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sábado, 23 de outubro de 2010

Indigestão (conto de Mariel Reis)


é foda. um dia eu estive do lado lá. você duvida? tem razão. quem me vê hoje esculachado, vestindo qualquer merda, não desconfia que fui rei. mandava a vera. roupa da hora, carro do ano, metranca no porta-mala para as eventualidades. pistola na cintura. mulher a dar com pau. a vida dá voltas. um malandro comparou com uma roda gigante. um dia lá em cima e outro cá embaixo. trabalhava no carro da brink’s. transporte de valores. asseado, barba e bigode aparados. o peito estufado. protegendo patrimônio alheio com a própria vida. minha mulher orgulhosa de lavar meu uniforme, preparar minha marmita. engraxava até virar espelho minha botina. tinha capricho. pois é. aí o papo mudou. o patrão me promoveu. supervisor. gostava do meu trabalho. era o que o filho da puta dizia. e eu acreditava. o dinheiro melhorou. comprei uma caxanga perto dos meus coroas, vestia meus filhos bem e minha mulher como rainha. conferia e despachava tudo nos conformes. mandava os outros embora, não aceitava corpo mole no serviço. tudo as mil maravilhas. nunca faltei, nem por doença. o patrão me colocando no quadro de funcionário do mês. cesta básica e um bônus. uma felicidade só. você podia me oferecer um jantar lá na sua casa, o patrão insinuou. não conheço sua família, adiantou. a casa é de pobre, patrão, mas isso se corrige, eu disse. ele então, tá certo. fala pra patroa caprichar na bóia. vou levar uns presentes para a molecada. tá certo, eu concordei. falei com a minha mulher o patrão quer jantar com a gente. capricha que sexta-feira ele taí. não deu nem a hora já estava no portão. bateu palmas. meu filho mais velho atendeu. entre, estavamos aguardando o senhor. a fila para beijar-lhe a mão. o patrão ficou todo satisfeito com o respeito recebido. e encompridou os olhos para minha mulher. bonita a esposa, hein, comentou, com todo o respeito você uma senhora bem formada. não maldei, pensei sincero o elogio, agradeci. tudo o que ele cobiça costuma comprar, certa vez me alertou um companheiro. não levei fé. eu estava cego. o jantar inteiro ele com as indiretas. minha mulher, educada, desviava do assunto. não facilita com ele, tudo o que quer compra. é inveja, matutava comigo. minha mulher não gostou da boa educação do meu patrão, xingou de quantos nomes pode, reclamou que não queria que aquilo se repetisse. ele tem dinheiro, pode ir a restaurante. mulher pode ter a que quiser. não pisa mais aqui. ela exagerava, eu sentenciava. meu trabalho seguia normal, sem sobressalto. pelo contrário. dispensado mais cedo que de costume. as regalias aumentavam. ganhei um escritório para organizar melhor os pápeis, com arquivo e tudo. minha mulher com a cara emburrada, conseguiu a promessa de que ele, o patrão, não pisava mais lá em casa. tudo o que ele cobiça costuma comprar. não tardou. tô precisando de uma faxineira, fale com sua mulher, pode fazer um bico e arrumar um dinheirinho. reforça o orçamento. o que acha? vou falar com ela. minha mulher resistiu à idéia. aceitou para não me desfeitear. na primeira vez pagou a mais do devia. ela, honesta, devolveu. que é isso, você merece, falou o canalha. na segunda vez, um vestido como presente. na terceira, um brinco. pra ficar mais bonita pro marido. ela começou a deixar de lado a oposição que fazia ao meu patrão. pode trazer ele pra jantar. na quarta vez, ele não se fez de rogado. ela, nunca entendi, quis agradecer o que ele havia feito por nossa família e cedeu. adverti que nunca mais se repetisse. ela afirmava foi fraqueza. o corpo tomou gosto pela safadeza. o patrão me disse você precisa ter um carro. isso facilitaria a nossa vida, minha mulher acentuou. as coisas foram assim em um crescendo. ela saiu de casa, com meus filhos, para viver com o meu patrão. trabalhava normalmente. ele me dava tapas nas costas, sem ressentimento, né? a mulher é quem escolhe. se você fosse o melhor, ela não largaria tudo. é amor, não duvide. espero que respeite a decisão dela. minha mulher não me olhava mais os cornos. era a patroa agora. não me dirija palavra. tava lá eles se lambendo. tudo o que ele costuma cobiçar, compra. tá certo. pedi que meus filhos fossem para casa de minha mãe para o fim de semana. minha ex-mulher aceitou. não desconfiou de nada. na minha cabeça, era uma passa-fome, não tinha culpa, seduzida pelo burguês, não pagaria a conta. era mãe dos meus filhos. na triagem, pedi que deixassem o malote de dinheiro no cofre. aleguei que não tinha tempo. um compromisso urgente. na segunda-feira, acertaríamos. pedi uma audiência com o patrão. ele, amigável, marcou no sábado, cria que eu, conformado, não tentaria uma loucura. arrumei minha mala, levei o malote comigo e a pistola. minha ex-mulher abriu a porta sorridente. os seguranças dispensados para o fim de semana, o pessoal da cozinha não ouvia nada. tudo o que ele cobiça, compra. bebemos vinho, jogamos conversa fora. ele pediu para minha ex-mulher sair para tratarmos de negócios. nunca fui tão paciente. fomos para a biblioteca. fechei as portas. o que é que houve, rapaz? retirei da mochila o malote de dinheiro. é maluco andar com toda essa gaita por aí? bronqueou. a pistola. o que é isso, não me venha com brincadeiras. eu não tô pra isso, respondi. servi em uma bandeja as moedas. o que você quer com isso, hein? coloquei a pistola na cabeça dele. come. come tudo. senão morre. aos borbortões, com o copo de vinho engolia as moedas. agora o dinheiro. mastiga. ele perdia a respiração. eu ria. tudo o que ele cobiça, compra. minha ex-mulher entrou na biblioteca, encontrou-o com o rosto caído na bandeja. me perguntou o que aconteceu. indigestão, meu bem. indigestão.
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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Pagu: a escritora tentou se matar duas vezes


Adelto Gonçalves

Patrícia Rehder Galvão (1910-1962), nascida em São João da Boa Vista, interior do Estado de São Paulo, foi jornalista, escritora, animadora cultural e militante política. Como jornalista, trabalhou no Diário da Noite, A Fanfulla, Diário de S.Paulo, Correio da Manhã, A Tribuna, de Santos, e Agência France Presse, em São Paulo. Sua formação intelectual e política deu-se mesmo na década de 1930. Mas, como foram os anos 30?
Ao contrário do que se diz, a chamada Revolução de 30 foi um golpe militar como outro qualquer e não constituiu revolução social nenhuma. Foi apenas uma rearrumação das elites no poder. Assim, os cafeicultores paulistas, que haviam sugado as tetas públicas durante toda a República Velha (1889-1930), tiveram de dar lugar também a oligarcas de outros Estados, enquanto Getúlio Vargas levava para o Palácio do Catete o modelo de governo implantado por Júlio de Castilhos (1860-1903) no Rio Grande do Sul por 30 anos que serviu para configurar o Estado Novo, de índole positivista.
Algumas conquistas foram obtidas pelos trabalhadores à época, mas nada há que prove que, se a República Velha tivesse durado mais quinze anos, esses avanços não teriam acontecido. A rigor, o Brasil continuou o mesmo país atrasado, com legiões de excluídos e analfabetos. Para piorar, o getulismo representou a quebra da ordem constitucional. E logo se transformou em ditadura sem qualquer disfarce, com perseguições a seus desafetos.
A jovem Patrícia Galvão levantou-se contra isso, aderindo ao Partido Comunista do Brasil (PCB), que, como sempre, nunca passou de uma seita, sem qualquer perspectiva de empolgar as massas e alcançar o poder. Iludida, como ativista política e membro do PCB, ela combateu a ditadura de Getúlio Vargas, o que lhe valeu 23 prisões. Depois da Segunda Guerra Mundial, ao visitar Moscou, desiludiu-se com o comunismo soviético, rompeu com o PCB, passando a defender um socialismo de linha trotskista.
Lúcia Teixeira, no livro Croquis de Pagu e Outros Momentos Felizes que Foram Devorados Reunidos (Editora Cortez/Unisanta, 2004), reproduz um trecho do panfleto Verdade & Liberdade em que Pagu diz: “(...) Dos vinte aos trinta anos, eu tinha obedecido às ordens do Partido. Assinara declarações que me haviam sido entregues, para assinar sem ler (...). Mas, não haviam conseguido destruir a personalidade que transitoriamente submeteram. E o ideal ruiu, na Rússia, diante da infância miserável das sarjetas, os pés descalços e os olhos agudos de fome. Em Moscou, um grande hotel de luxo para os altos burocratas. Na rua, as crianças mortas de fome: era o regime comunista...”
Pagu publicou os romances Parque Industrial (edição da autora, 1933), sob o pseudônimo Mara Lobo, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, e A Famosa Revista (Americ-Edit, 1945), em colaboração com Geraldo Ferraz (1905-1979). Parque Industrial foi publicado nos Estados Unidos em tradução de K. David Jackson em 1994 pela University of Nebraska Press.
Seus contos policiais, escritos àquela época sob o pseudônimo King Shelter e publicados originalmente na revista Detective, dirigida pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), foram reunidos em Safra Macabra (Livraria José Olympio Editora, 1998). Em 1950, já desiludida com o PCB, saiu candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista Brasileiro, sem ter sido eleita. A essa época, publicou em edição própria Verdade & Liberdade, panfleto de propaganda política em que denuncia os totalitarismos comunista e fascista, defendendo um socialismo democrático.
Em sua fase madura, como animadora cultural, revelou e traduziu grandes autores até então inéditos no Brasil como James Joyce, Eugène Ionesco, Arrabal e Octavio Paz. Teve um trabalho marcante como incentivadora do teatro amador, especialmente em Santos, onde trabalhava no jornal A Tribuna, cuja redação era dirigida por seu marido, Geraldo Ferraz.
O apelido Pagu foi-lhe dado pelo poeta modernista Raul Bopp (1898-1984), autor de Cobra Norato, que imaginou que seu nome fosse Patrícia Goulart. Ela mesma inventou muitos pseudônimos para si, como Zazá, Gim, Solange Sohl, Mara Lobo, Pat, Pit e Leonie.
O cinema brasileiro já homenageou Pagu várias vezes: além de documentário de Rudá de Andrade, há o filme Eternamente Pagu, dirigido por Norma Benguell, no qual ela foi interpretada por Carla Camurati. Patrícia Galvão aparece também no filme O Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, e foi tema do documentário Eh, Pagu!, Eh!, de Ivo Branco.
Lúcia Teixeira lembra ainda, em seu livro, que os anos de prisão, tortura e perseguição deixaram muitas marcas em Pagu, o que a levou a tentar o suicídio duas vezes, a primeira, em 1949, quando deu um tiro na cabeça, durante estada na casa do artista Flávio de Carvalho, em São Paulo; e a segunda, em setembro de 1962, quando, diagnosticada com câncer nos pulmões, foi a Paris submeter-se à cirurgia no Hospital Laennec.
Com o fracasso da operação, “ao antever o sofrimento e a morte iminentes, atira no próprio peito”, escreve a autora. Mais uma vez, sobreviveu. Retornou, então, para Santos, onde morreu em dezembro.

*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
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