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domingo, 17 de outubro de 2010

Os ponteiros da vida (Belvedere Bruno)

(Femme avec deux enfants, l'un apparemment mort, à Seashore (1800), Maria Cosway)

Mariana acostumara a banhar-se nua no riacho, longe de olhares alheios. Por não aceitar as regras impostas pela sociedade daquele lugarejo onde vivia, falava sem pudores: – Detesto essas coisas de roça! Quando fizer 18 anos, vou pro Rio de Janeiro. Nelsinho, fazendeiro da região, parou diante dela montado no seu cavalo. Olhando-a, sorriu. Ela, assustada, procurou suas roupas.

– Safado! Tá sempre me caçando, como se eu fosse um bicho.

– Eu, heim? Tô no meu caminho! Deixa eu te ajudar...

– Sai! Me visto sozinha. Veio atrás de mim, me seguiu...

– Segui tu, não. Tô indo pras terras de Anísio Bruno ver se tem feira da barganha. Monta aqui. Larga teu cavalo, que ele toma o rumo.

Os dias passavam e a intimidade entre ambos crescia naquelas cavalgadas diárias que tomaram gosto de fazer. A sensualidade dela, ao despir-se no riacho ou rolando calorosamente no gramado com ele, fez com que, em quatro meses, Nelsinho, apaixonadíssimo, a pedisse em casamento. Ela aceitou. Na decisão, não levou em conta o amor, mas o interesse em sair da mesmice em que vivia.

Mais ou menos três meses após o casamento, era uma outra mulher, totalmente diferente daquela por quem Nelsinho se apaixonara. Nunca mais voltaram ao riacho, e ele já se lembrava, com saudade, de um tempo tão recente.

– Por que não fui para o Rio de Janeiro? Por que caí nesta esparrela? – dizia Mariana.

Sempre que contrariada, galopava a toda e se atirava ao rio com o cavalo, no intuito de provocar escândalo. O fato causava grande rebuliço entre os habitantes da região; mas,

a Nelsinho, não incomodavam esses rompantes da esposa.

– Vida insossa! Acordar, olhar empregados, ouvir falar de bois, cavalos... À noite, me deitar com Nelsinho... Que vida de merda! – pensava Mariana.

O tempo corria. A família aumentava.

Numa tarde, Nelsinho, deitado na rede, comia frutas recém-colhidas e conversava com ela:

– Tô pensando em comprar mais terras. Garantir o futuro dos meninos.

Ela concordou, balançando a cabeça . O que lhe importavam essas coisas?

Certo dia, como a manhã avançasse e Nelsinho não acordava, Mariana se aproxima do leito e pergunta: – Que sono é esse? Acorda, homem! – Nenhuma resposta. Balançou-o pelos braços, nervosa, e deu um grito lancinante: – Não! Não faz isso comigo, Nelsinho! O corpo estava frio. Na fazenda, foram tristes os dias que sucederam àquela partida.

Mariana, então, decidiu deixar ali o seu passado, indo morar em outra cidade. Abandonara o sonho de viver no Rio de Janeiro. O vazio de sua existência, nunca conseguira preencher. Numa casa aconchegante cercada por jardins e pomar, passava os seus dias. A varanda tornara-se seu espaço preferido. Ali, pensava no quanto sua vida sempre fora insustentável.

Estava noiva e, através da janela viu Manuel, seu futuro marido, quando ele dobrou a esquina, caminhando em direção à casa. Olhando-o, sorriu. Uma súbita e forte pontada no peito derrubou-a ao chão. Na mão direita, uma aliança de ouro. No relógio da vida, os ponteiros, agora parados para sempre, mostravam 64 anos.
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sábado, 16 de outubro de 2010

Docência (Benilson Toniolo)


Não sei se viste,
Mas o sol desta manhã era maior que o mundo,
E maior também que o nosso coração turbado.

Ainda ontem um pássaro
Pousou sobre os galhos que sombreiam o rio,
E seu canto amarelo apaziguou
A agonia da tarde.
Mas nada vimos:
Nossos olhos e nossos corações
Se ocupavam e se multiplicavam pelas lousas
E cadernos.

Nada temos além das nossas vozes
E as horas debruçadas sobre escritos, mapas e cálculos
– Viagens que nunca fizemos,
Mas que nos sustentam
E habitam os abismos que infestam
Nossa alma carregada de esperanças.

Não sei se enumeraste dias ou noites,
Se armazenaste as dores
De ensinamentos apaixonados,
Se imaginaste canções
Para cada momento de alegria ou desespero,
Ou o motivo pelo qual
Te ausentas de casa para edificar pessoas
E nações.
De muitas coisas não sei.

A vida segue sem nos darmos conta,
E o que nos sobra
– este sol maravilhoso e insano –
Insiste em iluminar-nos o caminho
E a esperança,
Como se merecêssemos, apesar de tudo,
Começar mais um dia.

Eis o edifício, e as salas
E os que nos esperam sedentos, com olhos de fogo,
Pelo que há em nós
Pelo que somos
E pelo que construiremos diariamente
Com nossas vidas abnegadas
E permanentemente apontadas
Para o futuro.

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