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sábado, 20 de novembro de 2010

Conversa com Caio (Parte 2)


NM – Depois de longos anos de leituras e escrituras (fale de suas primeiras leituras e também de suas primeiras experiências como "criador"), você se sente mais próximo do sonho (ou não era sonho?) ou todo caminho é o mesmo?: poeira, arbustos aos lados, céu nublado aqui, sem nuvens adiante, solidão. O homem se contenta com a solidão? Ou o escritor menos que o homem que apenas passa?


Caio – Creio que o escritor é um grande solitário. Não a solidão que se anula em si mesma. A outra, indefinível e talvez meio cósmica, que leva o escritor a escrever e outros se voltam às demais Artes. Eu, de minha parte, comecei muito cedo. E – curioso – desde muito jovem eu desenhava razoavelmente. Deixava perplexos os professores do primário e do seriado, no Liceu do Ceará. Intuitivamente, eu tinha muita noção de perspectiva. Um dia, no primeiro ano do seriado (hoje ginásio), o professor de desenho mandou que desenhássemos uma garrafa. Fui o único que desenhou a sombra da garrafa. Ele me perguntou quem me ensinou aquilo. Eu lhe disse que ninguém. Mas desviei-me para a escrita porque eu lia muito. Comecei escrevendo crônicas e poesias. Empolguei-me tanto que escrevi um romance em cadernos. Ainda os possuo. Eu tinha os meus 13 ou 14 anos. Li muito os livros de Karl May sobre o Far-West. O meu herói dava de chinelo em Tarzan. Não parei mais, abandonando em definitivo o desenho. Escrever é o meu destino. É o destino de quem traz consigo os demônios interiores e luta com eles a vida inteira. Nem por isto deixei de viver a vida plenamente. Brinquei, dancei, namorei, tomei umas e outras etc... A literatura é a minha sombra, o meu contra-espelho, pulsação da minha alma... O homem não se contenta com a solidão referida. A solidão do escritor é aquela outra, ilocalizável e que nos acompanha como um anjo bom ou mau. O que lamento é ter abandonado o desenho. Talvez eu não chegasse a ser um Portinari, mas teria pintado alguns quadros. Visito e me deslumbro com tudo que para mim é belo ou esteticamente diferente. Extasio-me com a música popular ou erudita. Talvez eu tenha aquele mal de que falava o compositor Ataulfo Alves: buscar a Arte em tudo... Fazer o quê? Parar?... Aí, sim, cairia na solidão que se anula em si mesma e me tiraria o sentido da vida.

NM – Você disse que escrevia para você mesmo, desde o início, adolescente. E nunca jogou fora os primeiros escritos, que quase sempre são meros exercícios. O que você lia nesse tempo? Queria imitar algum desses escritores? E depois, quando se sentiu certo de que escrevia bem, continuou lendo? Quem ou o quê? Então lia para quê? Por curiosidade ainda? Por necessidade de aprender mais? Por hábito? E hoje, a maior da obra (a sua) realizada, ainda lê? Para quê? Por quê?

Caio – Eu lia tudo que caía às mãos. Dos gibis aos livros de aventuras. Mas nunca li as obras do Tarzan. E – curioso – nunca procurei imitar ninguém, sem buscar originalidade, porque ainda não tinha parâmetros críticos. Mas sempre busquei uma certa originalidade, dar uma marca pessoal ao que escrevia. Daí, talvez, as quantas tolices que escrevi. O primeiro trabalho que publiquei, aos meus 11 ou 12 anos, foi uma croniqueta – “Ave, Maria”, na revistinha dos padres sacramentinos da Igreja de São Benedito, de Fortaleza, onde eu estudava catecismo. O padre Teófilo publicou a baboseira. Tenho comigo guardada. Começa assim: “A Ave, Maria é uma bela oração, senão vejamos:” e transcrevi a oração em baixo e assinei o meu nome. O padre publicou com destaque e eu me julguei igual aos melhores escritores que eu conhecia. Daí porque os amigos, quando conto isto, dizem que eu sou plagiário desde que comecei... Desde muito jovem eu já lia os regionalistas de 30. Curiosamente, porém, maravilhei-me com as obras de Lúcio Cardoso e de Cornélio Penna, escritores voltados para os conflitos interiores e as solidões humanas. E eu era tão jovem. No Ceará empolguei-me com os livros do Fran Martins e acabei, muitos anos depois, escrevendo a apresentação para toda a obra dele, a pedido do Dr. Martins Filho, Reitor da Universidade Federal do Ceará e irmão dele.
Por que eu lia e leio? Creio que vou viver eternamente lendo. Talvez porque isto se tornou a minha própria sombra. José Mindlin, que possuía uma das maiores e raras bibliotecas particulares do Brasil, costumava me dizer que não viveria sem os livros. Volto a repetir: vivo a vida, mas me encanto sempre com o que se escreveu e se escreve do passado ao presente. Volto sempre aos escritores medievais. Talvez por isto bacharelei-me em História. Minha leitura é muito variada e diversificada. Leio muito poesia, comento livros de poesia, e poeta não sou... li escritores de toda a América Latina, os norte-americanos, portugueses, franceses, russos etc. Se eu tiver de destacar um nome apenas que me sirva de símbolo do que seja escrever, não deixarei de citar, como cito sempre, o Mestre Machado de Assis. Fico por aqui.

NM – E ler-se? Você se lê? Faz modificações nos seus livros publicados? Ou, quando os publica, os considera definitivos? Dizem que Murilo Rubião escreveu pouco (pode ter escrito muito e publicado pouco), apesar de ter vivido muito, e suas poucas obras (contos) são as mesmas, com títulos diferentes. Reescrevia tanto que conseguia transformar um conto em outro. Você é mais pródigo (esbanjador de imaginação) e menos exigente?

Caio – Leio-me muito pouco. Talvez por medo. Sempre que me releio encontro coisas a modificar. Então deixo como está. De todos os meus livros reeditados, modifiquei pouquíssimas frases. Sigo aquilo que sempre afirmo: O livro é daquele instante e daquele tempo. Daí porque, ainda hoje, insisto com o poeta Francisco Carvalho para publicar os dois primeiros livros dele, que ele os considera muito fracos e tirou-os da relação das suas obras publicadas. Acho que não é por aí... Agora: é uma opinião pessoal. Leio e releio muito o que escrevo, mas antes de publicá-los. Há outros que se comportam diferente: Não se conformam nunca com o que escreveu e ficam modificando e modificando. Para mim isto artificializa um pouco a criação. O grande novelista Aníbal Machado, em cada edição do único livro dele acrescentava mais uma novela e fazia uma limpeza nas anteriores. Eis por que há escritores que publicam pouco e sofrem muito no ato da criação. Também não sou relaxado. Quando não gosto de um conto que escrevi, guardo-o na gaveta e vou relê-lo bem depois. Às vezes surgem reformulações novas e reescrevo o conto. Outras vezes não: permanece na gaveta. Mas publiquei, acabou. Parto para outra. Agora mesmo estou reeditando a 4ª edição do meu romance O sal da terra. A editora me pediu que o lesse e fizesse as modificações que quisesse. Li-o todo e tirei quatro ou cinco palavras. Sabe por quê? Eu não quis modificar o tempo em que foi criado. Sou exigente comigo mesmo. Mas um livro é um tempo e um momento criador.

(continua)

Conversa com Caio Porfírio Carneiro (Parte 1)

Nilto Maciel
(Caio Porfírio Carneiro)


Entre os dias 18 e 28 de outubro de 2010, conversei com Caio Porfírio Carneiro. De longe: eu em Fortaleza, ele em São Paulo. Não por telefone, mas por e-mail. Um escritor não pode ser entrevistado por jornalista, que quer informações. Escritor não dá informações. E, se as der, não as dará como as querem os jornalistas. A não ser que sejam informações para biografia. No entanto, minha intenção não é escrever biografia. Nem de Caio nem de outro escritor. Minha intenção é cutucar o entrevistado. Desnudá-lo, expô-lo como ser humano, como inventor, criador. Dizem que ficcionista (escritor, cineasta, compositor, pintor, etc.) não copia a realidade, por mais realista que seja. Caio é um realista. Mas também naturalista, surrealista, fantástico.


Caio Porfírio (de Castro) Carneiro nasceu a 1º de julho de 1928, em Fortaleza, Ceará. Dedicou-se muito moço ao jornalismo, na terra natal. Bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Transferiu-se para São Paulo em 1955. Desde 1963 é secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias do gênero e traduzidos para o espanhol, italiano, alemão e inglês. Caio foi agraciado, em 1968, com o Prêmio Afonso Arinos pela coleção Os Meninos e o Agreste. O livro de contos O Casarão recebeu, em 1975, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, e segundo colocado no Prêmio Governador do Estado de São Paulo. Menção Honrosa do Pen Clube de São Paulo.

Obras publicadas:
Trapiá (contos), Ed. Francisco Alves, Rio, 1961. Mais quatro edições posteriores: Coleção Saraiva, São Paulo; Editora Cátedra, Rio de Janeiro; Ribeirão Gráfica Editora, Franca, SP e Editora da Universidade do Ceará. O conto “O Padrinho” foi traduzido para o alemão e o “Come-gato” adaptado para a televisão.

Bala de Rifle (novela policial), em capítulos no jornal Última Hora, SP, 1963. Não levada ao livro.

O Sal da Terra (romance), Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1965. Mais duas edições pela Editora Ática, São Paulo e uma pela LetraSelvagem. Traduzido para o italiano e árabe. Adaptado em roteiro técnico para o cinema.

Os Meninos e o Agreste (contos), Ed. Quatro Artes, SP, 1969; 2ª edição pela mesma editora, em convênio com o Instituto Nacional do Livro. Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras. Menção Honrosa do Prêmio Governador do Estado de São Paulo.

Uma Luz no Sertão (romance-reportagem), Editora Clube do Livro, SP, 1973; 2ª edição, Editora Claridade, São Paulo, 2007.

O Casarão (contos), Ed. do Escritor, SP, 1975. Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, S. Paulo. Menção Honrosa do Pen Clube de São Paulo.

Chuva – Os dez cavaleiros (contos), Ed. Hucitec, SP, 1977. Adaptado em roteiro técnico para o cinema.

O Contra-Espelho (contos), Traço Editora, SP, 1981.

10 Contos Escolhidos, Coleção 10 Contos - Ed. Horizonte, Brasília, 1983, em convênio com o Instituto Nacional do Livro.

Viagem sem Volta (contos), Ed. Seiva, SP, 1985.

Quando o Sertão Virou Mar... (Lit. Juvenil), Cia. Ed. Nacional, SP, 1986.

A Oportunidade (novela), Ed. Mercado Aberto, P. Alegre, 1986.

Profissão: Esperança (Lit. Juvenil), Ed. do Brasil, SP, 1986.

Da terra para o mar, do mar para a terra (Lit. Juvenil), Ed. FTD, SP, 1987. Várias edições.

Três Caminhos (novela), Ed. FTD, SP, 1988. Várias edições.

Dias sem Sol (novela), Ed. Illa Palma - S. Paulo/Palermo, Itália, 1988.

Rastro Impreciso (poesias), Ed. Scortecci, SP, 1988.

Os Dedos e os Dados (contos), Ed. Pontes, Campinas, S. Paulo, 1989.

Primeira Peregrinação (reminiscências), Ed. Scortecci, SP, 1994.

A Partida e a Chegada (contos e narrativas), Ed. Toda Prosa, SP, 1995.

Cajueiro sem Sombra (Lit. juvenil), Ed. Saraiva, SP, 1997. Várias edições.

Mesa de Bar (quase diário), Ed. Toda Prosa, SP, 1997.

Contagem Progressiva (memórias), Universidade Federal do Ceará, 1998.

Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o terceiro milênio), RG Editores, SP, 2002.

Uma Nova Esperança (Lit. Juvenil), Editora Nativa, (em parceria com Maria José Viana e Paulo Veiga), SP, 2002.

Maiores e Menores (contos), Alpharrábio Edições, Santo André, SP, 2003.

A Vocação Nacional da UBE – 62 Anos (histórico da UBE desde a sua fundação), em parceria com J. B. Sayeg, RG Editores, SP, 2004.

Gramíneas (miscelânea literária), Ed. Scortecci, SP, 2006.

Respingos de uma viagem (opúsculo literário), SP, 2008.

O copo azul (contos), Ed. Scortecci, SP, 2009

***

Nilto Maciel – Por que você continua escrevendo, se as editoras brasileiras não investem em escritores brasileiros, se a grande maioria dos livros publicados no Brasil por brasileiros (em pequenas edições de 100, 200, 500 exemplares) é distribuída apenas a "amigos e parentes"? Como anda o seu desânimo resultante disso? Ou você não vê assim?

Caio – Escrevo por uma necessidade imperiosa que trago comigo desde que me conheço nas Letras, desde os primeiros rascunhos que escrevi, publicados ou não. Antes do meu primeiro livro – Trapiá (de contos) – eu já escrevia muito para mim mesmo e para o fundo das minhas gavetas. Com um detalhe: nunca rasguei nada que escrevi. Tenho comigo uma tonelada de tolices, com algumas coisas razoáveis no meio. Claro que a publicação é fundamental, mas não é tudo. Talvez venha das minhas raízes. O meu avô materno, muito culto, era primo do escritor Adolfo Caminha. O meu pai foi um intelectual frustrado porque nunca publicou nada, mas era amigo de escritores da época, inclusive do poeta Antônio Sales, que conheci pessoalmente. Ele já velho e eu menino. Creio que não conseguiria viver sem escrever. Creio que se dá o mesmo com quem pinta, compõe, esculpe... Fazer o quê? Com editora ou sem editora, com a velocidade dos vôos da internet, sem sabermos onde vamos parar, só existe um caminho: continuar fazendo o que se trouxe do berço: escrever e escrever.


NM – Se escrever é uma necessidade quase fisiológica, você não vê a arte ou a obra de arte como uma "coisa do espírito"? O fazer é o espírito? Ou a alma, como querem outros? É possível "fazer arte" sem realizar obra de arte? Numa sequência: "necessidade imperiosa" ou fisiológica, criação/realização da obra, a obra feita, a fruição da obra (leitura). É assim?

Caio – Como afirmei anteriormente, escrever é uma necessidade imperiosa aos que possuem sensibilidade e ímpeto de "criar", não importa se com bons resultados ou não. O homem da pré-história traduzia isto através das belezas rupestres. Há os que não escrevem nada, ou só escrevem o necessário, e vivem bem. Refiro-me aos que, por dom ou castigo, trazem isto do berço. O ótimo compositor popular Ataulfo Alves costumava dizer que a Arte, para ele, estava em tudo, até no ato de calçar os sapatos. Quem escreve, sentindo por este lado, é, como afirma o escritor Rodolfo Konder, "ele e seus demônios." Creio que para uma pergunta como esta não há, conforme disse, uma resposta plausível e completa. É o homem tentando somar alguma coisa ao imediato e palpável. Ou, como dizia o escritor Lúcio Cardoso, a eterna luta contra a morte. Perguntaram a Picasso, ele já no fim da vida, famosíssimo, o que era Arte, e ele respondeu: "Se eu soubesse o que é Arte eu não diria para ninguém." Creio que é a busca de alguma coisa que se some àquilo que se vê, sente-se etc. É uma espécie de libertação dos demônios referidos. É o instinto de perpetuar-se para além do sopro da vida passageira. Na verdade, não visualizamos bem o que isto seja. E, talvez por isso, tentamos... tentamos... tentamos...

(continua)