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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Rosa dos Ventos (Fernanda Lym)

(Quadro de Chico Lopes)

impressionou-lhe a desnovidade que era a vida. até os dezoito anos pensava que cada ano e cada fase deveria ser marcada por músicas de bandas do momento, algumas modas ficariam, outras não, sonhava com o beijo de língua na boca de um namorado que pudesse chamar de seu, enquanto no céu brilhariam fogos de artifício durante a passagem de um velho ano novo. se dela dependesse, seus pais teriam o dom da eternidade, seu mundo de mentira continuaria a ser verdade, e não haveria perigo de andar livremente sem rumo, muito menos de pensar e agir diferente do que lhe impunham sem pudor. e ao mesmo tempo não sabia se a cíclica rosa dos ventos que era a vida lhe daria chances de criar outra oportunidade. sentiu como é fácil fazer das paredes de sua prisão doméstica braços que lhe acolhem num afago, quando tudo o que você mais deseja é se esconder de um medo cultuado feito fé cega. talvez porque todos agiam sincronicamente, previsivelmente camuflados em suas desesperanças, viu-se frágil taça de cristal, que emite belos sons se nela tocam, mas sangra fácil a mão de quem a estilhaça. e o ar-matéria que tudo ocupa sufocou-a como se em profundo mar ela se afogasse, sugada pelo ventre que a quis de volta sem pedir permissão.

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A permanência de um nome (Ronaldo Monte)

“O escritor José Saramago morreu”. Foi esta a mensagem que minha nora mandou para o celular de uma das minhas filhas. Era preciso deixar bem claro qual Saramago estava morto. Para isto serviam as palavras “escritor” e “José” na mensagem. Para que não se pensasse que um outro Saramago tinha morrido. No caso, o meu cachorro, que procura honrar o nome que lhe dei, ganhando o mundo ao menor descuido com o portão.

Conto isto para mostrar o quanto o nome Saramago é íntimo da minha casa. Muitas vezes por dia é repetido, tantas vezes quantas o incorrigível vira-latas transgrida as regras da boa convivência entre as espécies.

Foi esta intimidade com o nome, reflexo da minha intimidade com os livros de Saramago, que levou algumas pessoas a ligar para mim, me consolando pela morte do escritor. Vã tentativa, pois ninguém se consola de tamanha perda.

Não temos mais o narrador insólito que nos mostrava as feridas eternas da desumanidade como se as víssemos pela primeira vez. Não temos mais quem amplifique no seu texto a voz tímida dos oprimidos de todos os tempos e lugares. Nem mais o olhar ao mesmo tempo irônico e benevolente sobre as nossas fraquezas e presunções.

Desamarra-se de vez a jangada de pedra. A rocha de consciência e compaixão deriva agora pelas águas do sem tempo. Ser pedra e flutuar. Duro e leve de uma só vez. Talvez seja esta a lição que ele quis nos transmitir. Era isto, talvez, que nos dizia o seu olhar mesclado de ironia e esperança.

“O escritor José Saramago morreu”, dizia a mensagem no celular da minha filha. Mas em minha casa, seu nome ainda será por muito tempo repetido. Toda vez que esse outro Saramago, honrando o nome que lhe dei, desafiar com ousadia as ordens e os limites que tentamos impor à sua liberdade de cão.

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