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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Um arado rasgando a carne (Cláudio B. Carlos)

(Paul Cézanne: The Gardener Vallier c1906, Tate)


às vezes acho que nem mesmo eu tenho a noção exata do que me causa essa dor e temo o que ainda possa causar essa dor que se fosse noutro seria como um dom e que em mim me cai às costas com o peso de um castigo às vezes tenho medo do rumo que essa dor possa tomar e noutras vezes tenho a nítida sensação de que ela já é nau à deriva o mar aos grandes pertence quintal de tubarões jardim de piranhas o mundo é dos ordinários na mais pura acepção da palavra essa dor que me causa cortes que me lavra a carne sem nenhum pudor nem assepsia essa dor que me separa dos demais – nem pior nem melhor – o diferente o que sofre de solidão da solidão de quem é habitado por muitos tem noites que perco o sono e só me encontro se me debruço sobre minha própria dor e os que vivem em mim raramente sorriem às vezes sinto que minha alma chora como madeira verde no fogo fogo-fátuo-eterno quem tiver cabeça que ostente reinado vejo diariamente nas ruas nos estabelecimentos nas casas reis e rainhas com reizinhos na barriga eu quando saio sou o sem saltos o de pés rachados o enxovalhado ainda ontem vi um fidalgo que catava porcarias no chão fui também por ele hostilizado e serei novamente e novamente por quantos mais o meu deus que é o meu destino assim o quiser eu que por mais que treine e saiba de cor as melhores jogadas nunca saio do banco de reservas fantoche ignaro num palquinho pobre que no teatro de DEUS nunca saio do ensaio às vezes sinto o ar rarefeito tenho a garganta sufocada por palavras e palavras e palavras e palavras e palavras que da minha boca como que costurada não saem não caem como o cuspe cai como os dentes podres caem eu que sinto dores viscerais um caroço que cresce em mim uma planta que cresce dentro de mim e que fraco cambaleio pela noite é de dor que tranço as pernas e é de bêbado que sou chamado e onde estás Senhor das terras e dos mares que não me dá de agarrar a tua mão e por que plantaste em mim tal semente que não se cala? não sei nominar o que sinto que nome se dá a um arado rasgando a carne?
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domingo, 17 de outubro de 2010

Ao que ainda somos (Inocêncio de Melo Filho)


 (Le rêve du bonheur, Constance Mayer)

Quando me olhas

É a mim que tu olhas?

Quando me abraças

É a mim que tu abraças?

Quando me desejas

É a mim que tu desejas?

Quando me beijas

É a mim que tu beijas?

Quando me procuras

É a mim que tu procuras?...

Curva-me o peso dos anos

E as indagações se avolumam

Na minha mente

Questionando o que ainda somos.
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