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quarta-feira, 21 de abril de 2010

A roupa e o monge (João Soares Neto)



Ninguém é obrigado a saber que a palavra “apple” não é apenas maçã, em inglês. Tampouco, lembrar de Nova Iorque, a “big apple”. Acontece existir uma empresa de informática que incorporou esse nome comum de quatro letras. Ela começou pequena, cresceu demais, teve crises e um de seus fundadores, Steve Jobs, já saiu dela. Depois, retornou. Não vamos falar de computadores, negócios, iPhone, hoje o carro chefe dessa empresa. Estamos interessados no detalhe. Pomos os olhos em uma foto atual da European Press-Photo Agency e vemos Steve Jobs de calça jeans, sem cinto, camiseta preta de mangas compridas e uma caneca (daquelas que o Jô Soares gosta de mostrar em seu programa) de café à mão. Pois bem, esse é o trajo oficial de Jobs, nada de roupas de estilistas, tampouco ternos ou casacos de animais silvestres. Steve poderia, é verdade, comprar tudo o que quisesse vestir, mas optou por essa maneira casual. Nos jornais brasileiros vêem-se empresários e executivos de lustrosos ternos, gravatas com cores fortes e sapatos de cromo. Sempre se disse que “a roupa não faz o monge”. Lembro: em 1965, o Concílio Vaticano II tornou opcional a batina ou “hábito” fora dos atos litúrgicos. Assim, esse ditado parece não estar valendo para o Papa Bento XVI que usa batinas, estolas e sapatos de marca, apesar da pobreza ser louvada e glorificada pela Igreja Católica. Voltemos a Steve Jobs. O seu temperamento forte, dinâmico e difícil foi surpreendido pela doença. Em 2004 teve de retirar um tumor maligno no pâncreas. Agora, em 2009, como seqüela da primeira doença, fez um transplante de fígado. Ele já era simples, porém abusado, ficou hoje, aos 54 anos, mais simples ainda. Tanto isso é verdade que, para substituí-lo – ou ajudá-lo - na direção dos negócios contratou, há anos, um executivo, Tim Cook, também usuário de calça jeans, mora em casa alugada, afável, trabalhador incansável e não gosta de aparecer. Jobs e Cook seriam, pois, o oposto de Donald Trump, aquele empresário, também americano, sempre na mídia social, que até marca de perfume virou. Afinal, cada um tem o seu jeito e, sendo maior de idade, deve-se saber que estilo é o que fica quando a moda passa.
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sexta-feira, 16 de abril de 2010

Cinco balas contra a América (Luiz Carlos Monteiro*)


(Luiz Carlos Monteiro)


Com o aparecimento de Cinco balas contra a América, do jornalista e escritor cabo-verdiano Jorge Araújo (Editora 34, São Paulo, 2009), a literatura infanto-juvenil recebe uma forte e diferenciada contribuição no sentido próprio do seu fazer. Produz-se um sério abalo nas suas estruturas convencionais, no modo arraigado e repetitivo da concepção, ultrapassando as fronteiras e as missões previsíveis e às vezes simplórias de apenas entreter ou edificar. Ao invés da orientação autoral explícita ou subliminar para temáticas que ativem vendagens contabilizadas em centenas de milhares de edições, promove-se aqui um espaço amplificado de reflexão, ação e animação para os jovens leitores, que subverte as ambiências e enredos comumente encontrados no gênero. A edição, didática e de venda proibida, faz parte de um programa do ministério da Educação, o que garante a sua distribuição na rede oficial de ensino. As ilustrações, de traços magros e avantajados, expressivos em sua economia ambígua, ficaram a cargo do angolano Pedro Sousa Pereira.

A motivação psicológica dos quatro personagens adolescentes aprofunda o senso da discussão em torno à sua origem e formação, os embates da sua prática de vida diária, onde afloram as qualidades e defeitos inerentes ao humano, inclusive a coragem e o medo, que serão testados na aventura que viverão. O Comandante Zero, personagem disfarçado e misterioso, é temperado na mistura de velho boêmio mulherengo e sátiro, emigrante e nativo que somente com o tempo revelará a que veio, na sua faceta verdadeira de militante revolucionário calejado. Viverá ainda o bastante para absorver a vitória merecida pela luta contra os colonialismos europeus, e neste caso, mais especificamente português.

É o Comandante quem deflagrará a trama e a ação inicial do livro: “Foi Zapata quem recebeu o revólver. Ficou deslumbrado, tão deslumbrado que os seus olhos de pólvora seca dispararam estrelas. Mas logo, logo, tratou de domesticar a euforia, inspirou sentido de autoridade, encheu o peito de um ar de falsa tranquilidade. Tinha de estar concentrado, a missão era de grande responsabilidade”. Com Zapata, cujo nome verdadeiro era Salazar, encontravam-se Aristóteles, seu escudeiro subserviente, e os amigos inseparáveis Bob e Frederico, que estavam na aventura mais à procura de diversão, embora não espantassem a percepção e a práxis dos ideais revolucionários em voga na cidade cabo-verdiana do Mindelo e nas circunvizinhanças guineenses.

Aos quatro “miúdos” será confiada a missão de ficar de guarda, numa praia da ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde, prevendo a eventual aparição e invasão de tropas norte-americanas, tendo como armamento apenas um revólver com cinco balas. Cada capítulo, acompanhando o rumo dos acontecimentos, será intitulado Bala 1, 2, 3, 4 e 5, Bala Perdida e Bala Final. Questões históricas e ideológicas desfilarão com verdade e leveza, mas sem denuncismo, planfetarismo ou propaganda dirigida. Em breves referências, não serão escondidos os papéis dos principais líderes das guerras pela Independência e das revoluções comunistas ocidentais e orientais.

Talvez fosse muito cedo para assumir missão de adulto, mas a fronteira entre duas idades mostrava-se tênue e ansiosamente aguardada sua quebra. Enquanto isso, Bob dedilhava seu violão, Zapata exercia sua inclinação de chefe desastrado, Frederico bebia da mesma aguardente e partilhava histórias de mulheres com Bob, e Aristóteles se guiava pelo mesmo passo inseguro e vacilante de Zapata. O sentimento de grupo mantinha-se mesmo assim, entre a tensão e o companheirismo, na discórdia e na desavença, na alegria de zombar do outro, tendo como cerne motivador a conquista de ser visto e distinguido pelo Partido. A necessidade da guerra justificava parcialmente o alinhamento da juventude guineense e cabo-verdiana aos eventos da libertação do jugo colonial. Os garotos, no entanto, não poderiam ser reprimidos ou se afastar demasiadamente de suas vivências pessoais na ilha, onde sempre haveria lugares como o cinema Éden-Park para os encontros jovens, despojados e aventureiros.

A fragilidade e o egoísmo de cada um vai se manifestar durante a noite que passarão, forçosamente, em vigília. Além disso, as ambições políticas serão desnudadas pela falta de preparo e maturidade. Porque sucumbem ao menor sinal de presença humana ou evento marinho. Tudo é motivo para a proximidade e viscosidade do medo: “Os quatro não mais saíram da tenda durante o resto da noite. Ficaram encostados uns aos outros, abraçando-se uns aos outros, assim sempre tinham a sensação de estar mais seguros. Mais protegidos. A escuridão continua a fazer das suas, a pregar-lhes partidas. Foi uma noite em branco, uma noite sem sono. Nunca no Mindelo os espíritos andaram tão à solta como naquela noite. Deveria estar a preparar-se uma revolução no céu”.

Quando a manhã chega sobre a praia, a euforia desfaz ressentimentos, provoca abraços e reconciliações num momento único na vida dos quatro militantes inseguros e sem experiência ou batismo de luta, sob a guarda da família, voltados, sem que por vezes o soubessem, para o que caracterizava as coisas de sua própria fase. As cinco balas, fornecidas pelo velho Comandante, serão disparadas por Zapata para comemorar a vitória da ultrapassagem da noite. Transformadas, surpreendentemente, como numa roleta russa não programada, em seis, por um artifício de Zero, um dos bravos “pioneiros” militantes, por pouco, não é atingido fatidicamente: “Desde que a sexta bala tinha sido disparada, desde que a bala adormecida na câmara ressuscitara, desde que Frederico escapara como que por milagre à execução sumária, que estavam em estado de choque. De todos, Zapata era sem dúvida o que estava em pior estado, recuperara o espírito, é verdade, mas não o juízo. Não dizia coisa com coisa, tinha esquecido todo o palavreado revolucionário”. Nenhum inimigo colonialista ou imperialista tinha surgido nas horas da vigília, mas Bob foi o único que testemunhou, após o sexto tiro, em meio à aflição dos outros e à sua própria, um elemento estranho na praia de São Pedro: “O porta-aviões navegou calmamente em direção aos mares do Sul, foi engolido pela contraluz. Bob fez de tudo para chamar a atenção dos restantes colegas de vigilância. Correu, gritou, esperneou, gesticulou. Desesperou. Tudo em vão. Ficou guardião de um segredo que era muito maior do que ele. De um segredo que nunca poderia contar, partilhar, porque nunca ninguém iria acreditar”.

As fórmulas infanto-juvenis batidas e estanques, engessadas e utilizadas à exaustão por editores ávidos e escrevinhadores midiáticos, declinando quase sempre da qualidade estética, foram rejeitadas pela mão de Jorge Araújo, cujo texto assume parâmetros de boa literatura. Auxiliando a reflexão e o questionamento de quem mais precisa disso, daqueles que estão de passagem para a vida adulta, a singularidade desse livro é fruto da sua inteireza em não esconder nem escamotear o cerne polêmico que o engendra e configura. Falar de pessoas entre 14 e 16 anos de idade, envolvidas nos meandros políticos de independência e colonialismo, dominação e liberdade, não é tarefa fácil, exigindo tato e bom-humor, responsabilidade ideológica e traquejo vivencial para que sejam evitados os tons do panfletário e do propagandístico.

(Artigo extraído de http://omundocircundante.blogspot.com)


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*Poeta, crítico literário e ensaísta. Formado em Pedagogia e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. Publicou os livros de poesia Na solidão do neon (Pirata, 1983), Vigílias (Fundarpe, 1990), Poemas (Ed. Universitária da UFPE, 1999), O impossível dizer e outros poemas (Bagaço, 2005) e de ensaios Para ler Maximiano Campos (Bagaço, 2008) e Musa fragmentada - a poética de Carlos Pena Filho (Ed. Universitária da UFPE, 2009). Organizou, em colaboração com Antônio Campos, o livro de contos do Prêmio Maximiano Campos nas versões 2, 3 e 4 (IMC/Bagaço, 2008). Tem poemas publicados em antologias diversas, além de artigos e resenhas espalhados em sites, jornais e revistas de Pernambuco e de outros estados.
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