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sábado, 23 de outubro de 2010

Fernando Py comenta Contos Reunidos, volume I, de Nilto Maciel


Contos reunidos


Fernando Py

Do escritor cearense Nilto Maciel, recebemos o primeiro volume de seus Contos reunidos (Porto Alegre: Editora Bestiário, 2009). Compreende os livros Itinerário (1974), Tempos de mula preta (1981) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). Nos contos curtos do primeiro deles, o autor se detém a questionar amores desgastados, uma certa ironia prazenteira e, principalmente, exibe um tom de desencanto em relação à crueza da realidade dos fatos. Isto significa uma discordância com o que está acontecendo, num país em que a grande maioria das pessoas não consegue sobreviver com decência. De todo modo, Nilto Maciel deixa para o leitor, em Itinerário, a ideia de um inconformismo que diretamente norteou sua obra futura. Em Tempos de mula preta, vemos que Maciel consegue se ambientar melhor em seu nordeste natal, mostrando-se bem mais maduro. Realiza uma aproximação comovida na direção da religiosidade que lhe balizou a infância, consolidando seu domínio da linguagem de modo leve e divertido. É a primeira coletânea de seus contos que exibe a segurança e o estilo do escritor que será sua marca registrada, não só na narrativa curta como em novelas e romances, sobretudo Os varões de Palma (1994), Vasto abismo (1998), A última noite de Helena (2003) e Carnavalha (2007). Já Punhalzinho cravado de ódio é um volume composto de vinte e quatro textos curtos nos quais o autor exercita com êxito a sua versatilidade, pois os textos cuidam de assuntos bastante variados, em ambientes e épocas bem diversas. Essa variedade de temas e de enfoques leva Maciel a uma abordagem diferenciada de formas e linguagens, e ele se assenhoreou de tal modo desse formato de conto, que acabou criando um estilo bem próprio na maneira de realizá-los. Hoje, Nilto Maciel é o escritor por excelência da narrativa curta brasileira, com seus textos enxutos, nos quais mescla com felicidade o bom-humor e o mistério, o picaresco e a carnavalização do cotidiano. Vale a pena uma leitura cuidadosa.

(Tribuna de Petrópolis, 8 de outubro de 2010, caderno Lazer, p. 5)

Indigestão (conto de Mariel Reis)


é foda. um dia eu estive do lado lá. você duvida? tem razão. quem me vê hoje esculachado, vestindo qualquer merda, não desconfia que fui rei. mandava a vera. roupa da hora, carro do ano, metranca no porta-mala para as eventualidades. pistola na cintura. mulher a dar com pau. a vida dá voltas. um malandro comparou com uma roda gigante. um dia lá em cima e outro cá embaixo. trabalhava no carro da brink’s. transporte de valores. asseado, barba e bigode aparados. o peito estufado. protegendo patrimônio alheio com a própria vida. minha mulher orgulhosa de lavar meu uniforme, preparar minha marmita. engraxava até virar espelho minha botina. tinha capricho. pois é. aí o papo mudou. o patrão me promoveu. supervisor. gostava do meu trabalho. era o que o filho da puta dizia. e eu acreditava. o dinheiro melhorou. comprei uma caxanga perto dos meus coroas, vestia meus filhos bem e minha mulher como rainha. conferia e despachava tudo nos conformes. mandava os outros embora, não aceitava corpo mole no serviço. tudo as mil maravilhas. nunca faltei, nem por doença. o patrão me colocando no quadro de funcionário do mês. cesta básica e um bônus. uma felicidade só. você podia me oferecer um jantar lá na sua casa, o patrão insinuou. não conheço sua família, adiantou. a casa é de pobre, patrão, mas isso se corrige, eu disse. ele então, tá certo. fala pra patroa caprichar na bóia. vou levar uns presentes para a molecada. tá certo, eu concordei. falei com a minha mulher o patrão quer jantar com a gente. capricha que sexta-feira ele taí. não deu nem a hora já estava no portão. bateu palmas. meu filho mais velho atendeu. entre, estavamos aguardando o senhor. a fila para beijar-lhe a mão. o patrão ficou todo satisfeito com o respeito recebido. e encompridou os olhos para minha mulher. bonita a esposa, hein, comentou, com todo o respeito você uma senhora bem formada. não maldei, pensei sincero o elogio, agradeci. tudo o que ele cobiça costuma comprar, certa vez me alertou um companheiro. não levei fé. eu estava cego. o jantar inteiro ele com as indiretas. minha mulher, educada, desviava do assunto. não facilita com ele, tudo o que quer compra. é inveja, matutava comigo. minha mulher não gostou da boa educação do meu patrão, xingou de quantos nomes pode, reclamou que não queria que aquilo se repetisse. ele tem dinheiro, pode ir a restaurante. mulher pode ter a que quiser. não pisa mais aqui. ela exagerava, eu sentenciava. meu trabalho seguia normal, sem sobressalto. pelo contrário. dispensado mais cedo que de costume. as regalias aumentavam. ganhei um escritório para organizar melhor os pápeis, com arquivo e tudo. minha mulher com a cara emburrada, conseguiu a promessa de que ele, o patrão, não pisava mais lá em casa. tudo o que ele cobiça costuma comprar. não tardou. tô precisando de uma faxineira, fale com sua mulher, pode fazer um bico e arrumar um dinheirinho. reforça o orçamento. o que acha? vou falar com ela. minha mulher resistiu à idéia. aceitou para não me desfeitear. na primeira vez pagou a mais do devia. ela, honesta, devolveu. que é isso, você merece, falou o canalha. na segunda vez, um vestido como presente. na terceira, um brinco. pra ficar mais bonita pro marido. ela começou a deixar de lado a oposição que fazia ao meu patrão. pode trazer ele pra jantar. na quarta vez, ele não se fez de rogado. ela, nunca entendi, quis agradecer o que ele havia feito por nossa família e cedeu. adverti que nunca mais se repetisse. ela afirmava foi fraqueza. o corpo tomou gosto pela safadeza. o patrão me disse você precisa ter um carro. isso facilitaria a nossa vida, minha mulher acentuou. as coisas foram assim em um crescendo. ela saiu de casa, com meus filhos, para viver com o meu patrão. trabalhava normalmente. ele me dava tapas nas costas, sem ressentimento, né? a mulher é quem escolhe. se você fosse o melhor, ela não largaria tudo. é amor, não duvide. espero que respeite a decisão dela. minha mulher não me olhava mais os cornos. era a patroa agora. não me dirija palavra. tava lá eles se lambendo. tudo o que ele costuma cobiçar, compra. tá certo. pedi que meus filhos fossem para casa de minha mãe para o fim de semana. minha ex-mulher aceitou. não desconfiou de nada. na minha cabeça, era uma passa-fome, não tinha culpa, seduzida pelo burguês, não pagaria a conta. era mãe dos meus filhos. na triagem, pedi que deixassem o malote de dinheiro no cofre. aleguei que não tinha tempo. um compromisso urgente. na segunda-feira, acertaríamos. pedi uma audiência com o patrão. ele, amigável, marcou no sábado, cria que eu, conformado, não tentaria uma loucura. arrumei minha mala, levei o malote comigo e a pistola. minha ex-mulher abriu a porta sorridente. os seguranças dispensados para o fim de semana, o pessoal da cozinha não ouvia nada. tudo o que ele cobiça, compra. bebemos vinho, jogamos conversa fora. ele pediu para minha ex-mulher sair para tratarmos de negócios. nunca fui tão paciente. fomos para a biblioteca. fechei as portas. o que é que houve, rapaz? retirei da mochila o malote de dinheiro. é maluco andar com toda essa gaita por aí? bronqueou. a pistola. o que é isso, não me venha com brincadeiras. eu não tô pra isso, respondi. servi em uma bandeja as moedas. o que você quer com isso, hein? coloquei a pistola na cabeça dele. come. come tudo. senão morre. aos borbortões, com o copo de vinho engolia as moedas. agora o dinheiro. mastiga. ele perdia a respiração. eu ria. tudo o que ele cobiça, compra. minha ex-mulher entrou na biblioteca, encontrou-o com o rosto caído na bandeja. me perguntou o que aconteceu. indigestão, meu bem. indigestão.
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