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domingo, 16 de maio de 2010

Pequeníssima história infantil... (Pedro Silva)




Era uma vez um ursinho muito feio. Era tão feio que assustava-se com a sua própria imagem reflectida no espelho. Mas Deus, na sua sabedoria, dera a essa urso um bom coração, tornando-o bonito por dentro. Porém, a vida desse urso era tudo menos simples. Sentia-se triste e sozinho, qual sem-abrigo abandonado à sorte. E sofria! Muito, mesmo. Os seus dias eram monótonos e vazios, visto que o seu interior, ainda que bonito, ansiava por algo mais. Como todos os ursos da sua idade ele queria encontrar alguém a quem oferecer o seu interior, alguém com quem partilhar os seus sentimentos. Mas os seus horizontes eram muito amplos e, quiçá por isso mesmo, ou por ser feio por fora, a dificuldade em encontrar a ursinha especial fez-se sentir de tal forma que, cansado de esperar, decidiu desistir. E como desistiu!

A pouco e pouco o seu interior deixou de ser tão especial e o sofrimento foi-se apoderando da sua alma. Todos aqueles que lidavam com ele notaram a diferença mas deixaram o urso entregue a si próprio. E porquê? Porque todos se consideravam tristonhos e infelizes, pelo que aquele urso não deveria receber nenhum tratamento especial. Mas estavam todos enganados – aquele urso era especial pelo que, obrigatoriamente, deveria merecer um tratamento diferente. Quanto mais não fosse porque quando eles precisavam aquele urso estava sempre pronto a ajudar. Só que a ingratidão do mundo, aliada à indiferença natural que reinava entre os ursos, fazia com que fosse mil vezes mais fácil ignorar. E, enquanto isso acontecia, o urso feio por fora ia-se tornando menos bonito por dentro. E esse ursito, ainda que infeliz, arranjava sempre um bocadinho de ânimo ou de boa vontade para ajudar um seu próximo que sofresse. Era sempre o primeiro a acorrer a um urso em apuros, sempre o primeiro a dirigir uma palavra de reconforto a um urso sofredor, enfim, o seu interior continuava a demonstrar preocupação, carinho, amor...

Entretanto, ao seu redor, o mundo dos ursos não parava – implacável e imparável. Tal como todos os outros ursos, aquele urso especial tinha de cumprir a sua obrigação – arranjar comida para sobreviver. Foi num certo dia, ao desempenhar a sua função, que encontra uma ursa muito bonita, que irradiava uma luz muito especial, mas ao mesmo tempo com o semblante mais triste que jamais vira. O urso feio sentiu algo de tão forte que na altura não conseguiu explicar. Mas Deus, do alto do seu trono, sabia bem o que era e a definição correcta não era amor! Era algo de mais forte, muito mais forte!

O urso feio sentiu necessidade de acorrer em auxílio da pobre ursa bonita mas infeliz, só que embateu num muro de frieza. Não havia dúvida nenhuma que aquela ursa havia sofrido muito na sua escassa vida – e o urso feio era, devido ao seu interior especial, o único urso no mundo capaz de compreender, aceitar e tentar modificar o rumo dos acontecimentos, ou seja, o mesmo é dizer, fazer aquela ursa feliz. Porque o urso feio sentia que era capaz e porque estava dentro de si a noção de que todos os ursos tinham direito a ser felizes. Acima de tudo, acreditava que Deus o iria ajudar a concretizar os seus intentos.

Tentou uma aproximação suave – a ursa recuou, como num instinto de sobrevivência que, notava-se, havia sido alcançado à custa de muito sofrimento. E nesse primeiro encontro nada de muito especial surgiu, a não ser a tomada de conhecimento da existência, para ambos, do outro no mundo. O urso feio, porém, sentiu algo no seu interior que o deixava algo apreensivo – parecia que o seu corpo estava inteiramente descontrolado e que deixara de ser propriamente seu. Quem passara a ser o dono é que não sabia. Mas no dia seguinte, o certo é que voltou àquele lugar e, ainda que pelo caminho fosse bastante incrédulo em relação ao facto de voltar a encontrar aquela ursa bonita, o certo é que sentia que tinha de ir.

O urso feio desconhecia por completo que fora Deus que o colocara no caminho daquela ursa e que aquela força que o impelia a dirigir-se de novo àquele local era-lhe superior. Foi só quando, ao chegar ao lugar exacto, viu a ursa de novo ali sentada, que o urso feio sentiu que algo de muito especial estava a passar-se. E mais intrigado ficou quando, numa tentativa de aproximação mais forte, a ursa decidiu começar a falar. Trocaram nomes próprios e pouco mais, mas a ursa bonita já não parecia a mesma – ainda que se fosse notando cada vez mais o sofrimento que possuía, o certo é que o à vontade, que aumentava a cada instante, fazia acreditar que aquilo a que o urso feio se propusera podia realmente acontecer – assim Deus o ajudasse.

Nos dias seguintes, e como a ursa bonita sempre ali se encontrava, cada vez mais deliberadamente à espera do urso feio, as conversas foram-se tornando cada vez mais profundas – a ursa sofrera de terríveis acometimentos que a fizeram sentir-se a ursa mais infeliz de toda a comunidade. Incapaz de sentir-se inteiramente livre, mercê de um asfixiamento inconsciente por parte dos seus progenitores, tentara a fuga para a frente, ou seja, decidira abandonar aquela comunidade para viver noutra. Porém, desde cedo entendeu que embora todos lhe achassem muita graça, à medida que foi crescendo entendeu que o Mundo era todo igual e não havia, em lado algum, alguém interessado em ouvi-la. E o seu desencanto era de tal forma que a sua aprendizagem de vida, ainda que bastante intensa, foi de tal forma angustiante de chegara à triste conclusão que a liberdade em sofrimento era pior que a prisão com algum descanso.

A sua vida tornou-se mais pacata durante algum tempo, mas havia dentro de si algo que a atrofiava – o seu interior pedia sempre mais, mas do quê nem ela própria sabia. A vida em comunidade era muito pouco para ela e de novo sentiu-se demasiado apertada para o seu gosto. Sentindo, tal como todas as outras ursas da sua idade, o apelo do contrário, deixou-se enlear por uma necessidade e conheceu um urso garboso que lhe parecia de todo inofensivo em termos pessoais, mas que a levaria a concretizar todos os seus desejos e ambições – uma vida louca pelas florestas, livre das amarras super-protectoras dos pais ursos. E o certo é que a relação com esse urso garboso a fazia sentir-se, pelo menos, solta.

Só que a visão provocada pela ansiedade de liberdade cedo esfumou-se. Sem saber como, o certo é que a sensação positiva se deteriorou – eram ursos de feitios diferentes e, ainda que tivessem alguns gostos semelhantes, o certo é que a relação assemelhava-se a uma laranja seca: por mais que espremesse não saia uma única gota de sumo. A pouco e pouco a ursa foi-se desvanecendo da vida o urso garboso mas, no entanto, e apesar de sentir vontade de ser feliz, afirmava que era uma vergonha, perante a comunidade dos ursos, o expor de uma situação dessas. Afinal de contas, nunca nada semelhante tinha acontecido.

O urso feio tudo ouvia e registava. Tentou, do fundo do coração, ajudar aqueles dois ursos a fim de que não sofressem do mesmo mal que ele – de solidão. Tentou ajudar a ursa a levar as más palavras ao bom sentido, aproveitando tudo aquilo que de bom o urso garboso tinha. Mas a ursa bonita era demasiado livre para ser aprisionada, demasiado ela própria para ser o que os outros ursos queriam que ela fosse. E sentiu-se tentada a avançar em frente. Mas o urso feio, desconhecedor da situação, continuou na mesma toada de reconciliação, insistindo no continuar da relação entre os ursos.

Mas, com o passar dos dias, começaram a tornar-se visíveis os sinais de ruptura total – a ursa afirmava que não gostava de passear com o urso garboso na floresta e o urso feio sentiu-se tentado a desistir. Mas Deus, sentindo que só ele poderia ajudar aquela ursa, impeliu-o a continuar com o seu acto de caridade. Foi então que, com o passar dos dias, ambos se detinham mais em falar de si próprios do que de outros ursos. Existia algo entre eles – a sua relação fora feita no Céu e pelo próprio Deus. Só podia ser assim mesmo, dada a alegria que ambos agora irradiavam, isto apenas e só quando estavam juntos, porque quando afastados a tristeza voltava e dava lugar à depressão.

Parecia um lindo conto de fadas e passavam os dias a contar os minutos que os separavam do encontro – só viviam para isso. Ao fim de algum tempo começaram a sentir que alguma coisa de realmente especial estava a passar-se – afinal de contas quanto mais a ursa bonita comparava o urso feio ao garboso mais infeliz se sentia no espaço de tempo em que não estava com o seu novo confidente. Mas o urso feio não era diferente e ainda que sentisse um certo remorso ao notar que a ursa bonita aproveitava aquela oportunidade para criticar o urso garboso, o certo é que achava que aquele tempo passado com a ursa era como um pedaço de Paraíso na Terra.

Os dias foram passando e ambos os ursos sentiam já que aquilo que realmente desejavam era que aqueles momentos pudessem ser prolongados por todo o dia. Mas isso era impossível enquanto a ursa bonita não dissesse ao urso garboso o que não sentia por ele. E, o urso feio, cego de amor, pediu a Deus que a ursa o conseguisse fazer feliz. Mas Deus ficou triste com aquele pedido – o que ele lhe estava a pedir era o sofrimento de outro urso. Nem parecia próprio daquele urso que sempre tanta preocupação revelara com o se próximo. Mas, atendendo ao sofrimento que ele passara e à felicidade actual da ursa na sua companhia, decidiu atender ao pedido e, em pouco tempo, o urso garboso soube que a ursa já não tinha gosto em passear com ele pela floresta. Deus ajudou-o e ele tornou-se rapidamente feliz com outra ursa, mais simplória, mas que o fez sentir amor verdadeiro.

Tal facto abriu portas ao relacionamento entre o urso feio e a ursa bonita. Foi nessa mesma noite que o urso feio recebeu a visita de Deus na sua caverna, tendo-lhe pedido que tratasse a ursa bonita da melhor forma que o seu coração permitisse, de modo a que ela fosse feliz para todo o sempre. Porém, caso o urso feio falhasse no seu compromisso, seria castigado de uma forma que não possibilitaria recuo – a ursa deixaria instantaneamente de gostar dele e, em consequência, iria abandoná-lo de forma definitiva. O certo é que, até hoje vivem os dois, felizes, na floresta.

(A história continua... E que assim seja por muitos e bons anos!)
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Pedro Silva é português.
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domingo, 9 de maio de 2010

Pedro Salgueiro e o culto do livro (Nilto Maciel)


(Pedro, Nilto e Raymundo Netto, na casa do segundo)

Meu conhecimento de Pedro Salgueiro vem de 1995, quando participou do primeiro concurso de contos promovido pela revista Literatura, por mim dirigida. Enviou a peça “Dos valores do inimigo”, que obteve o terceiro lugar e foi publicada na edição nº 8, referente a junho daquele ano. Pouco depois (não poderia ser antes, tendo em vista que o certame se reservava a obras inéditas), ele me enviou exemplar da primeira edição de O peso do morto, no qual a pequena narrativa está incluída. Na dedicatória, chamou-me de “amigo e companheiro de ofício”. Na mesma época, Dimas Macedo, correspondente não oficial da revista no Ceará, me falou dele com muito entusiasmo. No ano seguinte, recebi O espantalho. Até então eu não o tinha visto, com ele não havia conversado. O que se daria em janeiro de 97, quando estive de férias em Fortaleza. Organizava ele, ao lado de Tércia Montenegro, o Almanaque de contos cearenses. Em golpe de mestre, planejou uma reunião de escritores no bosque da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará, que receberia o nome de Moreira Campos. Para dar mais importância ao encontro, convidou a viúva do homenageado, Dona Zezé Moreira; a filha (escritora) do casal, Natércia Campos; o pesquisador, professor e poeta Sânzio de Azevedo; e os escritores “de fora” Nilto Maciel e Caio Porfírio Carneiro. Algumas fotografias obtidas naquela tarde estão reproduzidas naquela publicação.

No final das férias, regressei a Brasília, voltei à minha lida de burocrata do judiciário e aos meus velhos passatempos: ler livros de escritores novos, escrever cartas, editar revista. Nem me lembrava mais do projeto do almanaque, que projetos de editar jornais, revistas, almanaques de literatura, no Ceará, só se realizam de 30 em 30 anos, com muito esforço de um ou dois escritores (a maioria não sai da platéia, embora queira subir ao palco, e no papel de protagonista). Pedro me enviou alguns exemplares da coleção. E não deixou de mandar seus livros: a 2ª edição de O peso do morto, em outubro de 97, e Brincar com armas, em 2000. Em retribuição, eu lhe remetia a revista. Não éramos amigos, embora já fôssemos companheiros de ofício. Para que a primeira oração fosse rezada, precisávamos nos aproximar. Não para isto, decidi vir morar em Fortaleza, em setembro de 2002. Precisava fugir da secura de Brasília, da solidão das superquadras, do burocratismo arraigado na pele das pessoas, do clima de academia de letras que ronda os escritores de lá. Fugir dos espantalhos, dos mortos que andam, respiram e escrevem versinhos, dos inimigos escondidos atrás das pilastras dos prédios, que matam com armas de brinquedo.

Ao aqui chegar, procurei uns e outros escritores. Levaram-me a clubes à beira-mar, a jantares à luz de velas, a academias de musculação linguodental. Mas não me levaram aos botecos, aos bares, ao bate-papo, às sirigaitas da Beira-mar. Telefonei a Pedro: queria conhecer o Dragão, tomar uns chopes, ver a noite, ouvir as estrelas e andar de carro pela cidade que abandonara havia 30 anos. Eu conduzia o veículo e ele me guiava: entra à direita, vira à esquerda, segue em frente. Na primeira noite ocorreu um sinistro: sorvi doze chopes e falei de literaturas. Ele tomou dois e não conseguiu dizer nada. Ao se erguer da cadeira, tombou. Deitou-se no banco do carro, vomitou e dormiu. Para as seguintes noites, convidou Astolfo, Pieiro, Napoleão e outros candidatos a contistas. Ao fim da pândega, eu conduzia o embriagado narrador ao seu lar e rumava para o calçadão da Beira-mar, onde me aguardavam as raparigas em flor.

Ao cabo de alguns meses junto àquelas mesas do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, o contista Pedro Salgueiro se disse viciado em álcool. Sua mulher (de então) pediu a separação. E me acusou de desviar a conduta social (e sexual) do seu até então casto e abstêmio marido.

Passavam-se os anos, surgiam outros projetos literários, os novos escritores nos mostravam seus rabiscos, eu me mudei para o Benfica, fez o mesmo Pedro, descobrimos o bar do Assis e mais nos tornávamos amantes do álcool. Vez por outra, aparecia Carlos Emílio, a resmungar, a se dizer perseguido, copiado e plagiado. Astolfo se irritava com as observações de Pedro pela ausência de vírgulas em suas composições. Carmélia Aragão destilava francês ao redor das mesas e prometia peças como há muito não se escrevem. Raymundo Netto lia crônicas de uma imaginária Fortaleza antiga. Adolescentes ávidos de fama cercavam o pobre Salgueiro: leia esta obra literária, publique minha história. Ele fazia promessas de mundos e fundos, piscava um olho para mim, emborcava o copo e se punha a contar piadas, velhas anedotas, sempre repetidas. “A mesma história tantas vezes lida”, como escreveu Florbela Espanca.

Passaram-se os tempos. Agora os encontros se dão em minha mansão na Parquelândia. Mais atento ao hoje do que ao ontem, Pedro tenta, então, imitar Fagner, cantarola o hino do Fortaleza Esporte Clube e me pede para ligar a televisão. Quer ver o jogo do Barcelona. Faço de conta que estou surdo. Ele olha para mim com rancor leonino e deita um litro de álcool goela abaixo. Cansado disso e daquilo, conta a piada de anteontem. Todos riem. Ele bebe mais. Quando se sente menos lúcido, põe-se a analisar as próprias narrativas: Conto sempre as mesmas histórias: homem que foge da cidade, homem que regressa ao lugarejo natal; no desfecho, mato uns e outros. Por isso me chamam de Pedro Sangreiro. Na noite seguinte, conta as piadas de ontem, imita Roberto Carlos e Fagner, e fala de suas (dele) obras.

O melhor de tudo se dá quando me visita: traz com ele dez ou mais amigos. Vai logo às prateleiras, à cata de “novidades”. Vai prestar culto aos meus livros, que são dos outros. Surrupia um Cervantes aqui; alisa um Quevedo ali; pede, por empréstimo, um Dante envelhecido. Ajoelha-se diante deles, faz prece, venera os velhos tomos. Os outros visitantes não se sentem logo à vontade, descrentes. Primeiro bebem muito e falam demais. Alguns se dizem poetas de meia-tigela; outros, prosadores de meia-pataca. Um deles até quer assim ser chamado, teima nisso. Mas é poeta de muito valor: O Poeta de Meia-Tigela. Uns quebram copos e garrafas, outros sujam o tapete de lama. (Quem se lembra da canção “Edredom vermelho”, de Glória Martins e Herivelto Martins?). Esses estróinas (no sentido de singulares) das letras, muito jubilosos quando se sentem entorpecidos, logo se põem a cantar como Nelson Gonçalves. Conhecem toda a música popular brasileira. E a erudita. Netto faz da caneta, às vezes, varinha de maestro, e arremeda Zubin Mehta. São todos muito corteses: lêem meus poemas em voz alta, prometem musicar minhas composições, tencionam me filmar e me dizem eterno enquanto durar. Pedro, o padrinho desses mancebos, se mostra encabulado diante de tantas estroinices e pede licença para ir ao banheiro. Não vai, me engana. Vai ao cômodo (altar) onde repousam os mestres: Anacreonte, Baudelaire, Camões... Todo o alfabeto literário. Nosso livro sagrado.

Fortaleza, abril de 2010.
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