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sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Lêdo Ivo, poeta e ensaísta (Adelto Gonçalves*)

I

Grandes poetas, geralmente, resultam em grandes ensaístas. Talvez pela necessidade que têm de sistematizar em ideias aquilo que, muitas vezes, é atribuído apenas à inspiração, embora se saiba que os chamados poetastros só conseguem escrever versos de pés quebrados. Afinal, não dá para imaginar um poeta inspirado que não conheça a fundo o seu ofício, isto é, que não seja um grande teórico, o que significa horas de leitura e conhecimento.

Só de uma enfiada pode-se lembrar aqui de alguns poetas que cumpriram com rigor esse duplo papel: T.S.Eliot (1888-1965), Charles Baudelaire (1821-1867) e Octavio Paz (1914-1998), entre os de outras línguas; Fernando Pessoa (1888-1935) e José Régio (1901-1969), entre os portugueses; e Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Paulo Leminski (1944-1989), entre os brasileiros.

Entre os brasileiros vivos, há pelos menos três que são tributários dessa estirpe e cumprem esse papel anfíbio: Alberto da Costa e Silva, Ivan Junqueira e Lêdo Ivo, todos membros da Academia Brasileira de Letras. Haveria outros, ainda que não acadêmicos que não fogem dessa linhagem, como Mário Chamie, Cláudio Willer, Moacir Amâncio e Álvaro Alves de Faria – só para ficar com paulistas –, mas é de Lêdo Ivo que se quer aqui falar a propósito de seu O Ajudante de Mentiroso, reunião de 24 textos ensaísticos curtos produzidos em épocas distintas e a respeito de temas diversos, incluindo participações em solenidades acadêmicas e fóruns universitários.

Em Lêvo Ivo, como em Junqueira, é nítida a influência do ensaísmo anglo-saxônico, especialmente de Eliot, para quem o ofício não exigia uma postura rígida nem solene, mas um estilo coloquial, exatamente aquilo que o ensaísta alagoano constata em José Lins do Rego (1901-1957) que, se não foi poeta, mas romancista, ao reunir impressões de um passeio a Europa na década de 1950, escrevia “à maneira de um Montaigne (1533-1592) ou um Stendhal (1783-1842) – como se a viagem fosse uma conversação”.

Como muito bem observou Eugénio Lisboa em recensão deste livro publicada no Jornal de Letras, de Lisboa, de 23/3/2010, a referência ao francês Montaigne não é fortuita nem invalida a observação inicial que consta do parágrafo acima. Pelo contrário. “Esta alusão ao mestre francês não deixa de ter significado incisivo, porquanto foi ele o pai do ensaio de Bacon (1561-1626) e de todo o grande ensaísmo anglo-saxônico, caracterizado por uma conversa altamente civilizada, mas informal”, diz Lisboa.

É o que, em outras palavras, afirma Lêdo Ivo ao observar, em relação a José Lins do Rego, que “a grande lição do ensaio ocidental é o da literatura em língua inglesa, com os seus ensaístas informais, que escrevem sobre ruas tortas, cemitérios, cidades, viagens, cenas cotidianas, sonhos. E esse tipo de ensaio praticado pelos ingleses, se por um lado se distancia inapelavelmente do eruditismo predatório que grassa entre nós, por outro se aproxima da nossa crônica de jornal”.

Para Lêdo Ivo, um bom ensaísta é um cronista culto, que sabe escrever. “E uma apostila não é um ensaio”, acrescenta, de modo peremptório. De fato, ao contrário do que imaginam certos ensaístas saídos de cursos de doutorado de nossas principais instituições, escrever bem não é escolher palavras desusadas nem construir parágrafos herméticos e quilométricos que levam o leitor a interromper a leitura para voltar ao princípio da frase que já esqueceu por tédio ou fastio e reencontrar o fio do pensamento.

II

Se a observação serve para definir o ensaísmo de José Lins do Rego, cai à medida também para explicar o que Lêdo Ivo entende por ensaio. Pois é com essa “prosa lépida e nervosa” que identifica no romancista paraibano que ele, no ensaio “Os modernismos do século XX”, investe contra certa postura de professores da Universidade de São Paulo (USP) de outros tempos que, por regionalismo ou sabe-se lá por que, transformaram a Semana de Arte Moderna de 1922 no acontecimento mais importante da vida cultural brasileira no século passado. E que professores mais moços, talvez por desídia ou excessiva reverência a nomes consagrados, preferem não revisar.

Segundo Lêdo Ivo, há mais de meio século, a USP, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, e outros órgãos pedagógicos, culturais, editoriais e jornalísticos procedem a uma verdadeira lavagem cultural em dezenas ou centenas de milhares de jovens estudantes. “Professores e pesquisadores, guiados e monitorados por mestres influentes erigidos à cômoda condição de monstros sagrados (ou monstros leigos, inaposentáveis), recebem e propalam sempre a mesma lição: a da dimensão providencial da Semana de Arte Moderna de 1922 e do papel seminal que teria exercido o Modernismo paulista na elaboração da vida cultural do Brasil no século XX”, diz, ressaltando que “inumeráveis teses de mestrado – e que são, na realidade, dóceis ou bisonhos atestados de amestramento – repetem exaustivamente o tema, já convertido numa cláusula pétrea da literatura nacional”.

III

É com razão que Lêdo Ivo se levanta contra essa “verdade” consagrada em compêndios universitários idealizada por quem imagina que os acontecimentos seguem uma seqüência natural, pois, de fato, nada há que sustente que o romance do Nordeste da década de 1930 tem de estar obrigatoriamente atrelado ao Modernismo paulista ou que Geração de 45 seja tributária do movimento de 1922.

Essa é apenas uma de tantas outras “idéias” que se converteram em “cláusulas pétreas” na História brasileira das quais poucos se dispõem a discordar. Outra é que a conjuração mineira de 1789 constituiu uma etapa de um processo independentista que culminaria com a Independência de 1822.

Mais uma é chamar de Revolução de 30 (assim mesmo com maiúscula) um golpe militar dos mais salafrários como todo golpe, que não passou de uma rearrumação de elites carcomidas no poder. Até porque não há nada que garanta que o Brasil seria melhor ou pior se a República Velha (1889-1930) tivesse sobrevivido mais quinze anos. Pelo menos aquelas elites tinham certo verniz cultural que haviam trazido de Paris. E o País? Ora, o País, certamente, seria tão atrasado quanto o é hoje, com suas legiões de miseráveis e seus alarmantes níveis de violência social.

Aliás, se aqueles que tomaram o poder em 1930 tivessem alguma preocupação cultural teriam aproveitado a década para criar em algum lugar de suas regiões uma universidade do nível da USP e, se não o fizeram, é porque o que queriam mesmo era igualmente usufruir o direito de sugar as tetas do erário da Nação, a exemplo do que fizeram até então os cafeicultores paulistas e seus associados durante a República Velha, como observou Lima Barreto (1881-1922) em vários textos reunidos em Toda Crônica, volumes I e II (Rio de Janeiro: Editora Agir, 2004). E, no entanto, foram os representantes das elites derrotadas em 1930 e 1932 e o interventor federal da ditadura em São Paulo que criaram a USP em 1934.

Se tivesse surgido uma universidade do porte da USP no Nordeste àquela época, com certeza, o romance nordestino da década de 1930 é que teria sido ungido a acontecimento mais importante da literatura brasileira no século XX. Até porque o reconhecimento cultural sempre andou atrelado à importância econômica da região daqueles que produzem os fatos. Ou será que, se James Joyce (1882-1941) fosse brasileiro e escrevesse em português, o romance Ulisses (1922) seria reconhecido como um divisor de águas na literatura mundial?

IV

Para Lêdo Ivo, o Modernismo de 1922 não passou, “em muitos de seus aspectos, de uma rumorosa e festiva repetição, um gracioso plágio, uma astuta clonagem do primeiro e seminal Modernismo deflagrado em 1836, como comprovam os manifestos assemelhados, a postura selvático/internacionalizada de alguns de seus corifeus, e o empenho de abrasileiramento e coloquialização da nossa língua”. E quem há de dizer o contrário? Até a idéia da antropofagia foi clonada dos Essais de Montaigne, lembra.

Nem por isso se pode negar os méritos de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia (1892-1988), Ribeiro Couto (1898-1963), Raul Bopp (1898-1984) e outros, embora o maior de todos os modernistas -- até porque precursor do movimento -- tenha sido o pernambucano acariocado Manuel Bandeira (1886-1968), cuja poesia não envelheceu tanto quanto a dos demais.

V

Mas não se imagine que Lêdo Ivo alimenta qualquer parti pris contra São Paulo. Na verdade, o ensaísta é reconhecidamente generoso com aqueles que lhe proporcionaram algum deleite ou emoção a partir da leitura de seus textos, independente de onde nasceram. E isso inclui não só os grandes mestres universais como brasileiros de todas as latitudes.

É assim que, em “A propósito de Orígenes Lessa”, reconhece o talento de um escritor que, embora dono de vasta obra, que inclui romances, novelas, contos, reportagens e livros de viagem, não teve o lugar que merecia na história da Literatura Brasileira. Orígenes Lessa (1903-1986), observa Lêdo Ivo, foi um raro escritor que sempre soube usar o diálogo em seus romances e contos, a ponto de fazer com que “a ação das histórias e a psicologia dos personagens se revelem através da dialogação”.

Por isso, foi um dos poucos, como Alcântara Machado (1875-1941), que fez desfilar em sua obra uma variada população da cidade de São Paulo: os carcamanos, os paus-de-arara (dos quais saiu até um presidente da República), os japoneses, os provincianos da grande metrópole, os caipiras, os chineses, as prostitutas, os trocadores de ônibus. “É realmente notável a capacidade que ele tem de mobilizar pequenas vidas e pequenos destinos”, diz o ensaísta.

Por aqui se vê quanto vai perder quem deixar de ler estes pequenos textos ensaísticos de Lêdo Ivo que, reunidos, dão uma visão pouco usual da Literatura Brasileira, a ponto de resgatar até um esquecido modernista, Geraldo Ferraz (1905-1979), e seu romance Doramundo, publicado em 1956 por um suposto Centro de Estudos Fernando Pessoa, de Santos, mas escrito em boa parte na cidade de São Paulo em 1952 e concluído em outubro de 1955 em dias de descanso em Praia Grande.

Quantas cidades não dariam a vida – se é que cidades podem ter vida – para ostentar esse privilégio? Pois é, ao que se sabe, a Prefeitura de Praia Grande ainda mantém o nome do ditador Garrastazu Médici (1905-1985) dado em tempos nebulosos para sua biblioteca pública, que, por estes dias, passa por reformas. Santa ignorância.

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O AJUDANTE DE MENTIROSO: ENSAIOS, de Lêdo Ivo. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Editora Universitária Candido Mendes (Educam), 349 págs., 2009. E-mail: cmendes@candidomendes.edu.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Terroir (Ronaldo Monte)

(Quadro de Chico Lopes)

Para Fátima e Waldir

Conversar fiado é uma arte. Sexta-feira de noite, então, é a mais necessária e imprescindível. Principalmente se você estiver na cozinha da casa dos amigos comendo pão com café, ambos feitos na hora. E se depois houver a possibilidade de rolar um vinho italiano, aí a conversa fiada se torna uma questão de sobrevivência.
Uma boa conversa fiada é aquela que se confunde com uma sessão coletiva de livre associação. Deixa-se a prosa à deriva, seguindo para onde bem quiser, ao sabor das mínimas circunstâncias e ressonâncias.
Sexta-feira passada, por exemplo, estávamos na tal cozinha, já no momento de passar do pão com café para o vinho italiano. Numa das prateleiras do armário havia um rótulo de manteiga, resto de uma viagem à França, anunciando que o produto era de Terroir. Não importa muito quem primeiro tocou no assunto, mas a minha posição era a de que a classificação de Terroir só era aplicável aos vinhos. O dono da casa, especialista em me contrariar nas minhas afirmações categóricas, falou qualquer coisa sobre a complexidade do termo, que ia muito além da simples demarcação geográfica de uma região agrícola. A dona da casa, por sua vez, que adora me ver derrotado em minhas opiniões, foi lá dentro e voltou com uma página impressa do Wikipedia que me dava um pouco de razão, mas puxava a brasa para a sardinha do marido. Minha mulher não disse nada, mas eu adivinhava o quanto estava saboreando a derrota iminente da minha posição.
Não me lembro bem do final da discussão. Aliás, a boa conversa fiada é aquela que não leva a conclusão nenhuma. É uma estratégia para se voltar ao assunto numa próxima reunião. O importante é que o tema seja instigante o suficiente para se passar do café ao vinho e deste ao licor ou coisa mais perigosa que nos entregue ao abandono do convívio despretensioso.
Independente de qualquer definição, havia uma compreensão comum sobre o significado da palavra terroir. O território, o rincão que nos tornava iguais em nossas diferenças era o lugar mesmo em que discutíamos. Aquela cozinha era o nosso terroir, assim como são todos os lugares em que os amigos se encontrem para jogar conversa fora e se querer bem.

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