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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pena Própria (Fernanda Lym)

(Quadro de Chico Lopes)


O pai preparou armadilhas para capturar pássaros. Dos que já havia prendido, nunca cuidara de nenhum. Nada de pote com alpiste, banheirinha pro novo hóspede, tampouco gaiolas grandes. Gaiola era gaiola e não importava o tamanho: ali era a última parada. Se havia algum cuidado com os prisioneiros era porque a empregada da casa ainda cumpria sua função.

Ideia estúpida essa a de preparar armadilhas pra pássaros, contestou alto a caçula já não mais tão caçula assim. Quando ele entrar na gaiola cuidarei dele, disse o pai entonando ironia. A caçula prometeu que se o pássaro fosse capturado o soltaria. Antes tivesse percebido que a armadilha fizera efeito: um novo prisioneiro ali dentro se debatia. As asas brilhantes aos poucos empapavam-se de sangue. Antes morrer lutando do que desaprender a voar.

Pretensão essa a de crer que cuidará melhor dos pássaros do que eles de si! E daí que existem moleques com estilingue, gatos à espreita, aves maiores? Antes deixassem livres os pássaros como nasceram pra ser e como devem viver! Mas o capturado, agora fraco, esperaria na gaiola à sua prisão se conformar.

Após a conquista comemorada, o pai foi à cozinha e, levando num pote um pouco de comida, voltou pro seu quarto onde passou o resto das horas, dias e anos, rememorando o passado em frente à TV. Até o odor dos seus gazes lhe era mais familiar do que o ar-fresco longe da zona de conforto.

A caçula bem pensou em soltar o prisioneiro. E daí se o pássaro estivesse machucado? Pelo menos estaria livre. Mas pensou também que se libertasse o prisioneiro haveria falatórios, confusões e ofensas desnecessárias. Odeio quem prende pássaros: os que prendem pássaros são capazes de prender pessoas, e foi cultivando indignação que a caçula, não tão mais caçula assim, tornou a trancar-se no próprio quarto, donde lá só havia como fresta uma janela lacrada por uma grade, que deixava pouco à mostra a lembrança do que um dia ela conhecera ser o céu.

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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Irmandade da Boa Morte (Emanuel Medeiros Vieira)

(Histórias da Bahia e do Recôncavo)

(Em memória de meu pai Alfredo – um honrado devoto de São Francisco, e o mais caridoso ser humano que conheci na minha vida.)

Não se sabe a data do seu nascimento, mas acredita-se que a primeira irmandade da Boa Morte em solo brasileiro tenha nascido em 1707. Mas a Irmandade da Boa Morte - criada por mulheres negras -, ao contrário das outras, não contou com a legitimação pelo poder do Estado ou da Igreja Católica. Caracterizada pela devoção à Nossa Senhora da Boa Morte, da Assunção ou da Glória, a irmandade ritualiza a morte e a assunção de Maria que, segundo a doutrina católica, foi levada ao céus como seu filho Jesus. A subida ao espaço celeste é um dos dogmas instituídos pelo Papa Pio XII, em 1950. A origem do culto à Boa Morte data do século VII, em Roma, pelos jesuítas. Em Portugal, começou em Lisboa, em 1660. Em Cachoeira, teria tido origem em 1860, quando a tensão social era muito intensa, segundo os historiadores. Conheci a irmandade (durante os seus festejos anuais, em agosto de cada ano) numa recente viagem à Cachoeira, belíssima cidade história do Recôncavo Baiano, distante de Salvador a aproximadamente 110 quilômetros. (Lembro de duas outras bonitas cidades da região: Santo Amaro da Purificação e São Félix — separada de Cachoeira por uma ponte.) O propósito religioso era católico, mas identidade foi buscada no candomblé. É isso o que me fascina nessa irmandade: sua liturgia, que transita entre dois ritos, tão marcantes na identidade baiana, onde a influência negra é uma das mais fortes do mundo. É preciso lembrar que em Cachoeira travaram-se intensas lutas pela Independência da Bahia e do Brasil, como também foi muito forte a luta pela abolição da escravatura. Formada exclusivamente por mulheres, com idade de ingresso a partir dos 40 anos, todas as 23 integrantes são negras e descendentes de escravos. O empreendedorismo das mulheres negras que fundaram a Boa Morte está na origem de suas antepassadas. “Elas vieram da sociedade iorubá, que era urbana e organizada. Eram conhecidas como negras do partido alto, que dominavam o comércio dos gêneros de primeira necessidade e conseguiram equilíbrio financeiro”, explica o historiador Cacau Nascimento, estudioso da irmandade. O culto à Virgem Maria é oriundo de um sentimento de gratidão pela obtenção de uma promessa: o fim do regime de escravidão. As negras da Irmandade da Boa Morte usam o drama da morte e assunção de Maria como metáfora para o culto aos eguns. É como os sete dias de axexê (o ritual fúnebre do candomblé), com três dias públicos e quatro privados. Ser negra é necessário, mas não é o bastante para constar em “ata” – como se diz quando a candidata é aceita pelas integrantes da Irmandade da Boa Morte. Na rígida hierarquia do grupo, além da dedicação à Nossa Senhora, tem de ter idade avançada e passar por avaliação. Na fase de observação (que dura três anos), as mulheres são chamadas “irmãs de bolsa”. De tradição oral, os segredos só são repassados para as irmãs e cada uma alcança um grau de conhecimento de acordo com o tempo, dedicação e determinação das irmãs mais antigas. Segundo a jornalista Juci Machado, “são esses segredos que garantem a existência delas”. São cinco dias de festa, preparados com um ano de antecedência. A disposição de servir nunca falta: “Nossa Senhora da Boa Morte também nos dá vida e força para continuar”, diz Adeíldes Ferreira de Lemos, 64 anos, que faz parte da Irmandade. (Teria outros relatos, mas o texto ficaria muito longo.) Mas conhecer o Recôncavo* foi uma bela experiência. Internalizei novamente a ideia do Sagrado (em rituais tão belos), num mundo tão dessacralizado, profano e utilitarista - que constitui o nosso capitalismo tupiniquim. Não deixa de ser uma forma de resistência à globalização excludente. Milton Santos (1926-2001), o grande geógrafo baiano, respeitado mundialmente, dizia que era preciso “encontrar um caminho que nos libere da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade”.

*O termo recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras de qualquer baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização à região que forma um arco em terno da Baía de Todos-os-Santos (onde se encontra Salvador).

Salvador, agosto de 2010
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