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segunda-feira, 26 de abril de 2010

Saberes (Nilto Maciel)

(Obra de Chico Lopes)



Sim, sou assim, como vocês não queriam:

Mais oblíquo do que torto.

Plantei-me em pântanos

E não cantei os pássaros.

O vento me quebranta

E à noite me espanto.

Nada me é familiar,

Nem mesmo tudo o que me cerca.

Minha sombra se perde no ar,

Sem se evolar, sem ser.

Somos o mesmo, embora

Eu saiba disso e ela não.

18/8/2009
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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Licânia (Clauder Arcanjo)



De cabelos mais ralos, de olhos mais quedos, e de corpo mais lasso. Assim Antonio foi se achegando dos umbrais da pequena província. Trazia, debaixo do braço, um pequeno volume; sempre a paixão pelos livros, desde o tempo de infância. “Espantou uma mosca do nariz, como se buscando banir o caudal do rio das lembranças”.

No ar, o inconfundível bafo da terra natal: a brisa quente das ribanceiras do velho Acaraú. Estava chegando de terras potiguares. De lá, sempre observara as lembranças da sua Licânia. Catara-as, limpara-as, pondo um pitaco de ficção... e, finalmente, criara estórias. Causos e contos que lhe enchiam o buraco fundo da solidão das noites. Tipos e personagens a ressurgir, cada vez mais vivos, do baú de guardados que trazia bem enterrado, lá no fundo do peito.
Fora fácil apresentar tudo aquilo para gente estranha. A casa, A rua, Boné azul, Identidade... “Quando o sol colocava seu amarelo nos panos...”. Mas, agora, um medo lancinante lhe tomava as carnes, quando do retorno para o seu lugar. Aqui era o palco dos originais, daí o medo de ter feito uma cópia chula, imitação barata da vila. “Um vento teimoso varre as folhas soltas, que sibilam no chão duro e seco...”. Caminhou um pouco, viu-se de frente ao grande campanário da Matriz. A saga do retorno. Na mente, as palavras do Licânia. Sobre Licânia. Cemitério, Despedida, Menina de rua. Até o mar, nunca existente, mas sonhado, era tributo à província, nascendo como O cavaleiro do mar. “Era uma tarde de ventos enferrujados, de maré de vazante, praia com ondas em soluço...”.
As algarobas, ainda inquietas com o trinar dos pássaros, palco da revoada matinal. Antonio apertou o pequeno tomo, o suor umedecia-lhe as mãos. O pó de chinelo. “É bem melhor o atrito das pedras, ao roçar da covardia e ao molhado da indecisão”. Tudo era mais forte do que qualquer palavra, cenário indescritível. Quis rememorar passagens... O sineiro (“O planger dos sinos, metálico e dorido, aquietou o vento, apertou o peito dos moradores e cobriu a cidade com a lassidão do sentimento da perda.”), A mala (“Paixão assim não se agüenta de boca fechada.”). Era melhor voltar, pensou, calçar As sandálias da humildade (“Beijinhos, afagos e tapinhas nas costas era tudo que se via por entre as mesas...”), e deixar a sua obra longe do julgamento de Licânia. Porém um naco de teimosia grunhiu no seu peito. A epígrafe, versos de Sânzio de Azevedo: “Da tua terra, fértil mas pequena,/tirou-te um dia a sede das andanças!/Partiste, então; mas nessa idade amena/tangias um rebanho de esperanças!”. Canto da longa ausência.
Sacudiu o temor da roupa domingueira, e rumou para o Mercado. Moeda ao chão, O curral das éguas (“Os moradores viviam ruminando seus silêncios, presos à seqüência dos dias”), O grito (“... um homem não muda, muda o mundo”). Voltou-se rápido, no entanto não deu por nada, todos os espectros já estavam dentro dele. Não havia mais do que, nem de quem, fugir.
O calor tomava-lhe a garganta seca, o nó do reencontro. Carniça. “Olhos secos, cacimba vazia de lágrimas”. Logo em frente, deu com O riso do cão. “Uma espécie de riso a se desenhar por entre os seus dentes”. As inquietações de Samira. “Um medo apertando as carnes da barriga, dando um friozinho danado, um gelo... Puxo pelo rabo do tempo, e o que me resta é somente isso”. Zeca e os pombos. “Pessoas de risos parcos, de amores murchos, de mau jeito nos olhos”. Dona Tarcisa... “O soletrar das primeiras letras, as mangações...”. Respirou fundo, já claudicante. Na esquina seguinte, a teimosia de Perneta, “sol beirando o queixume dos coqueiros”, e o Sonho de Almirante.
Antonio enxugou a testa porejada pelo suor de Licânia, afrouxou a gravata, tirou os óculos de grife, e viu claramente Jesuíno. Ao lhe abraçar, festivo, percebeu que os homens e mulheres lhe olhavam risonhos, achando, por certo, que Antonio era mais um mascate a tentar fazer, com aquele pequeno livro, Negócios de feira.
A revoada das andorinhas cobriu o céu da tarde.
Licânia viera para ficar.

clauder@pedagogiadagestao.com.br

Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão, espaço Questão de Prosa, edição de 18/03/2007.
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