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quinta-feira, 1 de julho de 2010

A permanência de um nome (Ronaldo Monte)

“O escritor José Saramago morreu”. Foi esta a mensagem que minha nora mandou para o celular de uma das minhas filhas. Era preciso deixar bem claro qual Saramago estava morto. Para isto serviam as palavras “escritor” e “José” na mensagem. Para que não se pensasse que um outro Saramago tinha morrido. No caso, o meu cachorro, que procura honrar o nome que lhe dei, ganhando o mundo ao menor descuido com o portão.

Conto isto para mostrar o quanto o nome Saramago é íntimo da minha casa. Muitas vezes por dia é repetido, tantas vezes quantas o incorrigível vira-latas transgrida as regras da boa convivência entre as espécies.

Foi esta intimidade com o nome, reflexo da minha intimidade com os livros de Saramago, que levou algumas pessoas a ligar para mim, me consolando pela morte do escritor. Vã tentativa, pois ninguém se consola de tamanha perda.

Não temos mais o narrador insólito que nos mostrava as feridas eternas da desumanidade como se as víssemos pela primeira vez. Não temos mais quem amplifique no seu texto a voz tímida dos oprimidos de todos os tempos e lugares. Nem mais o olhar ao mesmo tempo irônico e benevolente sobre as nossas fraquezas e presunções.

Desamarra-se de vez a jangada de pedra. A rocha de consciência e compaixão deriva agora pelas águas do sem tempo. Ser pedra e flutuar. Duro e leve de uma só vez. Talvez seja esta a lição que ele quis nos transmitir. Era isto, talvez, que nos dizia o seu olhar mesclado de ironia e esperança.

“O escritor José Saramago morreu”, dizia a mensagem no celular da minha filha. Mas em minha casa, seu nome ainda será por muito tempo repetido. Toda vez que esse outro Saramago, honrando o nome que lhe dei, desafiar com ousadia as ordens e os limites que tentamos impor à sua liberdade de cão.

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sábado, 26 de junho de 2010

Fugit (Aníbal Beça)


Mas então era isso?
Melhor que não fosse.

Mas como fugir dele
que voa sem asas, mas voa,
enquanto fico fincado
sem ao menos saber
se parto ou se fico
sem o arbítrio da deliberação?

Ah, mel do engano!
Por que me adoçaste
com a prepotência
veloz dos resignados?

Por que não me soltaste
junto à turba perdulária
dos que souberam
queimar etapas
na fogueira da intensidade
caldeirão
de tempero imediato?

Uma andorinha solitária
passa veloz no seu compasso de asas.

Será a mesma do último solstício?

Não importa.
senão o que ela empresta
do impulso viageiro tardio
levando não os meus pés
mas meus olhos
que se alçam sedentos
céleres
para conspurcar
lugares longínquos

O que não ousei com os pés
– caminhos que não pisei –
meus olhos alcançam por mim
deixando pegadas aladas
impressas no lençol do dia
no onírico leito do ócio indormido.

Ele
que descubro
Senhor das coisas
do nada e de tudo
do silêncio e do vazio
me diz sem muita cerimônia:
Passou.

E nada mais disse.
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