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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Licânia (Clauder Arcanjo)



De cabelos mais ralos, de olhos mais quedos, e de corpo mais lasso. Assim Antonio foi se achegando dos umbrais da pequena província. Trazia, debaixo do braço, um pequeno volume; sempre a paixão pelos livros, desde o tempo de infância. “Espantou uma mosca do nariz, como se buscando banir o caudal do rio das lembranças”.

No ar, o inconfundível bafo da terra natal: a brisa quente das ribanceiras do velho Acaraú. Estava chegando de terras potiguares. De lá, sempre observara as lembranças da sua Licânia. Catara-as, limpara-as, pondo um pitaco de ficção... e, finalmente, criara estórias. Causos e contos que lhe enchiam o buraco fundo da solidão das noites. Tipos e personagens a ressurgir, cada vez mais vivos, do baú de guardados que trazia bem enterrado, lá no fundo do peito.
Fora fácil apresentar tudo aquilo para gente estranha. A casa, A rua, Boné azul, Identidade... “Quando o sol colocava seu amarelo nos panos...”. Mas, agora, um medo lancinante lhe tomava as carnes, quando do retorno para o seu lugar. Aqui era o palco dos originais, daí o medo de ter feito uma cópia chula, imitação barata da vila. “Um vento teimoso varre as folhas soltas, que sibilam no chão duro e seco...”. Caminhou um pouco, viu-se de frente ao grande campanário da Matriz. A saga do retorno. Na mente, as palavras do Licânia. Sobre Licânia. Cemitério, Despedida, Menina de rua. Até o mar, nunca existente, mas sonhado, era tributo à província, nascendo como O cavaleiro do mar. “Era uma tarde de ventos enferrujados, de maré de vazante, praia com ondas em soluço...”.
As algarobas, ainda inquietas com o trinar dos pássaros, palco da revoada matinal. Antonio apertou o pequeno tomo, o suor umedecia-lhe as mãos. O pó de chinelo. “É bem melhor o atrito das pedras, ao roçar da covardia e ao molhado da indecisão”. Tudo era mais forte do que qualquer palavra, cenário indescritível. Quis rememorar passagens... O sineiro (“O planger dos sinos, metálico e dorido, aquietou o vento, apertou o peito dos moradores e cobriu a cidade com a lassidão do sentimento da perda.”), A mala (“Paixão assim não se agüenta de boca fechada.”). Era melhor voltar, pensou, calçar As sandálias da humildade (“Beijinhos, afagos e tapinhas nas costas era tudo que se via por entre as mesas...”), e deixar a sua obra longe do julgamento de Licânia. Porém um naco de teimosia grunhiu no seu peito. A epígrafe, versos de Sânzio de Azevedo: “Da tua terra, fértil mas pequena,/tirou-te um dia a sede das andanças!/Partiste, então; mas nessa idade amena/tangias um rebanho de esperanças!”. Canto da longa ausência.
Sacudiu o temor da roupa domingueira, e rumou para o Mercado. Moeda ao chão, O curral das éguas (“Os moradores viviam ruminando seus silêncios, presos à seqüência dos dias”), O grito (“... um homem não muda, muda o mundo”). Voltou-se rápido, no entanto não deu por nada, todos os espectros já estavam dentro dele. Não havia mais do que, nem de quem, fugir.
O calor tomava-lhe a garganta seca, o nó do reencontro. Carniça. “Olhos secos, cacimba vazia de lágrimas”. Logo em frente, deu com O riso do cão. “Uma espécie de riso a se desenhar por entre os seus dentes”. As inquietações de Samira. “Um medo apertando as carnes da barriga, dando um friozinho danado, um gelo... Puxo pelo rabo do tempo, e o que me resta é somente isso”. Zeca e os pombos. “Pessoas de risos parcos, de amores murchos, de mau jeito nos olhos”. Dona Tarcisa... “O soletrar das primeiras letras, as mangações...”. Respirou fundo, já claudicante. Na esquina seguinte, a teimosia de Perneta, “sol beirando o queixume dos coqueiros”, e o Sonho de Almirante.
Antonio enxugou a testa porejada pelo suor de Licânia, afrouxou a gravata, tirou os óculos de grife, e viu claramente Jesuíno. Ao lhe abraçar, festivo, percebeu que os homens e mulheres lhe olhavam risonhos, achando, por certo, que Antonio era mais um mascate a tentar fazer, com aquele pequeno livro, Negócios de feira.
A revoada das andorinhas cobriu o céu da tarde.
Licânia viera para ficar.

clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 18/03/2007.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

A roupa e o monge (João Soares Neto)



Ninguém é obrigado a saber que a palavra “apple” não é apenas maçã, em inglês. Tampouco, lembrar de Nova Iorque, a “big apple”. Acontece existir uma empresa de informática que incorporou esse nome comum de quatro letras. Ela começou pequena, cresceu demais, teve crises e um de seus fundadores, Steve Jobs, já saiu dela. Depois, retornou. Não vamos falar de computadores, negócios, iPhone, hoje o carro chefe dessa empresa. Estamos interessados no detalhe. Pomos os olhos em uma foto atual da European Press-Photo Agency e vemos Steve Jobs de calça jeans, sem cinto, camiseta preta de mangas compridas e uma caneca (daquelas que o Jô Soares gosta de mostrar em seu programa) de café à mão. Pois bem, esse é o trajo oficial de Jobs, nada de roupas de estilistas, tampouco ternos ou casacos de animais silvestres. Steve poderia, é verdade, comprar tudo o que quisesse vestir, mas optou por essa maneira casual. Nos jornais brasileiros vêem-se empresários e executivos de lustrosos ternos, gravatas com cores fortes e sapatos de cromo. Sempre se disse que “a roupa não faz o monge”. Lembro: em 1965, o Concílio Vaticano II tornou opcional a batina ou “hábito” fora dos atos litúrgicos. Assim, esse ditado parece não estar valendo para o Papa Bento XVI que usa batinas, estolas e sapatos de marca, apesar da pobreza ser louvada e glorificada pela Igreja Católica. Voltemos a Steve Jobs. O seu temperamento forte, dinâmico e difícil foi surpreendido pela doença. Em 2004 teve de retirar um tumor maligno no pâncreas. Agora, em 2009, como seqüela da primeira doença, fez um transplante de fígado. Ele já era simples, porém abusado, ficou hoje, aos 54 anos, mais simples ainda. Tanto isso é verdade que, para substituí-lo – ou ajudá-lo - na direção dos negócios contratou, há anos, um executivo, Tim Cook, também usuário de calça jeans, mora em casa alugada, afável, trabalhador incansável e não gosta de aparecer. Jobs e Cook seriam, pois, o oposto de Donald Trump, aquele empresário, também americano, sempre na mídia social, que até marca de perfume virou. Afinal, cada um tem o seu jeito e, sendo maior de idade, deve-se saber que estilo é o que fica quando a moda passa.
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