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sábado, 11 de setembro de 2010

Meu Salieri (Simone Pessoa)


(A Inveja - Sebastián de Covarrubias - Gravura do Séc. XVI)


Costumo levar em consideração as críticas construtivas. Todavia, tenho um leitor que não se cansa de me criticar deliberadamente. No seu último comentário, acerca da crônica Recortes, o distinto leitor reivindica a publicação de suas críticas a meu respeito. “Leio com frequência sua coluna e, vez por outra, faço comentários neste espaço. Ocorre que meus comentários quase sempre são críticas à colunista. Por que não publica críticas também?”

Não pretendia fazê-lo, mas para atender ao leitor inquiridor, eis aqui alguns recortes de suas mensagens críticas: “Você apenas escreve bem (conhece as regras), falta-lhe o tempero, leia-se talento”; “sou leitor assíduo de suas crônicas, sempre espero por alguma coisa surpreendente, mas sempre me deparo com o comum”; “você pode produzir, entanto lhe falta encontrar o ponto”; “medíocre”; “não complica, Simone, deixa a vida nos levar, bate um papo no bar do Bode”; “suas crônicas são tão insossas”; “DESISTO DE VOCÊ”.

Mas o fato é que ele nunca desiste de mim. Observo suas entrelinhas e contexto. Quanto mais criativa a crônica ou mais apreciada pelos meus outros leitores, mais incomodado ele se apresenta. Não sei exatamente quais as reais motivações desse leitor ressentido, mas desconfio que ele seja do ramo da escrita e por razões obscuras tenha interesse em desqualificar esta cronista.

De uma coisa estou certa, trata-se de um leitor constante e pontual. Tão logo a crônica é publicada, lá está ele a apreciar meu texto e, ato contínuo, depreciá-lo por meio de comentários sarcásticos no site do jornal. O fato de ele se dar ao trabalho de acompanhar de perto minha produção o credencia como um de meus mais dedicados leitores. Contudo, sem poder, ou melhor, sem querer revelar agrado, que por certo iria contra sua agenda secreta, ele tenta desdenhar.

Lembrei-me de Salieri, um compositor que nutria profunda inveja de Amadeus Mozart. Ao ler as partituras de Mozart, Salieri chorava de desgosto diante da magnitude da obra. E, ao invés de se aproximar e aprender com o ídolo, optou por urdir sua desgraça. Se Mozart soubesse da admiração doentia de Salieri, talvez sentisse um misto de misericórdia e vaidade.

Longe de qualquer comparação com a grandeza de Mozart, percebo que esse leitor aflito é meu Salieri. Sinceramente, lamento assistir ao seu sofrimento, mas não posso negar que também, de certa forma, me sinto envaidecida.

simoneps@fortalnet.com.br

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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pena Própria (Fernanda Lym)

(Quadro de Chico Lopes)


O pai preparou armadilhas para capturar pássaros. Dos que já havia prendido, nunca cuidara de nenhum. Nada de pote com alpiste, banheirinha pro novo hóspede, tampouco gaiolas grandes. Gaiola era gaiola e não importava o tamanho: ali era a última parada. Se havia algum cuidado com os prisioneiros era porque a empregada da casa ainda cumpria sua função.

Ideia estúpida essa a de preparar armadilhas pra pássaros, contestou alto a caçula já não mais tão caçula assim. Quando ele entrar na gaiola cuidarei dele, disse o pai entonando ironia. A caçula prometeu que se o pássaro fosse capturado o soltaria. Antes tivesse percebido que a armadilha fizera efeito: um novo prisioneiro ali dentro se debatia. As asas brilhantes aos poucos empapavam-se de sangue. Antes morrer lutando do que desaprender a voar.

Pretensão essa a de crer que cuidará melhor dos pássaros do que eles de si! E daí que existem moleques com estilingue, gatos à espreita, aves maiores? Antes deixassem livres os pássaros como nasceram pra ser e como devem viver! Mas o capturado, agora fraco, esperaria na gaiola à sua prisão se conformar.

Após a conquista comemorada, o pai foi à cozinha e, levando num pote um pouco de comida, voltou pro seu quarto onde passou o resto das horas, dias e anos, rememorando o passado em frente à TV. Até o odor dos seus gazes lhe era mais familiar do que o ar-fresco longe da zona de conforto.

A caçula bem pensou em soltar o prisioneiro. E daí se o pássaro estivesse machucado? Pelo menos estaria livre. Mas pensou também que se libertasse o prisioneiro haveria falatórios, confusões e ofensas desnecessárias. Odeio quem prende pássaros: os que prendem pássaros são capazes de prender pessoas, e foi cultivando indignação que a caçula, não tão mais caçula assim, tornou a trancar-se no próprio quarto, donde lá só havia como fresta uma janela lacrada por uma grade, que deixava pouco à mostra a lembrança do que um dia ela conhecera ser o céu.

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