense hoje” e “Os novos tempos da literatura”. E duas reportagens, também assinadas: “Medo do Quinze: a simplicidade em Raquel de Queiroz” (4/7/76) e “Di Cavalcanti: o pintor das mulatas”. Divulguei também crônicas, algumas sem assinatura (“Praça do Ferreira”), outras assinadas (“O rádio e os outros”, “Comerciária: realidade e sonho” e “O marceneiro”). A seguir, colaborei em periódicos de outras cidades, como O Popular e Folha de Goiaz, de Goiânia; Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro; Correio Braziliense, de Brasília; e Diário do Comércio, do Recife.

É desse período minha amizade com diversos escritores novos de todo o Brasil. A maioria deles nunca sequer vi, excetuados os brasilienses (não de nascimento, pois todos vinham de outros Estados). São daquele período Glauco Mattoso, Enéas Athanázio, Francisco Miguel de Moura e poucos outros. Com o carioca tornado paulistano Glauco mantive intensa correspondência durante alguns anos, ele com suas folhas mimeografadas, como Dobrabil, repletas de poemas e contos satíricos. Admiro nele o seu panbrasileirismo. Pois se tornou íntimo do velho Gregório de Matos, sem esquecer Cego Aderaldo e os violeiros nordestinos. O catarinense Enéas é anterior ao Saco e posterior ao apocalipse. Imaginava-o um tipo corpulento, de estatura gigantesca. Mas isso não me preocupava. Sobretudo porque jamais o veria. Não precisaria quebrar o pescoço para olhar em seus olhos. E se o visse? Pois ele costuma andar pelas bandas do Norte e do Nordeste do Brasil. É um desses seres que pensam o Brasil como um conjunto harmônico de povos desarmonizados pelas elites políticas e financeiras. E eu o vi em Balneário Camboriú, num dia de chuva. Quando o vi, não acreditei estar diante dele, aquele homenzinho quase miúdo. Pois o piauiense Chico Miguel (não gosta de ser chamado de escritor piauiense, mas brasileiro) é também miudinho. De olhos azuis, branco como uma vela. E alegre como o goiano Salomão Sousa. Conhecemo-nos desde os tempos das revistas Ciranda e Cirandinha, Intercâmbio e O Saco. Entretanto, quiseram os deuses que só nos víssemos em Havana, já em 2000. Bebemos muito, contamos muitas piadas, passeamos de triciclo e carro modelo 1950, sem jamais falarmos na Revolução Cubana.

Com os brasilienses mantive boa amizade nos anos em que vivi na capital federal, como Salomão Sousa, Guido Heleno, Emanuel Medeiros Vieira, Adrino Aragão e outros. O primeiro vivia na minha casa, e eu na dele. Jornalista por profissão, devotava-se a ler o melhor da literatura e a escrever poemas. Além disso, se dedicava a rir. Ria quando nos víamos, de alegria. Ria quando conversávamos, mesmo que o assunto fossem as guerras, as misérias humanas, os males do mundo. Rir para ele era (e deve ainda ser) uma forma de dizer: apesar de tudo, estamos vivos. Indicou-me e apresentou-me escritores de quem eu nunca me aproximara, como Robert Musil, eu que só conhecia Hoffmann, os irmãos Grimm, Thomas Mann, Goethe, Hesse e outros poucos alemães. Comprava tudo de bom e emprestava, sem receios. Falava de Goiás sem parar, numa saudade sem fim de sua terra. Íamos com muita frequência a Goiânia, para encontros com escritores locais, como Valdivino Braz, Miguel Jorge, Aidenor Aires, Brasigóis Felício, Alaor Barbosa, Yêda Schmaltz, Antônio José de Moura e Dionísio Pereira Machado, quase todos vindos dos tempos dos jornais nanicos.

O mineiro Guido Heleno é outro amigo daquele tempo. Participava de tudo: discussões, encontros, seminários. Sempre a contar piadas. Outro amigo do riso. O catarinense Emanuel Medeiros eu também conhecia (seus livros) desde Fortaleza. Grandalhão e de voz potente, assustava os mais raquíticos e tímidos. Entretanto, sua exaltação não o tornava áspero. Só o vi perder o controle emocional uma vez, quando um amigo nosso o ofendeu com palavras, num bar. Adrino Aragão, amazonense, também se iniciava no palco das publicações, com a mesma euforia dos outros. Depois foi perdendo o ânimo, como acontece com todos.

Fortaleza, março de 2010.
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