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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Irmandade da Boa Morte (Emanuel Medeiros Vieira)

(Histórias da Bahia e do Recôncavo)

(Em memória de meu pai Alfredo – um honrado devoto de São Francisco, e o mais caridoso ser humano que conheci na minha vida.)

Não se sabe a data do seu nascimento, mas acredita-se que a primeira irmandade da Boa Morte em solo brasileiro tenha nascido em 1707. Mas a Irmandade da Boa Morte - criada por mulheres negras -, ao contrário das outras, não contou com a legitimação pelo poder do Estado ou da Igreja Católica. Caracterizada pela devoção à Nossa Senhora da Boa Morte, da Assunção ou da Glória, a irmandade ritualiza a morte e a assunção de Maria que, segundo a doutrina católica, foi levada ao céus como seu filho Jesus. A subida ao espaço celeste é um dos dogmas instituídos pelo Papa Pio XII, em 1950. A origem do culto à Boa Morte data do século VII, em Roma, pelos jesuítas. Em Portugal, começou em Lisboa, em 1660. Em Cachoeira, teria tido origem em 1860, quando a tensão social era muito intensa, segundo os historiadores. Conheci a irmandade (durante os seus festejos anuais, em agosto de cada ano) numa recente viagem à Cachoeira, belíssima cidade história do Recôncavo Baiano, distante de Salvador a aproximadamente 110 quilômetros. (Lembro de duas outras bonitas cidades da região: Santo Amaro da Purificação e São Félix — separada de Cachoeira por uma ponte.) O propósito religioso era católico, mas identidade foi buscada no candomblé. É isso o que me fascina nessa irmandade: sua liturgia, que transita entre dois ritos, tão marcantes na identidade baiana, onde a influência negra é uma das mais fortes do mundo. É preciso lembrar que em Cachoeira travaram-se intensas lutas pela Independência da Bahia e do Brasil, como também foi muito forte a luta pela abolição da escravatura. Formada exclusivamente por mulheres, com idade de ingresso a partir dos 40 anos, todas as 23 integrantes são negras e descendentes de escravos. O empreendedorismo das mulheres negras que fundaram a Boa Morte está na origem de suas antepassadas. “Elas vieram da sociedade iorubá, que era urbana e organizada. Eram conhecidas como negras do partido alto, que dominavam o comércio dos gêneros de primeira necessidade e conseguiram equilíbrio financeiro”, explica o historiador Cacau Nascimento, estudioso da irmandade. O culto à Virgem Maria é oriundo de um sentimento de gratidão pela obtenção de uma promessa: o fim do regime de escravidão. As negras da Irmandade da Boa Morte usam o drama da morte e assunção de Maria como metáfora para o culto aos eguns. É como os sete dias de axexê (o ritual fúnebre do candomblé), com três dias públicos e quatro privados. Ser negra é necessário, mas não é o bastante para constar em “ata” – como se diz quando a candidata é aceita pelas integrantes da Irmandade da Boa Morte. Na rígida hierarquia do grupo, além da dedicação à Nossa Senhora, tem de ter idade avançada e passar por avaliação. Na fase de observação (que dura três anos), as mulheres são chamadas “irmãs de bolsa”. De tradição oral, os segredos só são repassados para as irmãs e cada uma alcança um grau de conhecimento de acordo com o tempo, dedicação e determinação das irmãs mais antigas. Segundo a jornalista Juci Machado, “são esses segredos que garantem a existência delas”. São cinco dias de festa, preparados com um ano de antecedência. A disposição de servir nunca falta: “Nossa Senhora da Boa Morte também nos dá vida e força para continuar”, diz Adeíldes Ferreira de Lemos, 64 anos, que faz parte da Irmandade. (Teria outros relatos, mas o texto ficaria muito longo.) Mas conhecer o Recôncavo* foi uma bela experiência. Internalizei novamente a ideia do Sagrado (em rituais tão belos), num mundo tão dessacralizado, profano e utilitarista - que constitui o nosso capitalismo tupiniquim. Não deixa de ser uma forma de resistência à globalização excludente. Milton Santos (1926-2001), o grande geógrafo baiano, respeitado mundialmente, dizia que era preciso “encontrar um caminho que nos libere da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade”.

*O termo recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras de qualquer baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização à região que forma um arco em terno da Baía de Todos-os-Santos (onde se encontra Salvador).

Salvador, agosto de 2010
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Juvenal Galeno, poeta popular (Nilto Maciel)



O governo do Estado do Ceará vem patrocinando a reedição de obras raras da literatura cearense. À frente dessa iniciativa está o professor Francisco Auto Filho, como Secretário da Cultura. Nos três volumes da obra completa de Juvenal Galeno (1836 – 1931) vem seu texto “Retorno às origens”, no qual se ergue em defesa da “política literária nacional-popular” do poeta e da “necessidade da intervenção do poder público como suporte institucional dessa esfera de nossa cultura”.

Com a mão na massa está o escritor Raymundo Netto, como coordenador editorial da Secretaria da Cultura. Neste 2010 veio a lume a obra completa de Juvenal Galeno, em três volumes: Cenas Populares, Cantigas Populares e Medicina Caseira, organizados por Raymundo Netto, esse abnegado amante do Ceará e das artes. O primeiro, composto de contos, agora em 4ª edição, traz apresentação – “Os contos de Juvenal Galeno” – do sábio Sânzio de Azevedo. O segundo volume – em 2ª edição –, de poemas, reproduz a apresentação à 1ª edição, por José Aurélio S. Câmara, de maio de 1969. O terceiro, também de poemas, em 2ª edição, refaz a apresentação à 1ª edição, por Oswaldo Riedel.

Cenas Populares surgiu primeiramente em 1871. Para Sânzio de Azevedo, “essa obra deve ser considerada não como precursora, mas como iniciadora do conto em nossa Província”. E mais esclarece: “Compõe-se o livro de oito narrativas: “Os pescadores”, “Dia de Feira”, “Folhas Secas”, “Noite de Núpcias”, “O Senhor das Caças”, “Clara”, “Amor-do-Céu” e “O Serão”. Seus protagonistas são pessoas simples, das praias e do sertão. (...) vemos aqui um escritor romântico, no qual são fortes as notas de sentimentalismo, mas ao mesmo tempo um agudo observador da realidade do Ceará na sua época, a ponto de alguns contos poderem (como alguns textos do citado livro de poesia) servir de segura fonte para o estudo dos costumes de então.”

Cantigas Populares é composto de dezesseis poemas encontrados por Cândida Galeno, neta do poeta, “aos quais o próprio autor atribuiu o título comum de Cantigas Populares” – afirma Aurélio Câmara – e publicados pela primeira vez em 1969. Ainda segundo o prefaciador, “as estrofes aqui reunidas constituem, talvez, a últimas que compôs Juvenal Galeno. Devem ter sido compostas, em sua quase totalidade, pois mergulhou nas trevas da total cegueira aos setenta anos, em 1906, e as páginas agora publicadas ou são posteriores àquela data ou a antecederam de curto período, quando a visão do autor, de tão apoucada, não mais lhe permitia o manejo da pena.”

Medicina Caseira, assim como Cantigas Populares, é obra póstuma, ambas publicadas pela primeira vez em 1969, por ocasião do 50º aniversário da Casa de Juvenal Galeno. Esclarece o prefaciador Oswaldo Riedel: “Ditou o bardo à esposa e à filha Henriqueta, sua secretária, os versos da Medicina Caseira. Neles, as datas sotopostas a muitas quadras, mas especialmente as referências à pandemia de gripe e ao kaiser Guilherme II, não deixam dúvida que os compôs quando a Primeira Grande Guerra estava vivendo seus últimos dias.”

Juvenal Galeno nasceu em Fortaleza, em 1836. Jovem, foi conhecer o Rio de Janeiro, depois de estudar (inclusive latim) em Pacatuba (cercanias da capital cearense) e no famoso Liceu do Ceará. Estreou aos vinte anos de idade, com Prelúdios Poéticos, “marco inaugural do romantismo cearense”. Seguiram-se diversos livros: teatro, poesia e prosa. Em 1895 ingressou na Padaria Espiritual, como padeiro-mor honorário. Participou do Clube Literário e ajudou a fundar o Instituto do Ceará. Poeta popular, escreveu pelos que não sabiam escrever. Segundo Sânzio de Azevedo, “o que Juvenal Galeno fez muitas vezes foi dizer com seu estilo, entre popular e erudito, o que o homem do povo não saberia dizer. Por isso, nem sempre podemos ver em seus versos o ‘eu romântico’, porque ele fala por outrem.”

Fortaleza, 7 de setembro de 2010.
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