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terça-feira, 10 de agosto de 2010

Passantes ou ficantes? (Simone Pessoa)

(Quadro de Chico Lopes)


simoneps@fortalnet.com.br

No momento em que escrevo esta crônica, sinto como se outras mãos me ajudassem na elaboração. E não seria diferente, já que, ao longo da vida, encontrei (ou esbarrei em) tanta gente que, inevitavelmente, me legou um pouco de si. Muitas me acompanharam no trajeto por longas distâncias e deixaram marcas indeléveis. Dessas, algumas, para minha alegria, ainda hoje são presentes. Outro tanto de gente acabou tomando outros rumos, atalhos talvez. Houve quem desse meia volta e retornasse não sei para aonde. Algumas, fui eu quem largou pelo caminho. Uma porção apenas atravessou minha estrada no traçar de suas próprias trajetórias. E nesse intercruzamento de percursos, resolvi me deter naquelas que assinalaram minha existência, por instantes que fossem, sem que eu tivesse mais notícias.

Onde andará a Deusimar, minha primeira babá? Dela guardo uma única foto em que, atenta, me segurava nos braços. Ainda estará nesta dimensão? Bill, um garoto do jardim da infância com quem gostava de brincar? Assim como a Sayonara e a Marta, minhas colegas de alfabetização no João XXIII. E o Antônio Neto, também colega daquele colégio, que me ofereceu emprego na fábrica de vassouras do pai?

O Maranguape, o picolezeiro que nos tentava diariamente com seus picolés de ameba deliciosos? Ainda empurrará sua carrocinha pelas ruas da cidade? Seu Jaques, dono da mercearia da esquina da Padre Valdevino com Nogueira Acioly, creio, já não está entre nós.

Onde andará minha colega France, do colégio Cearense? Tão espirituosa, a France! Mas não suportava o apelido que a turma lhe imputou e que não ouso revelar para poupá-la de possível dissabor, caso esta crônica chegue às suas mãos. E por falar no colégio marista, onde andará a Cassundé, austera professora de matemática? A Germana, funcionária sempre de prontidão na secretaria? Tenho curiosidade de saber se o Irapuã, um colega do primário e filho de um funcionário do colégio, se tornou médico, como anunciava naqueles tempos.

O Mauricex Cascavel, meu rival em disputas de ping-pong? A Maura e o Mauro, dois irmãos, cujos rostos não lembro, do tempo em que frequentei a então nativa praia das Flexeiras, onde andarão? O Domingos, o Homero, a Jofo, o Mozart, a Astrid, a Ieda, o Moisés, a Lia – já escrevi sobre ela -, a Virgínia, a Neyla, a Laydilane, a Julieta, o Morais, o Cláudio Henrique, a Tomires, a Nely, os irmãos Marcos e Ilana, a Jonilce... A lista é sem fim. Pessoas de quem ainda lembro os nomes e posso vislumbrar as expressões. Outras, sem rosto, mas que deixaram, pelo visto, algo que guardo em mim.
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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Palpites futebológicos (Manuel Soares Bulcão Neto)



Tenho um amigo cujo filho do meio é esquizofrênico. Sempre que lhe pergunto sobre a saúde do rapaz, ele, que é torcedor fanático do Ferroviário Atlético Clube, responde: "Continua como o Ferrim: quando a gente pensa que está melhorando, piora." Ocorre que não é apenas o Ferrim que se comporta desse jeito.

Na verdade, não é esse time outra coisa que a expressão caricata de todo o futebol da parte de cima do Nordeste (o potiguar, o cearense, o piauiense…), que está mais para o da Nicarágua e Ilhas Fiji do que para o do sul do País. Sim, até na pelada o Brasil é terra de contrastes - e mais uma vez fiquei no lado sofrível.

Por isso, sendo brasileiro "apesar" de cabeça chata, esforço-me para torcer apenas pela Seleção Canarinho. O problema é que não consigo. Por mais que tente, termino retornando aos estádios e ao Alvinegro, nem que seja para, amargurado, torcer contra. (O futebol tem mesmo um elã encantatório, um quê religioso.)

Na ocasião da presente Copa (2010), andei especulando sobre as razões da imensa popularidade do futebol ("soccer"), e tenho tido alguns "insights". No caso do Brasil, vislumbro como uma das razões a tradição da capoeira – uma luta com as pernas – que, aliada ao gosto infantil pelos dribles no pega-pega (fez que ia, não foi e acabou "fundo") e com a tendência à simpatia pelos mais fracos, ensejou as primeiras torcidas. De fato, devia ser hilariante ver negros longilíneos escapando das correntes e do pelourinho na base da esquiva desconcertante e da rasteira, deixando tontos os seus feitores ("diminutos portugueses com expressões assassinas", conforme definição de Darwin no "The Voyage of the Beagle").

Além da simplicidade das regras – exceto para a minha mãe, que até hoje não entende esse tal de impedimento – e do material necessário para a prática do esporte, outra razão global do sucesso do futebol está no fato de as partidas serem decididas, no mais das vezes, com escores mínimos, de modo que a alegria, em vez de se diluir em cinquenta cestas, como acontece no basquete, ela se concentra em um ou dois gols em média. É mais ou menos o que ocorre numa relação sexual entre apaixonados: muitas carícias preliminares e, de repente, o orgasmo - uma explosão de dopamina, o prazer em clímax. Daí a relação de paixão irracional entre as torcidas organizadas dos "fieis" e seus times.

Daí, também, que torcer pela seleção nacional é como fazer amor com a pátria em que nós, os torcedores, somos os passivos da relação e, portanto, sujeitos às ejaculações precoces do parceiro, às suas impotências circunstanciais, aos seus momentos de virilidade exuberante…

Demais, o fato de os placares encerrarem-se com poucos gols, isso aumenta significativamente o papel da sorte ou do azar – i.e., do acaso – no resultado final. Por isso que, principalmente para quem torce por clube ruim, isto é, pela zebra, futebol é jogo de azar. Ora, todo mundo sabe que jogo de azar vicia mais que o álcool e talvez tanto quanto a heroína. E, segundo Freud, em jogatina a maioria dos jogadores aposta não para ganhar, mas para perder: inconscientemente, o jogador (no caso, o torcedor) quer expiar um sentimento de culpa abscôndido. A propósito, tenho quase certeza de que aquele meu amigo doente pelo Ferroviário é um desse tipo: um adicto da "zebrinina", um futebólatra.
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