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quinta-feira, 17 de junho de 2010

O miúdo que não gostava de ler (Pedro Silva)

Havia, há muito tempo atrás (sabe-se lá quanto…), um pequenito chamado Rodolfo que, por incrível que pareça, não gostava muito de ler. Parece um pouco difícil de acreditar, mas tantas letras faziam-lhe alguma confusão.

Por outro lado, na escola, não era nada mau a fazer contas!

O seu irmão, que tinha um feitio completamente diferente, gostava bastante de ler e, certo dia, decidiu fazer alguma coisa para mudar essa forma de ser de Rodolfo. Assim, escreveu-lhe um livro com pequenas histórias que ele pudesse ler, sempre que quisesse, e que fossem fáceis de compreender.

Assim foi.

Em frente da folha de papel, as palavras foram surgindo, algumas mais complicadas que outras, algumas com bastante dificuldade, mas o certo é que o irmão de Rodolfo gostava imenso daquilo que fazia, pois, acima de tudo, esperava que todo o seu esforço fosse devidamente recompensado, isto é, que as histórias fossem lidas e apreciadas com alegria pelo seu irmão.

Mas, no dia em que o livro foi entregue a Rodolfo, este ficou muito contente, riu, saltou, abraçou o irmão, mas… não leu quase nada. O irmão, de tão triste que estava, fechou-se no quarto e chorou.

Afinal de contas, tinha sido tão difícil escrever aquelas histórias e, agora que estava terminado, o seu irmão nem sequer tinha grande interesse em ler.

Rodolfo, arrependido, agarrou no livro e atirou-o para um canto, sentindo-se culpado pela tristeza do irmão. Estava enervado, não com o autor das histórias, mas consigo próprio, porque era tão fácil ler, mas tão difícil escrever e, como tal, custava-lhe que o esforço do seu irmão tivesse sido para nada.

No dia seguinte, na escola, a professora, como sabia que o pequeno Rodolfo não gostava de ler, mandou-o fazer uma conta, enquanto que a todos os outros deu livros para passarem uma hora bem entretidos.

Rodolfo, lembrando-se do que acontecera no dia anterior, não queria fazer contas, mas, isso sim, ler um livro que tinha trazido de casa. Na altura, e como era normal, a sua mala carregava sempre os livros escolares e um outro de banda desenhada, pois tinha mais desenhos que letras.

Convencido que era esse o livro que ali se encontrava, começou a remexer a mala e… eis que encontra as histórias escritas pelo irmão. Escondendo-se de todos os outros, começou a ler o livro.

No fundo, ele tinha alguma vergonha de mostrar a todos as histórias que o seu irmão tinha escrito, temendo que os colegas gozassem com a situação.

Porém, bem enrolado na sua mesa, Rodolfo ia lendo as histórias, uma a uma, acabando por ler tudo o que o irmão tinha escrito. Quando terminou, nem tinha dado pelo tempo passar. Tinha sido tão agradável!

Enquanto que os outros estavam já no recreio a brincar, o André manteve-se firme no seu lugar a olhar para o livro escrito pelo irmão. A professora, espantada por vê-lo ainda na sala de aula, foi falar-lhe, desconfiando que algo não estava bem.

Ela perguntou se Rodolfo estava doente e ele respondeu: “Não, estou a ler este livro”.

- Que bonito! – exclamou a professora. – Mas não o conheço… Onde o compraste?

- Foi o meu irmão que o escreveu para mim. – afirmou Rodolfo, orgulhoso.

A professora, curiosa, pegou no livro e deu uma vista de olhos. Ao ler algumas passagens do texto achou muito engraçado e riu-se com gosto. Virando-se para o pequeno aluno, disse:

- Olha, se deixares, este passa a ser o nosso livro de leituras e para fazer ditados. O que achas?

Rodolfo, alegre com tamanha honra, sentiu-se muito mais orgulhoso no seu irmão e naquilo que ele tinha feito. De pronto, disse que ficaria muito feliz que assim fosse e, logo nessa tarde, o ditado foi feito a partir de uma das histórias daquele livro tão especial.

Quando foi para casa, encontrou o irmão muito triste e, envergonhado do que tinha feito no dia anterior, não conseguiu contar o que sucedera. Mas o primo de ambos, que acompanhava sempre Rodolfo da escola até casa, não conseguiu conter-se e acabou por ser ele a dar a notícia.

Nesse momento, ambos os irmãos correram um para o outro, com a lágrima ao canto do olho.

Num grito de paz e harmonia, só possível entre dois irmãos, Rodolfo disse, sendo prontamente apoiado pelo irmão mais velho:

- Vamos jogar à bola!

E assim foi.
/////

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Da injustiça (Pedro Du Bois)

Amaldiçoado em lágrimas
rasgo olhos ao horizonte


poente

inutilizo a noite

na chegada

em refúgio


(os cães ladram)


rememoro a hora

da notícia transmitida

palavra por palavra


revejo minha imagem

cristalizada

no congelamento

da lágrima depositada


(os cães farejam)


as dores se afastam
no distanciamento

necessário ao medo


o corpo estremece

ao se pertencer em dores


no horizonte hostil

da janela aberta

o futuro se depara

com a impertinência

do presente


(os cães comem)


afasto suas mãos das minhas:

o contato é lucidez

inoportuna na desesperança


a oração despercebida

rompe o silêncio

e se perpetua


afago o deslizar da hora

em horas subsequentes


(os cães se defendem)


murmuro o nada acontecido

e desacordo em sonhos


o retorno convive

com o fato

desproporcionado


revivo o outono em folhas

pelo chão


recupero a sanidade

e me faço cristal

de rocha esfacelado


(os cães se diferenciam)


sofro o instante

e gesto

o silêncio


o emudecer transmite

a incerteza da pergunta


na vastidão ampliada

da insensibilidade


(os cães desfazem)


posso perguntar

o que bem entendo:

mas não entendo


posso exprimir

a minha raiva:

mas não pretendo


posso aproximar

os olhos à fotografia:

mas não enxergo


(os cães confundem)


calendários dizem que os anos passam


o exercício diuturno de recuperar

o inconsciente e o aguardar

refulgente: recomposto


o exército lancinante dos ataques

distribuí ossos que estalam


(os cães apavoram)


um dia destaco na pedra

o sinal: acordo


um dia acordo e na pedra

destaco o sinal


um sinal na pedra

é destaque quando acordo


(os cães se acovardam)


olho e enxergo

ouço e escuto

pego e sinto

levo à boca

e o sal amarga

o recesso de onde retirado


avaros dias de permanências

permanentes signos

aparentes esboços


o processo desarruma o fato

em procedimentos


(os cães arfam)


ouvidas as testemunhas

os peritos dizem

das especialidades


nada

nada


a improvável condenação

confundida em versos

na reversão da realidade


(os cães obedecem)


choro atravessar o espaço

desconsolado em fatuidades


remoço a fotografia

e me instalo diante

da orfandade


perder significa atos

ao despropósito

de continuar vivo


(os cães silenciam).


http://pedrodubois.blogspot.com/